Spider: a primeira pessoa no cinema*

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Antes de retornar ao ponto em que paramos, há a necessidade de uma advertência pouco usual, mas que pode salvaguardar as expectativas dos leitores com relação a uma possível ida ao cinema ou uma possível leitura do livro ou do filme Spider. A quem quiser realizar qualquer uma dessas duas experiências após a leitura deste artigo, devemos advertir de antemão que o que será exposto aqui, de uma certa forma, comprometerá os resultados de uma apreciação descompromissada das obras, já que revelaremos seus artifícios sem nenhuma restrição, o que, no caso do livro, agrava-se pelo fato de conter vários pormenores misteriosos. Não queremos que um eventual leitor depois nos veja como um estraga-prazeres que, alegando motivos intelectuais, se compraz em  tirar a surpresa das coisas. Por isso partimos do princípio de que todos aqueles que prosseguirão leram o livro ou viram o filme ou, pelo menos, foram avisados.

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Podemos nos confrontar com dois tipos de adaptações: as adaptações que exigem o livro, mantendo um diálogo permanente com a obra original e assumindo-se como uma leitura privilegiada; as adaptações onde o livro é tão somente uma referência dramática e nominal, tornando mais autônoma a sua compreensão para os que desejam simplesmente assisti-lo, sem maiores conseqüências.

Paradoxalmente, quanto mais livre é a adaptação da obra cinematográfica, mais dependente do livro ela se torna, pois já que sua constituição assumidamente híbrida não permite que os traços herdados do verbo silenciem sua herança em meio a tantas outras. Na face do cinema livremente adaptado, explicitamente, trava-se um diálogo para o qual a permanência do objeto livro exerce papel, apesar de estarmos lidando com celulóide, fundamental.  Neste sentido, o filme reitera constantemente seus apelos à intertextualidade, fornecendo inúmeros enigmas cujas chaves encontram-se, muitas delas, guardadas entre os tomos da biblioteca, ou, no interior mesmo das obras literárias.

Muitos são os cineastas que assumem dentro do filme a posição efetiva de um leitor criativo, aproximando suas adaptações desta perspectiva de diálogo com os livros de origem. Um dos mais célebres e tenazes representantes tropicais, certamente, é Júlio Bressane. Brás Cubas é o exemplo cabal de uma obra cinematográfica livremente inspirada onde a compreensão do filme fica comprometida caso o espectador não tenha se deparado alguma vez com o livro de Machado de Assis. Desde a memorável primeira seqüência, na qual a ossada de Brás Cubas é convidada a dar o testemunho impossível, vemos que o diretor reafirma a cada plano sua intenção em manter o livro como fonte inesgotável de possíveis analogias. Para saborear melhor suas ironias é preciso ter provado das ironias de Machado.

Spider adequa-se mais ao grupo de adaptação independente, onde a sombra do livro adquire menor vulto sob o corpo da narrativa. Vê-se o filme como um produto autônomo, ainda que sua voz abrigue a esquizofrenia alheia (na verdade nem tão alheia, já que o escritor de Spider, Patrick McGrath, assina o seu roteiro). Esta independência fundamenta-se, especialmente, na exploração máxima dos recursos cinematográficos para a construção de um realismo subsistente, deixando a voz interior do protagonista, sua existência textual, sub-exposta em camadas de imagens e atmosferas.

A percepção de que o livro é um dos elementos constitutivos de sua estrutura fica clara desde a apresentação dos créditos, porém, o realismo da linguagem impede uma transparência definitiva ao ponto de mostrá-lo como uma simples leitura, uma interpretação privilegiada, mas nunca definitiva. Esta opacidade serve aos interesses exclusivos do filme, que se declara aos olhos do público como uma transposição o mais imparcial possível, o mais fiel possível, mas que, no final das contas, nada mais é do que uma interpretação do texto, passível de toda a série de interferências comuns ao processo de leitura. O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas só existe um. Filmes existem três: de Júlio Bressane, de André Klotzel e de Fernando Cony Campos. Assim como ocorreu com este exemplar, nada impedirá a existência de outras leituras cinematográficas de Spider no futuro.

Portanto, quando um crítico pretende interpretar ou analisar um filme adaptado, deve estar atento aos artifícios que almejam torná-lo uma visão canônica de sua matriz, para não acabar agregando suas ponderações nesta insustentável mitificação. Para isso, roga-se a leitura do livro de origem e a constatação fundamentada de que o filme adaptado, por mais que aparente isenção, nunca deixará de ser uma interpretação dada por um processo comumde leitura.

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“Sempre achei curioso conseguir recordar incidentes da meninice com clareza e precisão, enquanto eventos ocorridos ontem parecem obscuros, e não sinto confiança alguma em minha capacidade de recordá-los com exatidão.”

É assim que se inicia Spider: em primeira pessoa, como em um diário. O narrador procura dispor a memória para abrigar um assassinato imponderável: o de sua mãe, vítima do desejo carnal de seu pai por uma prostituta. O processo que culminará com o assassinato é acompanhado pelo olhar do pequeno Spider desde as arrastadas e insuportáveis crises conjugais, em torno da mesa posta,  até o momento em que sua mãe confirma suas desconfianças flagrando o adultério. O olhar do protagonista é passivo, oblíquo, aficionado. Presencia o homicídio sumário e o enterro improvisado sob o terreno em que brotavam leguminosas servidas naquelas amargas refeições. Sem os preâmbulos necessários, seu pai permite que a amante tome o lugar da sua mãe na modesta casa da Kitchener Street.

“Passei a vigiá-la, lembro-me, pois provocava em mim uma espécie de fascínio aterrorizado. É difícil falar nisso, mas ver vestidos, aventais e malhas que para mim ainda carregavam a aura de minha mãe no corpo de Hilda , em sua fala, no modo como andava e balançava o traseiro- isso me afetava profundamente.”

O narrador  chama-se Dennis Cleg.  Spider é um apelido. Vai rememorando seu passado obscuro, tecendo suas teias em torno do leitor mergulhado, cada vez mais imerso, em sua estranha autobiografia. A verdadeira condição do protagonista só será revelada do meio para o final do livro, enquanto, paulatinamente, vamos nos dando conta da impossibilidade da narrativa, das lacunas, dos fragmentos desconexos de uma memória precária e doentia. A pensão onde Spider mantém um quarto vai metamorfoseando-se em uma casa de repouso; seus habitantes sem voz, em pacientes alienados; sua dona, a sra Wilkison, numa espécie de enfermeira condicional. O autor, através de uma engenhosa trama, no livro, estende a sanidade de sua personagem até o máximo limite do crédito, quando, já não havendo mais a possibilidade do leitor sustentá-lo,  acena com  o arremate de um desfecho surpreendente: a esquizofrenia

 “Sim, foi tudo obra minha, sim senhor. Eu me afastei da cerca ; o pânico diminui  e senti-me estranhamente calmo (embora o verme do pulmão tenha acordado com aquela animação toda.)” (pag. 224)

 Foi o próprio Spider, projetando sobre ela a figura de uma prostituta, que matou sua mãe em meio a uma delírio esquizofrênico. Abriu a saída de gás e esperou no seu quarto a queda do corpo impuro.

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No cinema,  tal jogo narrativo encontraria sérios obstáculos. O maior deles, sem dúvida, o de adequar a voz em primeira pessoa desta personagem, cuja insanidade encontra-se protegida pelos artifícios próprios da literatura, que lhe asseguram a razão, pois não nos é dado vê-la, mas imaginá-la. Não estamos diante de um indivíduo em carne e osso, mas de suas impressões.  Sob a carapuça que lhe confere a narrativa escrita, Spider pode se fazer de são, já que é aquele a quem o autor conferiu o dom da palavra. E pode também esconder o rosto da mãe, já que as palavras fornecem fosco material para a omissão descritiva, uma preciosa mantilha para os desígnios do escritor e sua personagem, de modo que o leitor possa imaginar a prostituta Hilda no lugar de uma senhora mãe de família. Sabemos tudo através da perspectiva deste olhar inconsciente da própria loucura e dos próprios delírios. O que possibilita também a inconsciência dos leitores até o momento oportuno, quando a esquizofrenia irrompe no discurso de modo a reorganizar a trama, fornecendo-lhe um sentido.

A questão principal da adaptação cinematográfica de uma obra com estas características seria o ponto de vista comprometido da narrativa revelado a posteriori. Como Cronenberg iria manter incólume dos espectadores a loucura da personagem principal em primeira pessoa, como fez o escritor no livro, quando, a matéria prima do cinema é a imagem e, neste caso específico, a imagem do rosto de um homem perturbado por visões, convulsionado por visões que lhe fogem do controle? A resposta dada pelo diretor, com o auxílio do próprio Patrick McGrath na realização do roteiro, além de satisfazer plenamente as expectativas do texto fornecendo uma adaptação exemplar, é capaz de levantar questões muito interessantes com relação à linguagem do cinema.

No filme, optou-se por assumir a loucura do personagem desde o início. Não temos dúvidas de que Ralph Fines interpreta um louco logo que ele desce na estação, logo que a câmera focaliza seu rosto, desde o primeiro fotograma. Da mesma forma que a escolha de Miranda Richardson para os papéis de mãe e prostituta, respectivamente, deita por terra as iniciais intenções do escritor, muito claras, de mantê-las distintas através do olhar de Spider.  Os simulacros utilizados pela narrativa escrita, possibilitados por uma narração em primeira pessoa, são substituídos pela crueza de um olhar cinematográfico em terceira pessoa. Na maior parte do tempo, a câmera permanece distanciada de seu objeto, como por exemplo, no momento em que Spider revisita o seu passado e o vemos  emoldurado pela janela, no lado externo de sua própria casa, assistindo uma das cenas de sua vida. Esta adaptação, aparentemente simples, exemplifica a complexa relação entre o Cinema e a Literatura, sobretudo, a problemática da primeira pessoa no discurso cinematográfico.

A grande dificuldade em tal afirmação reside em saber se esta problemática expressa pelo confronto do livro Spider com o filme Spider não é um fenômeno localizado, decorrente, unicamente, das opções particulares dos autores do filme, ao invés de um fenômeno abrangente, cujas causas partiriam da natureza própria da linguagem cinematográfica, ou melhor, se esta substituição de uma voz narrativa por outra seja muito mais em decorrência de escolhas nada arbitrárias, que resultassem em uma adaptação o mais fidedigna ao espírito da obra matricial, ou se é a conseqüência de uma dificuldade inerente aos recursos cinematográficos, obrigando os autores a adaptarem esta  primeira pessoa, aprioristicamente, problemática. Eis a questão. 

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Quando um roteirista parte de idéias próprias, tem um infinito a dispor. Ao partir de um livro, um infinito disposto. As escolhas, tanto para o que escreve uma obra original como para o que se depara com o desafio de uma adaptação, são muito próximas, na medida em que o livre arbítrio, inferno dos homens, pode desvirtuar tanto a vida como as obras livremente inspiradas.  Apesar de já ter um drama delimitado, com personagens e paisagens fornecidas pelo livro, uma adaptação enfrentará, a princípio, os mesmos percalços que um leitor comum enfrenta ao iniciar um processo de leitura. “Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo.”, diz Umberto Eco. “(...)E essa liberdade é possível precisamente porque- graças a uma tradição milenar, que abrange narrativas que vão desde os mitos primitivos até o moderno romance policial- os leitores se dispõem a fazer suas escolhas no bosque da narrativa acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras.” A diferença quando se remete às adaptações cinematográficas reside no fato de ser uma leitura aditivada pela autoridade de um outro artista, o que transforma as interações subjetivas existentes entre um simples ato de leitura em um evento cujas conseqüências, de uma forma ou de outra, influenciarão nas futuras apreciações da obra literária.

Ao pôr em prática a série de opções deflagradas já na construção do roteiro, as escolhas das locações, dos atores, etc, o filme está cristalizando a leitura, fornecendo para futuros leitores referências visuais para recorrer, caso tenha lido o livro ou venha lê-lo, interferindo em sua atividade participativa de maneira sutil, mas efetiva. Depois de assistir o filme de Cronenberg, como imaginar outro Dennis Creg que não o interpretado por Ralph Finnes? Em meio a tal responsabilidade, pode-se argumentar que as opções realizadas por McGrath na adaptação tiveram unicamente a intenção de manter o realismo do livro. A escolha do ponto de vista onipresente de um narrador esquizofrênico acarretaria o uso de recursos extremamente subjetivos, tornando as imagens distorcidas ou por demais barrocas, sem com isso resultar em um produto que satisfizesse plenamente o espírito da obra. 

André Bazin observou que, para se adaptar uma obra literária, exige-se do cineasta, antes de mais nada, talento criador. Ele terá que reconstruir o equilíbrio narrativo através de recursos diversos, sabendo selecionar e adaptar elementos conformados em um sintagma, para em seguida raciociná-los sobre um meio de expressão mais fluido e direto, com prioridades que muitas vezes distendem o tema, sintetizam o tempo, privilegiam o gesto.  “Justamente as diferenças de estruturas estéticas tornam ainda mais delicada a procura das equivalências, elas requerem ainda mais a invenção e imaginação por parte do cineasta que almeja realmente a semelhança ”, conclui Bazin.

A mesma conclusão chega Joaquim Pedro de Andrade, após a realização de muitas adaptações antológicas: “Freqüentemente quando a forma literária parece insusceptível de gerar uma forma cinematográfica, é porque ela pode gerar uma forma nova. Mas isso implica num processo de criação, nunca numa transposição mecânica.” Desta forma, quando o diretor e o roteirista de Spider “optam” pela terceirização do olhar do filme, ao invés de seguir à risca a voz narrativa do livro, em primeira pessoa do singular, pode-se dizer que a motivação principal foi a de não trair o “espírito” da obra matriz e, ao final do processo, apresentar ao público um filme ressentido desta traição.

Diante de dúvidas tão pertinentes, de falta do mínimo de evidências que confirmem, ou pelo menos indiquem, um caminho afirmativo na proposição de uma primeira pessoa realmente problemática, resta-nos agora aprofundar a questão partindo para uma análise mais abrangente, que justifique com outros exemplos a razão deste ensaio. Esperamos corresponder as expectativas no próximo capítulo, ainda que sintamos o chão tremer sob a fragilidade de nossas estruturas, por ora, mais problemáticas ainda.

Guilherme Sarmiento





* A primeira parte desse ensaio encontra-se em Plano Geral, edição 49.