Jorge Furtado comenta
"O Homem Que Copiava"
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Sílvia (Leandra Leal) inverte o jogo de gato e rato:
mudanças de ponto-de-vista em O Homem Que Copiava
Mudanças
de ponto-de-vista, reescrever a história
"Nisto consiste toda
a arte teatral: descobrir sob que ângulo de visão o mundo
a ser representado é mais interessante, mais pitoresco, mais estranho,
mais vibrante ou mais significativo". Etienne Soriau, As Duzentas Mil
Situações Dramáticas.
Qualquer narrativa
tem um ponto de vista e qualquer história é outra história
se muda o ponto de vista. A variação do ponto de vista é
um elemento chave em qualquer narrativa. Em O Homem Que Copiava
André é quase o protagonista absoluto, só não
está presente em uma ou duas cenas de Cardoso e Marinês.
O filme é uma colagem em todos os sentidos, inclusive na variação
de gêneros. Deixar a "história de Sílvia" para o final
foi uma opção dramática, não queria fazer
humor depois que o seu drama pessoal se revela. É quase como se
o longa (a história de André) fosse seguido de um curta
(a história de Sílvia). Talvez seja vício de curta-metragista.
Filmes adolescentes
ou heróis adolescentes
Acho a adolescência
uma fase muito rica, uma crise constante, muitas transformações
e hormônios em excesso. A linguagem dos adolescentes também
me interessa, eles inventam a língua diariamente. Minha formação
literária deve muito à literatura americana que, como disse
o Hemingway, foi formada na tradição do skaz (gênero
narrativo em que o protagonista, adolescente, conta sua história
na primeira pessoa, com suas próprias palavras) com os livros do
Mark Twain, As Aventuras de Huckleberry Finn e Tom Sawyer.
O Apanhador do Campo de Centeio (do Salinger), Matadouro Cinco
(Vonnegut), Complexo de Portnoy (Roth), Zazie no metrô
(este é francês, do Queneau) têm heróis
adolescentes narrando suas histórias. São livros muito bons.
Dinheiro
O dinheiro é
quase um personagem do filme. Dinheiro é um assunto fundamental
e pouquíssimo abordado pela dramaturgia. O Millôr escreveu
um texto ótimo dizendo que o dinheiro é tão importante
que é o único produto que não precisa apelar para
o sexo para se vender. De fato, todas as cédulas tem homens e mulheres
feios, velhos, totalmente vestidos, não conheço cédulas
com jovens de biquini. Todo mundo pensa em dinheiro quase todos os dias,
mas poucos filmes falam disso. Acho que no imaginário dos jovens
brasileiros o dinheiro é fundamental. Gosto que o conflito do André
seja conseguir 38 reais. É um objetivo vital e muito difícil
de ser atingido, para ele ( que é o que importa, não sou
sociólogo, sou cineasta) e também para a imensa maioria
da população brasileira.
Atores desconhecidos/atores
famosos
Convidei o Lázaro
para fazer o filme quando ele era quase desconhecido do grande público,
Madame Satã não estava pronto. Atores desconhecidos
dão grande credibilidade aos personagens (ver cinema iraniano).
Atores conhecidos quase sempre ficaram conhecidos por serem bons, eles
trazem para os personagens importantes contribuições dramáticas,
fruto de suas próprias memórias afetivas, sua técnica
e seu talento. Bons atores não ficam desconhecidos por muito tempo.
Acho que o mais importante é trabalhar com bons atores, adequados
para o papel, desconhecidos ou não. É claro que atores conhecidos
também ajudam a "vender" o filme, o público (e alguns patrocinadores,
por conseqüência) se relacionam com o filme através
dos atores, nem sabem que existe um diretor. No lançamento da fita
e dvd do Houve uma Vez Dois Verões estou pensando em fazer
um anúncio com o Fred de "Mulheres Apaixonadas", conhecem?
O roteirista é
um homem de mil olhos (na medida em que deve contemplar todos e olhar
com o olhar de cada personagem)
Sem dúvida.
Ao escrever é fundamental fazê-lo a favor de cada personagem,
ser cada um deles por algum tempo. Cada personagem é também
uma parte de quem o cria.
A benção
do diretor, a benção divina
O filme tem muitas
referências religiosas, acho que o André acredita que aquele
anjo realmente o acompanha. Este assunto é complicado, não
saberia (e acho que não quero, corro o risco de me interpretar
demais) falar disso em poucas palavras. Cito apenas a frase inicial do
ótimo livro do Jack Miles (ele estuda a bíblia do ponto
de vista literário), Cristo, uma crise na vida de Deus: "Toda a
humanidade está perdoada, mas o Senhor tem que morrer. Este é
o sentido do epílogo cristão às sagradas escrituras".
Criar identificação
para depois causar apreensão moral
O longo prólogo
do filme, que muita gente acha chato e muitos tentaram me convencer a
diminuir, me parece fundamental para criar o personagem de André.
Espero que o espectador torça por ele enquanto comete vários
crimes (copiar livros, copiar dinheiro, passar dinheiro falso, comprar
armas, assaltar bancos e fazer bombas). Uma das idéias do filme
era questionar padrões morais, trabalho que deve ser feito pelo
público. Na saída de uma sessão no Rio fui abordado
por uma senhora que se apresentou como evangélica, disse ter gostado
do filme mas que ficou preocupada com o final, segundo ela uma incitação
ao crime. E sugeriu que eu colocasse sobre a última cena um letreiro:
"No dia seguinte eles foram presos..." Achei muito boa a idéia,
acho que em dvd vou incluir esta frase, numa versão adicional,
com punição.
A vida como um
enorme "quem conquista quem"
Os heróis românticos
fazem de tudo para conquistar suas amadas, muitas vezes sem saber que
suas amadas também fazem de tudo para conquistá-los. Mamet
define todos os roteiro como "alguém quer muito alguma coisa e
tem dificuldades para conseguir". Concordo com ele.
Jorge Furtado
(depoimento por e-mail a partir das deixas
de Ruy Gardnier)
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