Spider:
a primeira pessoa no cinema* 2-Spiders ** Podemos nos confrontar com dois tipos de adaptações: as adaptações que exigem o livro, mantendo um diálogo permanente com a obra original e assumindo-se como uma leitura privilegiada; as adaptações onde o livro é tão somente uma referência dramática e nominal, tornando mais autônoma a sua compreensão para os que desejam simplesmente assisti-lo, sem maiores conseqüências. Paradoxalmente, quanto mais livre é a adaptação da obra cinematográfica, mais dependente do livro ela se torna, pois já que sua constituição assumidamente híbrida não permite que os traços herdados do verbo silenciem sua herança em meio a tantas outras. Na face do cinema livremente adaptado, explicitamente, trava-se um diálogo para o qual a permanência do objeto livro exerce papel, apesar de estarmos lidando com celulóide, fundamental. Neste sentido, o filme reitera constantemente seus apelos à intertextualidade, fornecendo inúmeros enigmas cujas chaves encontram-se, muitas delas, guardadas entre os tomos da biblioteca, ou, no interior mesmo das obras literárias. Muitos são os cineastas que assumem dentro do filme a posição efetiva de um leitor criativo, aproximando suas adaptações desta perspectiva de diálogo com os livros de origem. Um dos mais célebres e tenazes representantes tropicais, certamente, é Júlio Bressane. Brás Cubas é o exemplo cabal de uma obra cinematográfica livremente inspirada onde a compreensão do filme fica comprometida caso o espectador não tenha se deparado alguma vez com o livro de Machado de Assis. Desde a memorável primeira seqüência, na qual a ossada de Brás Cubas é convidada a dar o testemunho impossível, vemos que o diretor reafirma a cada plano sua intenção em manter o livro como fonte inesgotável de possíveis analogias. Para saborear melhor suas ironias é preciso ter provado das ironias de Machado. Já Spider adequa-se mais ao grupo de adaptação independente, onde a sombra do livro adquire menor vulto sob o corpo da narrativa. Vê-se o filme como um produto autônomo, ainda que sua voz abrigue a esquizofrenia alheia (na verdade nem tão alheia, já que o escritor de Spider, Patrick McGrath, assina o seu roteiro). Esta independência fundamenta-se, especialmente, na exploração máxima dos recursos cinematográficos para a construção de um realismo subsistente, deixando a voz interior do protagonista, sua existência textual, sub-exposta em camadas de imagens e atmosferas. A percepção de que o livro é um dos elementos constitutivos de sua estrutura fica clara desde a apresentação dos créditos, porém, o realismo da linguagem impede uma transparência definitiva ao ponto de mostrá-lo como uma simples leitura, uma interpretação privilegiada, mas nunca definitiva. Esta opacidade serve aos interesses exclusivos do filme, que se declara aos olhos do público como uma transposição o mais imparcial possível, o mais fiel possível, mas que, no final das contas, nada mais é do que uma interpretação do texto, passível de toda a série de interferências comuns ao processo de leitura. O livro Memórias Póstumas de Brás Cubas só existe um. Filmes existem três: de Júlio Bressane, de André Klotzel e de Fernando Cony Campos. Assim como ocorreu com este exemplar, nada impedirá a existência de outras leituras cinematográficas de Spider no futuro. Portanto, quando um crítico pretende interpretar ou analisar um filme adaptado, deve estar atento aos artifícios que almejam torná-lo uma visão canônica de sua matriz, para não acabar agregando suas ponderações nesta insustentável mitificação. Para isso, roga-se a leitura do livro de origem e a constatação fundamentada de que o filme adaptado, por mais que aparente isenção, nunca deixará de ser uma interpretação dada por um processo comumde leitura. ** “Sempre achei curioso conseguir recordar incidentes da meninice com clareza e precisão, enquanto eventos ocorridos ontem parecem obscuros, e não sinto confiança alguma em minha capacidade de recordá-los com exatidão.” No cinema, tal jogo narrativo encontraria sérios obstáculos. O maior deles, sem dúvida, o de adequar a voz em primeira pessoa desta personagem, cuja insanidade encontra-se protegida pelos artifícios próprios da literatura, que lhe asseguram a razão, pois não nos é dado vê-la, mas imaginá-la. Não estamos diante de um indivíduo em carne e osso, mas de suas impressões. Sob a carapuça que lhe confere a narrativa escrita, Spider pode se fazer de são, já que é aquele a quem o autor conferiu o dom da palavra. E pode também esconder o rosto da mãe, já que as palavras fornecem fosco material para a omissão descritiva, uma preciosa mantilha para os desígnios do escritor e sua personagem, de modo que o leitor possa imaginar a prostituta Hilda no lugar de uma senhora mãe de família. Sabemos tudo através da perspectiva deste olhar inconsciente da própria loucura e dos próprios delírios. O que possibilita também a inconsciência dos leitores até o momento oportuno, quando a esquizofrenia irrompe no discurso de modo a reorganizar a trama, fornecendo-lhe um sentido. A questão principal da adaptação cinematográfica de uma obra com estas características seria o ponto de vista comprometido da narrativa revelado a posteriori. Como Cronenberg iria manter incólume dos espectadores a loucura da personagem principal em primeira pessoa, como fez o escritor no livro, quando, a matéria prima do cinema é a imagem e, neste caso específico, a imagem do rosto de um homem perturbado por visões, convulsionado por visões que lhe fogem do controle? A resposta dada pelo diretor, com o auxílio do próprio Patrick McGrath na realização do roteiro, além de satisfazer plenamente as expectativas do texto fornecendo uma adaptação exemplar, é capaz de levantar questões muito interessantes com relação à linguagem do cinema. No filme, optou-se por assumir a loucura do personagem desde o início. Não temos dúvidas de que Ralph Fines interpreta um louco logo que ele desce na estação, logo que a câmera focaliza seu rosto, desde o primeiro fotograma. Da mesma forma que a escolha de Miranda Richardson para os papéis de mãe e prostituta, respectivamente, deita por terra as iniciais intenções do escritor, muito claras, de mantê-las distintas através do olhar de Spider. Os simulacros utilizados pela narrativa escrita, possibilitados por uma narração em primeira pessoa, são substituídos pela crueza de um olhar cinematográfico em terceira pessoa. Na maior parte do tempo, a câmera permanece distanciada de seu objeto, como por exemplo, no momento em que Spider revisita o seu passado e o vemos emoldurado pela janela, no lado externo de sua própria casa, assistindo uma das cenas de sua vida. Esta adaptação, aparentemente simples, exemplifica a complexa relação entre o Cinema e a Literatura, sobretudo, a problemática da primeira pessoa no discurso cinematográfico. A grande dificuldade em tal afirmação
reside em saber se esta problemática expressa pelo confronto do livro
Spider com o filme Spider
não é um fenômeno localizado, decorrente, unicamente, das opções particulares
dos autores do filme, ao invés de um fenômeno abrangente, cujas causas
partiriam da natureza própria da linguagem cinematográfica, ou melhor,
se esta substituição de uma voz narrativa por outra seja muito mais em
decorrência de escolhas nada arbitrárias, que resultassem em uma adaptação
o mais fidedigna ao espírito da obra matricial, ou se é a conseqüência
de uma dificuldade inerente aos recursos cinematográficos, obrigando os
autores a adaptarem esta primeira
pessoa, aprioristicamente, problemática. Eis a questão. **
Quando um roteirista parte de idéias próprias, tem um infinito a dispor. Ao partir de um livro, um infinito disposto. As escolhas, tanto para o que escreve uma obra original como para o que se depara com o desafio de uma adaptação, são muito próximas, na medida em que o livre arbítrio, inferno dos homens, pode desvirtuar tanto a vida como as obras livremente inspiradas. Apesar de já ter um drama delimitado, com personagens e paisagens fornecidas pelo livro, uma adaptação enfrentará, a princípio, os mesmos percalços que um leitor comum enfrenta ao iniciar um processo de leitura. “Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo.”, diz Umberto Eco. “(...)E essa liberdade é possível precisamente porque- graças a uma tradição milenar, que abrange narrativas que vão desde os mitos primitivos até o moderno romance policial- os leitores se dispõem a fazer suas escolhas no bosque da narrativa acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras.” A diferença quando se remete às adaptações cinematográficas reside no fato de ser uma leitura aditivada pela autoridade de um outro artista, o que transforma as interações subjetivas existentes entre um simples ato de leitura em um evento cujas conseqüências, de uma forma ou de outra, influenciarão nas futuras apreciações da obra literária. Ao pôr em prática a série de opções deflagradas já na construção do roteiro, as escolhas das locações, dos atores, etc, o filme está cristalizando a leitura, fornecendo para futuros leitores referências visuais para recorrer, caso tenha lido o livro ou venha lê-lo, interferindo em sua atividade participativa de maneira sutil, mas efetiva. Depois de assistir o filme de Cronenberg, como imaginar outro Dennis Creg que não o interpretado por Ralph Finnes? Em meio a tal responsabilidade, pode-se argumentar que as opções realizadas por McGrath na adaptação tiveram unicamente a intenção de manter o realismo do livro. A escolha do ponto de vista onipresente de um narrador esquizofrênico acarretaria o uso de recursos extremamente subjetivos, tornando as imagens distorcidas ou por demais barrocas, sem com isso resultar em um produto que satisfizesse plenamente o espírito da obra. André Bazin observou que, para se adaptar uma obra literária, exige-se do cineasta, antes de mais nada, talento criador. Ele terá que reconstruir o equilíbrio narrativo através de recursos diversos, sabendo selecionar e adaptar elementos conformados em um sintagma, para em seguida raciociná-los sobre um meio de expressão mais fluido e direto, com prioridades que muitas vezes distendem o tema, sintetizam o tempo, privilegiam o gesto. “Justamente as diferenças de estruturas estéticas tornam ainda mais delicada a procura das equivalências, elas requerem ainda mais a invenção e imaginação por parte do cineasta que almeja realmente a semelhança ”, conclui Bazin. A mesma conclusão chega Joaquim Pedro de Andrade, após a realização de muitas adaptações antológicas: “Freqüentemente quando a forma literária parece insusceptível de gerar uma forma cinematográfica, é porque ela pode gerar uma forma nova. Mas isso implica num processo de criação, nunca numa transposição mecânica.” Desta forma, quando o diretor e o roteirista de Spider “optam” pela terceirização do olhar do filme, ao invés de seguir à risca a voz narrativa do livro, em primeira pessoa do singular, pode-se dizer que a motivação principal foi a de não trair o “espírito” da obra matriz e, ao final do processo, apresentar ao público um filme ressentido desta traição. Diante de dúvidas tão pertinentes, de falta do mínimo de evidências que confirmem, ou pelo menos indiquem, um caminho afirmativo na proposição de uma primeira pessoa realmente problemática, resta-nos agora aprofundar a questão partindo para uma análise mais abrangente, que justifique com outros exemplos a razão deste ensaio. Esperamos corresponder as expectativas no próximo capítulo, ainda que sintamos o chão tremer sob a fragilidade de nossas estruturas, por ora, mais problemáticas ainda. Guilherme Sarmiento
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* A primeira parte desse ensaio encontra-se em Plano Geral, edição 49. |