Engraçado perceber que no cinema de Nanni Moretti existe esse conceito fundamental, o do caminho a ser percorrido. Pode ser o da realização cinematográfica (Caro Diário, Aprile), o do retorno à família após longo período e longa distância (A Missa Acabou), o do confronto com o mundo no qual vivemos (A Missa Acabou, O Quarto do Filho) o do nascimento de um filho (Aprile) ou o da morte de um filho (O Quarto do Filho). Um olhar mais atento, porém, revela que esses percursos traçados por Moretti só o interessam na medida em que possibilitam ao autor situar seres humanos bastante diversos (e também semelhantes) se movimentando em caminhos onde o sinuoso e o belo, o esclarecedor e o confuso se entrecruzam. É desta forma que conhecemos o padre Guido, Michele Apicella, o diretor de cinema e o psicólogo Giovanni (todos interpretados pelo próprio Moretti), e é mantendo-se fiel aos percursos destes personagens que Moretti estabelece sua singular obra, ainda pouco comparável a quase tudo que se faz no cinema de hoje. O fato de Moretti protagonizar todos os seus filmes revela o quão pessoal lhe é o trabalho de criação. Seja em filmes como Palombella Rossa e Ecce Bombo - onde o diretor interpreta o personagem de Michele - ou Caro Diário e Aprile - onde interpreta a si mesmo -, o que permanece sempre é a necessidade de usar todos os meios possíveis para se criar uma gramática cinematográfica que se aproxime, por exemplo, à escrita de um diário. Vale aqui lembrar de Godard e Coutinho, dois cineastas cujos filmes na medida do provável podem trazer à lembrança o cinema de Moretti: de Godard observamos o formato ensaístico do qual Caro Diário e Aprile são os exemplares mais óbvios (mas certamente não os únicos), e na necessidade de tentar todo o tipo de aproximação com os personagens de seus filmes notamos ecos do cinema de Coutinho. Mas é justo o que distancia Moretti dos dois autores aquilo que torna seu cinema num objeto de análise tão rico e surpreendente: se Godard passa a impressão de articular seu discurso fílmico como se estivesse revendo uma série de anotações aleatórias realizadas durante certo período, buscando construir todo o tipo de conexões entre tais anotações, Nanni parece mais à vontade com a intimidade do diário, um diário que é organizado em detrimento não apenas de como o autor observa as coisas ao seu redor mas também da maneira que o mundo o afeta; se Coutinho se doa principalmente ao entrevistado e no diálogo estabelecido com o outro, Moretti ao contrário parece ter grande interesse pelos diálogos (e pelos questionamentos) que trava consigo próprio, dando a eles a mesma importância que vemos nas várias conversações que ele mantém com toda a sorte de indivíduos. Até agora temos as idéias de um percurso a ser traçado e de um diário a ser (d)escrito, que são de fato bastante interessantes e de certa maneira até complementares. Mas qual operação Moretti realiza para unir estes dois registros e tirar de ambos um formato de trabalho, uma idéia de mise en scène? O que acaba por surpreender é a simplicidade da escolha de Nanni, simplicidade esta que fica ainda mais aparente quando nos deparamos com os resultados de seus filmes: é precisamente a passagem, diante da sua câmera, de eventos, das pessoas, das músicas, de carros, de casas... enfim, do mundo aquilo a que Nanni se dedica. É um trabalho, é o seu cinema e é especialmente um credo, uma necessidade que faz Moretti dizer em dado momento de Caro Diário que "Gostaria de fazer um filme apenas com casas, nada mais a não ser casas", e prosseguir essa fala com várias casas passando pela sua câmera: apartamentos, mansões, pequenas villas de subúrbios, construções públicas, hospitais etc. Moretti é um desses gigantes do cinema moderno que não se importa por outra história que não seja a história do mundo no qual vive e do qual faz parte. O fato de ser italiano e vincular-se a uma tradição que no seu país já havia sido formada por, entre outros, Marco Bellocchio (com filmes como De Punhos Fechados e Olhos na Boca) e Bernardo Bertolucci (os ecos de Antes da Revolução em A Missa Acabou são bastante notáveis), ajuda a compreender um pouco o que sua arte apresenta de tão profundamente italiana: uma capacidade de privilegiar o itinerário individual sem desprezar a crítica social e política. É sempre a tentativa de compreender e pensar as coisas - todas as coisas - aquela que mais o interessa. A galeria de personagens - o amigo desiludido, a irmã grávida, a filha que sofre com a perda do irmão, a mãe que não suporta o processo de separação -, portanto, está intrinsecamente ligada a uma galeria de situações - a situação política da Itália, a perda do ente querido, a amargura pós-68, a busca por um assunto sobre o qual realizar um filme - e sentimentos - desespero, euforia, depressão, agonia, felicidade, angústia, incerteza. Tudo isso no cinema de Moretti é unido por um pensamento que é humano por natureza e político como conseqüência. Uma das coisas que no cinema de Moretti é tão preciosa, encantadora e fantástica - algo que deve ser celebrado principalmente quando temos em vista muito do que se faz hoje em cinema - é o fato dele elucidar um dado que é extremamente simples, mas dar a esse dado uma importância tão grande que se torna necessário transformá-lo em um dos motes do seu cinema. Esse dado é simplesmente o seguinte: estar no mundo é uma forma de nele atuar. É desta forma que percebemos que pouca coisa separa o cineasta engajado de Caro Diário do psicólogo de O Quarto do Filho, o político de Palombella Rossa do professor de Bianca. Política, andar de vespa, conversar, fazer cinema, celebrar um gol, cantar, indagar o estado das coisas, andar de carro com a família, visitar um amigo, nadar, beber um gole d'água, dançar - certamente não uma questão de repertório, mas uma invenção constante a partir de tudo aquilo que você faz e que lhe diz algo, tudo aquilo que significa alguma coisa para você. Uma escrita pessoal mas que não tem sua importância reservada apenas para Moretti, pois da mesma maneira que nos fala do seu autor essa escrita nos fala sobre o mundo. Conjugar o coletivo com o singular: é esse o pequeno e majestoso milagre que, filme após filme, Moretti opera. Bruno Andrade |
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