Luiz Fernando Carvalho
não está grávido (entrevista)
Selton Mello em Lavoura Arcaica de Luiz Fernando
Carvalho
Luiz Fernando Carvalho,
parece, estava falando sério. Quando lançou, em 2001, Lavoura
Arcaica, um dos filmes brasileiros mais celebrados - se não
o mais celebrado - dos últimos anos [veja mais detalhes no verbete
sobre o cineasta], ameaçou que aquele poderia ser seu último
longa-metragem. Não seria tão chocante se Lavoura
não fosse seu também seu primeiro. Segundo o diretor carioca
de 43 anos, não se faz um filme por qualquer motivo. Em uma abnegação
quase monástica, ele prefere uma postura de isolamento, de exército
de um homem só. Luiz Fernando se tornou uma espécie de eremita
estético político. Mas vá à montanha atrás
dele e lhe pergunte sobre o cinema brasileiro atual. Sua fala é
ensangüentada, aguerrida, e, ao mesmo tempo, explicativa. "O
que me arrastava quando fiz Lavoura era uma raiva muito grande",
diz ele hoje, olhando para trás. Segundo ele, o cinema brasileiro
da chamada "retomada" se rendeu a modelos hegemônicos
e a uma tendência comercial, por isso, é uma profanação,
uma prostituição do que para ele é um espaço
sagrado. A mesma raiva vai se acumulando dentro dele, mas custa a se formar
o óvulo de uma nova cria. "Vou continuar assim até
ficar grávido de novo", afirma o diretor. Na entrevista a
seguir, ele fala de como acha difícil encontrar filmes bons, da
relação com a televisão, de outros cineastas brasileiros
e das perspectivas de carreira no cinema brasileiro atual.
* *
*
Uma
das afirmações mais habituais sobre a chamada "retomada"
é a de que a grande marca deste momento é que nós
alcançamos um cinema múltiplo, de múltiplas estéticas,
um cinema que tenha "do filme do Bressane ao filme da Xuxa".
Você vê nesse cinema efetivamente multiplicidade ou o tal
"diálogo com o público" fez os filmes ficarem
quase todos parecidos, como alguns críticos (eu incluído
neles) apontam?
Estou completamente
de acordo quando você põe em dúvida essa pluralidade.
Acho que talvez ela até exista em certo grau, do ponto de vista
dos temas. Falamos da favela ao Nordeste. Mas naquilo que mais interessa,
que é onde reside a linguagem, acho que estamos atrelados a uma
caligrafia hegemônica. Cria-se constantemente esse mito da pluralidade,
de que estamos nos aproximando de um realismo do ponto de vista da tradução
do país. Mas o mais importante é que conseguíssemos
criar uma linguagem brasileira.
O Lavoura Arcaica,
inclusive, vai na contramão de uma tendência forte deste
cinema, que é o de fazer filme "sociologizóides".
Acho que isso tem
a ver com a identidade brasileira. Ela é, primeiro, verdadeiramente
múltipla; segundo, ela está em movimento, em formação.
Não se pode dizer "o Brasil é isto" ou "o
Brasil é aquilo". O Brasil é um dos poucos países
do mundo que ainda está em ebulição. Essa é
a nossa riqueza. Minha preocupação com o Lavoura
foi inclusive a de fazer com que o filme aglutinasse esses movimentos,
essas várias origens, essa face multifacetada. Afinal, nós
somos negros, portugueses, árabes, espanhóis, japoneses.
O filme é grego, é barroco, é árabe, é
nordestino, se parece com uma história passada em um Sertão
de Graciliano. Tive muito fortemente essa preocupação em
não regionalizar. Mas a geografia externa não era o que
mais me interessava. A geografia externa interessa muito aos diretores
que trabalham com temas, que tem nos temas o tudo de seus filmes. Aí
eles têm que ilustrar um tema. Eu não tinha que ilustrar
nada, muito pelo contrário.
Você acha
importante essa dimensão econômica que o termo "retomada"
na verdade revela, ou seja: é preciso haver muitos filmes para
que haja filmes bons? É preciso haver filmes ruins para que haja
filmes bons?
Não. Eu não
acredito nisso e nunca vi as coisas assim.
Mas é algo
que se diz muito.
Isso para mim é
desculpa, desculpa para boi dormir. Quando o camarada é bom, até
os filmes ruins dele têm qualidade.
Vamos só
estabelecer uma terminologia aqui: o que você quer dizer quando
fala em "qualidade"? Pergunto isso porque a busca da "qualidade"
é outro argumento muito habitual como marca da "retomada".
Isso é muito forte ao se falar da fotografia que praticamos hoje,
que tem produzido em vários filmes imagens sedutoras, que se tornaram
o ícone de um "cinema de qualidade"...
Tudo isso é
fruto do uso do vocabulário hegemônico de que falei. Estamos
trabalhando em cima de meia dúzia de regrinhas que aprendemos da
cartilha hegemônica. Como pode um país deste tamanho abrir
mão de tanta capacidade criativa que ele tem, da tal identidade
multifacetada, desse caldo, em favor dessas regrinhas? Esquece-se de uma
expressão mais verdadeira, que, aí sim, vai se tornar bela
pela necessidade de expressão do artista que vai estar por trás.
Mas hoje se esbarra no fato de que esta é uma geração
que não exercitou a linguagem. É uma geração
que, em sua grande maioria, não se permitiu o desafio do exercício
criativo, uma geração que até hoje opera a partir
de estatutos do mercado, o que fez com que muitos diretores reduzissem
a margem de criatividade de seus filmes, tornando-os escravos das "regras
de bilheteria". O cinema comercial desapropria o aprendizado, rouba
o aprendizado do diretor e faz com que ele não exercite a linguagem.
O antídoto para tudo isto talvez esteja nas novíssimas gerações,
na juventude, na rapaziada que está começando agora, nos
curtas-metragens, nas experiências mais radicais em digital, enquanto
nós, a grande maioria dos cineastas, se vê atrelada a uma
dúvida imensa sobre como fazer. Nós não sabemos como
fazer, porque nós não nos investigamos o suficiente a ponto
de criar um vocabulário. Substituímos essa busca de expressão
por uma busca de mercado. Você vê hoje: nós temos as
novas tecnologias. Eu digo: Meu Deus, nós temos as novas tecnologias!
Hoje, há câmeras que podemos colocar no bolso e não
estamos fazendo nada com isso! Todo o problema da dificuldade de realização
resolvido através dessas novas tecnologias, mas falta a linguagem,
não encontramos o que fazer com essas tecnologias. Estamos como
mancos do ponto de vista da narrativa. Temos grandes dificuldades de encontrar
novas formas de narrar para além daquele convencionalismo para
o qual o bom cinema americano entregou a narrativa cinematográfica.
O cinema narrativo americano dos anos 50 e 60 é de qualidade inegável.
Há grandes narradores. Mas hoje, o próprio cinema americano
se tornou uma caricatura dele mesmo. E nós estamos nos formando
a partir dessa caricatura. Acreditamos no excessivamente descritivo. Tudo
isso leva a essa idolatria por essas imagens glamourizadas de Sertão,
favela etc que vemos tanto.
Você entregaria
o Lavoura como um troféu, como uma prova de que um filme
como ele é possível no Brasil? Você insistiria em
termos de carreira em cinema como aquele e acha que outros cineastas devem
fazê-lo também?
Olha, vou pegar na
mão do Ferreira Gullar para dizer que "se expressar é
uma questão de vida ou morte". Todo mundo que procura um modelo
está perdido. Acredito na sinceridade, no vôo artístico
como fruto de uma necessidade muito autêntica e invisível,
que aos poucos vai tomando forma. Não tinha nem a menor condição
de dizer, quando estava preparando o Lavoura, como ele seria. Mais
conscientemente, o que me arrastava era uma raiva muito grande.
Raiva de...
De tudo o que estava
vendo, ouvindo...
Fazendo?
Fazendo. Isso não
é nenhuma novidade para a história da arte. Toda criação
de uma certa forma é uma negação, uma agressão
ao que vem antes, pelo menos ao que está logo ali ao lado. E logo
ali ao meu lado, no meu trabalho na TV, nas salas de cinema, o que eu
via, me irritava profundamente, me deixava muito solitário, muito
agoniado. Eu não acreditava naquilo. Essas coisas todas me afetavam
muito, me infectavam muito. O Lavoura, de uma certa forma, foi
a minha resposta a tudo que eu vinha vendo e sentindo desde sempre. Claro,
hoje em dia eu posso fazer um outro tipo de filme, mas eu só vou
ter vontade de fazer um novamente, quando eu sentir meu sangue envenenado
de novo. Não acho que filmar seja um exercício da vaidade,
de ficara aparecendo de três em três anos...
Devo entender com
isso que você acha que o Lavoura resolveu essa raiva?
Só em relação
a mim mesmo. No mais, não tenho nenhuma pretensão em representar
anseios coletivos. Não acredito em regras gerais, não acredito
em fórmulas, em nada disso. Já tomei muita porrada na vida
por não acreditar, mas não tem outro jeito. Já tentei
acreditar e tomei porrada pior ainda, porque tomei de mim mesmo. Como
sei que essas feridas custam a cicatrizar, eu não me interesso
por nada que seja falso. O Lavoura, claro, não foi suficiente.
Ele é uma resposta a um estado de espírito, a uma leitura
de mundo naquele momento. Escolhi aquele texto porque ele me pareceu o
texto que continha não só as pedras que eu queria jogar,
mas também uma dimensão emocional e sensorial que reconhecia
de muito perto. O filme atende primeiramente a minha necessidade de expressão
e não a de uma classe cinematográfica. Mas tenho certeza
de que ele defende a sensibilidade de quem quer filmar. Não só
isso, aliás, defende as sensibilidades, os desejos e as coragens.
E só. Ele não cumpre tarefa histórica cinematográfica
nenhuma, não se atrela a período nenhum. Não me acho
um filme de "retomada" nem acredito nessa palavra. Não
creio que se esteja retomando coisa nenhuma a não ser que o país
dê uma volta muito mais completa do que tem se desenhado nos últimos
anos. Aí sim poderíamos falar de uma retomada, a retomada
de uma consciência de nação, de povo e, conseqüentemente,
de uma realização cinematográfica desse nível.
Esse pensar o Lavoura
como reposta a essa raiva torna obrigatória a pergunta: você
tem aquele prazer de filmar, aquela vontade de cinema que vários
cineastas proclamam?
Para mim o cinema
é sagrado. É um espaço sagrado e um espaço
de que não entro e saio com qualquer coisa e nem por qualquer coisa.
Estou querendo te dizer que eu já fui muito procurado para prostituir
esse espaço e não o fiz. Resolvi preservá-lo e só
entrar nele quando realmente tiver muita fé.
De cinema você
está falando do filme para ser projetado na sala escura? Pergunto
isso porque você já foi acusado de se prostituir ou prostituir
a linguagem fazendo televisão porque as novelas seriam menores...
Sim, mas eu acho que
são menores mesmo, não são? Eu vejo essa relação
com muita clareza. Talvez por eu separar muito esses dois espaços.
Eu fiz curta-metragem na geração de 80. Comecei a escrever
em 1982 o filme de 1986 [o curta-metragem A Espera]. E fiz meu
primeiro longa em 2001. Olha o intervalo. Por que eu não fiz antes?
Fui muito convidado para fazer, mas eu lia os roteiros e eles não
se correspondiam com minha visão e meu desejo cinematográfico.
Eu sou filho de cinemateca, rato do MAM. Sou um cara chato para cinema.
Não gosto de muita coisa. Costumo ver os mesmos filmes que sempre
vi. Escolho muito o que vejo, então escolho muito o que faço
também. Por isso vejo com muita clareza esses dois lugares, o espaço
do cinema e o espaço da televisão, e então sinto
que se faz necessário aos artistas e os especialistas que trabalham
na televisão pensarem numa nova missão para a televisão.
Esta nova missão estaria, no meu modo de sentir, diretamente ligada
à educação, a uma reeducação a partir
das imagens e dos conteúdos. Até agora, a grande comunicação
de massa, bem como a mídia, outros meios de comunicação
e o tal cinema americano, foram os grandes responsáveis por uma
gigantesca operação de condicionamento do povo. É
por tudo isso que vejo o espaço da televisão com responsabilidade,
tanto que não faço muita coisa o tempo todo e quebro a cara
pra cacete ali dentro, porque tento encontrar uma maneira mais pessoal
de realizar dentro de um processo industrial. Todo diretor de TV tem uma
produção quase alterofilista, tem que levantar não
sei quantas novelas por ano. E eu faço bem menos que isso. Mas
tem uma coisa: só terminei o Lavoura porque tinha um contrato
com a televisão. Tenho essa consciência de que só
graças à televisão consegui fazer uma poupança
para correr para o cinema e fazer como eu quero e ninguém meter
a mão. É isso que tenho que fazer neste país. E nesses
grandes intervalos eu me preparo, me alimento. Na televisão eu
procuro abrir um espaço mais próximo da educação
do que da linguagem, tento recuperar na imagem da televisão algo
que trabalhe a informação e a educação.
Alguma coisa te
inquieta, te dá raiva o suficiente hoje para pensar em um novo
filme?
Muitas coisas. Mas
ao mesmo tempo em que estou cercado de fantasmas, com cada um chegando
mais perto, e com cada um sendo uma idéia para um filme, eu resisto
a eles. Eu os jogo contra a parede, não acredito neles de primeira.
Trabalho muito com a dúvida. Mas vou as jogando as idéias
fora até que há uma que volta e diz: "Não, eu
tenho que ficar, eu quero virar filme". E essa virará filme.
Então, o mundo das imagens, da narrativa cinematográfica,
eu o respiro 24 horas por dia, mas talvez por já ter exercitado
muito no sentido do fazer, até por conta da televisão, apesar
de ser outra gramática, eu aprendi a guardar idéias na gaveta
para não ficar me repetindo a cada filme.
E elas podem ficar
lá por muito tempo?
Uma das idéias
que mais têm me cercado hoje em dia tem 20 anos de gaveta. Ela é
da época do A Espera. É uma espécie de continuação
do curta. Não falo mais dela porque ainda é uma idéia,
não é algo que eu possa destrinchar do ponto de vista estrutural.
Ainda estou fazendo anotações em meus caderninhos, de uma
forma muito aleatória. O que há é um desejo muito
forte de falar sobre a imaginação. É uma história
sobre a capacidade que nós temos de inventar e matar a imaginação
o tempo inteiro e como isso contracena com a dita realidade. Estamos o
tempo todo promovendo atentados contra a realidade a partir de nosso desejo
de imaginar. E o amor tem um papel fundamental nisso, aquilo que talvez
seja o que potencializa mais esse desejo de imaginar, esse vôo.
É uma história com esse tipo de universo. É isso
que me emociona. O cinema mais uma vez é um objeto que ajuda a
fazer essa bifurcação entre realidade e fantasia. Você
entra numa sala para sonhar, mas, ao mesmo tempo, se você não
encontrar neste sonho uma grande ligação com a realidade,
não faz o menor sentido.
Considerando que
essa idéia flua e nasça um segundo longa seu, você
imagina que haveria alguma coerência de obra entre eles? A palavra
costuma ser uma carne forte nos seus filmes. Você adaptou Roland
Barthes para o cinema, adaptou dois dos textos mais verborrágicos
do Ariano Suassuna para a TV, adaptou a prosa do Raduan Nassar. A opressão
da linguagem sobre o homem está sempre lá. Esse é
elo ou você não enxerga elo?
Eu não enxergo
nada disso. Talvez porque eu não tenha parado para fazer essa reflexão
que você fez. Não sinto uma coluna vertebral entre esses
trabalhos, mas certamente deve existir. Não procuro seguir um caminho,
não sinto um trabalho sendo fruto do outro, não sinto essa
coerência. Mas não sou muito a fim de coerência. A
única coisa que posso te dizer é que a literatura tem uma
importância muito grande na minha vida. Sou filho de classe-média
bem média, de pai engenheiro civil nascido em Piedade e que tinha
um amor pelos livros muito grande. E desde criança peguei esse
amor pela literatura e me refugiei muito na literatura nos momentos mais
difíceis da minha infância e adolescência. Sempre acreditei
nesse jogo com as palavras, nas imagens das palavras, nas possibilidades
de transcendência das palavras, sempre visualizei muito os livros.
Talvez esses primeiros passos que eu dei no cinema e na televisão
tenham ligação com essa relação com a literatura.
Essa afirmação
de incoerência chama a atenção para uma individualidade
muito grande. Isso sugere um questionamento forte do cinema brasileiro
hoje: devemos aceitar a idéia de multiplicidade ou devemos pensar
em um movimento, a exemplo do Cinema Novo? Quem tem defendido esse "movimentismo"
são diretores como você ou o Erik Rocha e o Karim Aïnouz,
por exemplo, diretores que têm justamente essa individualidade e
essa singularidade quase eremíticas.
Da mesma forma como
me sinto muito solitário, tenho certeza de que o Erik se sente
muito solitário, assim como Karim e... muito poucos outros. E essa
solidão nos dá esse sonho de um grupo. É quase uma
fantasia nossa. Mas acredito que cada um de nós é solitário
por uma razão muito verdadeira. No meu caso, é uma questão
de contestação mesmo. Sinto-me muito inadaptado a certos
procedimentos cinematográficos que o Brasil encaminha e assume.
E acho que se eu escolhi fazer esses filmes, eu tenho que tomar um outro
caminho, senão isso vai me abrir feridas muito grandes. Mas tenho
certeza de que esses que você citou têm razões para
se sentirem desejosos de um grupo. É uma escolha muito dolorosa.
Ao escolher este caminho solitário você se depara de uma
maneira muito clara com a máquina que processa e produz o imaginário
neste país. É uma guerra violenta. É um momento muito
delicado, já que ainda não conseguimos criar uma imagem,
uma estética, que nos represente no nível do caráter.
Você não
acha que essa postura um tanto eremítica ajudou a criar uma imagem
de desejo de superioridade ou de antipatia?
É um desejo
de caráter, um desejo de caráter. Eu não vendo a
minha mãe, mesmo. Podem continuar insistindo, mas eu não
vendo. Eu tenho que me estruturar para continuar e minha única
força quando eu filmo é o filme em si. Foi o caminho que
escolhi a partir do Lavoura. É um caminho que me deixa extremamente
solitário, mas é um caminho que me interessa. Sinto que
me aproximo das pessoas de uma forma mais verdadeira. E me sinto continuando
alguma coisa. Não inaugurando ou renovando, mas continuando algo
que já tenha sido feito dessa forma na história da humanidade,
com um desejo sincero, com a mesma busca pela verdade que um jornalista
tem, que um pintor tem, que um escritor tem, que um artista de rua tem.
Então, se para não me isolar eu tiver que vender minha mãe,
fico isolado. E vou me isolar até eu estar grávido de novo,
quando tudo isso me inflamar o sangue de tal forma que eu vou parir outro
filme. Não é uma posição eremítica,
é uma posição de contestação mesmo.
Não aceito, não estou a fim.
Você disse
que vê poucos filmes. O que tem lhe interessado no cinema brasileiro?
[Longo silêncio]
Dos anos 80 para cá, sem dúvida nenhuma os curtas-metragens.
É ali que identifico uma possibilidade de diálogo com a
imaginação, um entendimento mais profundo do mundo das imagens.
De modo geral, os longas-metragens são fruto de um cinema de diálogo
mesmo, um cinema muito televisivo, monocórdio.
Mas nada lhe interessa
nos longas?
É evidente
que há uma produção interessante. É rara,
mas existe. Um filme de que eu gostei muitíssimo de ver O Sertão
das Memórias, do [José] Araújo.
É o tipo de filme que anima a gente, porque é uma tentativa
de narrativa que uma grande parte do Brasil poderia estar exercitando,
um filme que vai na contramão dessa glamourização
de que falamos antes. Gosto do cinema do Bressane de um modo geral. Acho
que entre os altos e baixos ele expressa um grande amor pela linguagem
cinematográfica, que é o grande hiato que a gente tem.
É mesmo
um grupo bem restrito.
Quando eu falo que
vou pouco ao cinema, é porque tem muita coisa ruim. Há muito
poucos filmes bons em cartaz, brasileiros ou não. Se você
for severo, você nem vai ao cinema. Mas antes de qualquer coisa,
quero deixar claro que esta é uma crítica de desejo. Gosto
muito do nosso cinema e desejo o melhor para ele. Mas a minha predileção
é a cinematografia brasileira dos anos 60. Lá eu me deleito.
É preciso falar de filmes pontuais. Por exemplo: eu gosto muito
do cinema do Carlão [Carlos Reichenbach] de maneira geral,
mas hoje, muitas vezes só é possível falar de um
filme de um diretor, de outro de um outro. No mundo todo, aliás.
Não dá para dizer: "Gosto de todos os filmes do Godard".
Não dá. Mas para não parecer que eu só vi
O sertão das memórias, gosto muito de Um Céu de
Estrelas [de Tata Amaral] e de Ação Entre Amigos,
do Beto Brant, principalmente da parte final, da maneira como é
conduzida a câmera. Acho que o Beto é um diretor que tem
uma miragem no olhar, o que é raro hoje em dia. Gosto mais deste
filme do que de Os matadores. E agora, ultimamente, gosto do Amarelo
Manga [de Cláudio Assis]. Ah, e gosto de Cronicamente Inviável
[de Sérgio Bianchi]. Entre os documentários,
tenho me impressionado com muitos, mas agora vou pegar só um: Rocha
que Voa.
E lá de
fora?
Estou chegando de
lá e conheci algo que me deixou maravilhado: Hou Hsiao-hsien. Os
orientais estão dominando, rapaz! O cinema francês está
muito ruim. A impressão que você tem é que se você
espremer não sobra nada.
Vocês
todos, cineastas da "retomada", começaram como cineastas
depois de um período de hiato de produção, uns vindos
do clipe, uns da TV, outros da publicidade, outros ainda da filosofia
etc. O que é ser cineasta em um contexto como esse?
Eu sinto que cabe
a todos aqueles cineastas que destaquei antes a observação
de que eles sentiram essa necessidade de agredir esse pântano. Mesmo
sem ter isso consciente, mas como uma necessidade de expressão.
Porque quando você entra para ver um filme, você quer gostar
muito dele, quer imaginar muito, quer que aquele filme te arraste. Se
isso não está acontecendo, se você entra e sai do
cinema e não viajou, então você passa a criar o seu
filme, o seu desejo. Acho que todos esses diretores de que falei têm
seus filmes como uma resposta ao mundo em que vivem. Essa resposta transcende
o cinema em si. É uma resposta a tudo o que vemos, escutamos, lemos.
Somos chamados a dizer o que achamos de tudo isso, gostando ou não
desse conjunto de coisas.
É uma
empreitada grande transformar esse cinema.
Eu não penso
nem um pouco assim, em transformar. Que temos a responsabilidade de transformar
o cinema. No fundo a grande revolução é mesmo individual.
Inconscientemente você se agrega a outras pessoas que têm
a necessidade de reconhecer no mundo da produção das imagens
algo de mais verdadeiro, consistente. Essas pessoas automaticamente se
juntam, viram uma família e vão infectando o gosto médio.
Eu, sem fazer esforço nenhum, me aproximo do Cláudio Assis.
E há pouco tempo atrás eu nem conhecia o Cláudio.
O filme do
Cláudio, aliás, reacendeu essa coisa de o que esperar dos
novos cineastas. Todo mundo fica sempre esperando muito dos novos trabalhos
de vocês.
Não acho que
as pessoas devessem esperar muito de nenhum de nós. Nenhum de nós,
acho, teve a pretensão de fazer um filme eufórico. Eu não
faço a menor idéia do que esperar de um novo filme meu.
Como eu disse, nem sei se vou fazer um outro filme.
Entrevista realizada
e transcrita por Alexandre Werneck.
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