“Nada disso
é importante, mas ninguém, As mudanças do mundo e a invenção de suas memórias, esse parece ser o leit motiv de um artista que carrega não mais o fardo, mas as asas pesadas da história em suas costas. Retratado de forma paródica em alguns de seus próprios filmes (o personagem do velho quase-patético que tenta re-existir diante da contemporaneidade), Manoel de Oliveira será sempre objeto de enigmas. De seus primeiros trabalhos como documentarista (década de 30) à unanimidade internacional de Vou para Casa (2001), passando por um filme post-mortem (Visita, filme-memória que só poderá ser exibido após o falecimento do diretor), a obra de Manoel de Oliveira carrega a vastidão de seus 72 anos de carreira e seus mais de 40 filmes. Jovem admirador de seu trabalho, centro meu olhar nos últimos 20 anos de sua obra (décadas de 80/90), período em que Oliveira, após 6 décadas de cinema, alcança o ápice de suas “conversas com Deus” e o ritmo de produção (um filme por ano!) que o tornariam, hoje, um grande entre os grandes. “O maior cineasta vivo!”, gritam alguns, hiper-elogio a que o diretor se sai com sábia ironia: “Não, não. Talvez o mais velho...” Engana-se quem busca em Oliveira um olhar em direção ao essencial, aos aprofundamentos psicológicos de uma alma desvendada – seu cinema é antes um ato de fixação de um teatro-vida mascarado, impenetrável, no qual os rituais emergem como os pontos raros de uma decifração misteriosa. Infinito atual, um infinito em ato, em atuação: Teatro. Oliveira não filma, portanto, a vida (nem mesmo a morte) – filma, sim, o teatro, a palavra, os rituais que escorrem e se conjugam aos corpos. Dizer que a Palavra é mais importante do que as próprias Imagens no cinema de Oliveira é cair numa lógica de decorrências, ou primazias, que me parecem, senão equivocada, bem menos interessante e verossímel. Manoel de Oliveira não parte da palavra, muito menos parte da imagem – um componente não decorre do outro, nem mesmo se condicionam como causa e efeito. Flertado com um paralelismo Spinozano, palavra e imagem encarnam as duas faces de uma mesma distensão do tempo, de uma dobra (teatro do teatro) onde o cinema se dá como um sentido unificado. Os planos estáticos e vagarosos com que Oliveira encanta a muitos e irrita a tantos outros, são a criação de uma fruição intra-imagem, onde a montagem se dá no jogo de trocas de olhares e projeções de sons, onde cada contracampo tem o valor de uma rima em ressonância: nem como objetividade nem como farsa, mas como a máscara suave de um afeto conjugado em seu próprio evento. Substância da história, redobrado sobre a memória e refundando-se a cada instante em si mesmo. Daí o cinema de Oliveira se dar numa investigação que não desvenda, numa crítica que não refuta, de uma tensão do e no espírito que são senão a pura atualização dos fluxos da memória. Ao contrário do desvendamento, Oliveira se interesse pelo mistério: não o mistério doloroso da dúvida, mas o mistério de uma alegria abismada e inquieta em direção a uma imortalidade impossível (O Convento e Inquietude são filmes primorosos ao abordar essa questão). Religioso, Oliveira opera um cinema raro em seu encantamento do mundo, não buscando uma transcendência (para-fora) mas um encanto da imanência. Religado a um Deus-mistério que não restringe a vida, não a explica. Pelo contrário: um Deus-questão, política que se dá no encontro com o espectador, que religa o espírito a uma incerteza pulsante – resistências da memória. Uma resistência que não refuta, que não se funda no contrário – mas num poderoso interesse pelo mundo, por suas fraturas (cito A Carta), por uma alegria da curiosidade. “Pedro Macau/ Que nas costas leva um pau”, dizem os versos à beira do caminho em Viagem ao Princípio do Mundo: a estátua de um homem ajoelhado com uma viga no ombro é a imagem de uma condição corpo-espírito não sacrificial, mas lugar contra-trascendente onde o desafio não é obstáculo mas lugar de sua própria atuação. “Somos todos Pedro Macau” – conclui o personagem. A idéia da viagem aparece em seus filmes como uma espécie de encontro fora do tempo, numa re-dobra do tempo. Viagem não-turismo, viagem que não se dá como escape à vida, mas como banhar-se em seus fluxos – nem descoberta do outro, nem descoberta de si mesmo, mas uma jornada física por corpos, vestígios, reticências do espírito. Ainda os mesmos/ainda que outros, são assim que os personagens e as imagens de Oliveira são depois de suas jornadas – não se trata, portanto, de um cinema road movie da libertação, da negação do cotidiano em prol de uma fluidez adolescente – mas da jornada que cruza os rastros físicos da lembrança. Não em busca de uma essencialidade, mas de um princípio, uma certa tendência de criação que emerge contrastes, encontros e dissonâncias. Esse é o pulso criativo do cinema de Oliveira: um olhar metódico sobre as nuances que através de seus contrastes, evidências, presenças e ausências, expressam o teatro: máscara da vida no olhar de seus atores (exemplo maior nos olhos de vidro de Chiara Mastroianni em A Carta ou nas expressões enigmáticas dos “oliverianos” Leonor Silveira e Luis Miguel Cintra em Vale Abraão e O Convento). Um olhar que não visa a conhecer qualquer coisa, mas admirar a própria vida – numa beatitude que se funda não mais na privação, mas no entregar-se às coisas (seus documentários, desde O Pintor e a Cidade até O Porto da Minha Infância, são a expressão dessa investigação que não desvenda). Abismado diante de um tempo, o cinema de Oliveira não uma faz história de cronologias, mas uma arqueologia do instante; não é classicista na adaptação de obras da literatura, muito menos se propõe a uma modernização onde trocam-se as máscaras e permanecem os espíritos (joguinhos pós-modernos)...Mais uma vez: em Oliveira, as máscaras são os espíritos nas formas de suas tensões: Ordem aristocrática e universo pop; teatro e televisão; juventude e velhice, são nuançados num olhar onde personagens não agem como propagadores de ideais novos ou antigos, não há batalha entre moderno e arcaico, mas defasagens e encontros, paixões de toda ordem – do amor impossível entre Pedro Abrunhosa e Madame Clevès à angústia solitária de Michel Piccoli (em Vou para casa). Por dentro de suas vivências, suas contingências, personagens imortais de um momento que, através de planos longos e palavras declamadas, vão se distendendo em acúmulos de vida (a antológica imagem dos sapatos de Piccoli). Acúmulos que se multiplicam em arquivos (no monastério de O Convento), nas lembranças narradas em família (a tia de Viagem...), nos destroços de monumentos e edifícios (a própria casa de sua infância em Visita) – é desse magma que o cinema de Oliveira retira o arsenal de seus sentidos. Pistas do mundo, não o mundo. E isso não para se crer que haja um mundo a ser desvendado. Não: mundo é enigma. O resto é literatura, cinema, palavra. “Porque ele não fala a nossa fala” – pergunta a velha tia portuguesa do ator francês Afonso em Viagem ao Principio do Mundo, a que o personagem responde “O idioma..mas que importância isso tem?” Essa fala, assim destacada, desdobra-se na relação entre as imagens e as palavras no cinema de Oliveira: não se tratam de textos informativos, narrativos, palavras que contam mais do que imagens; mas do ato de se produzir as palavras, de a vida se conjugar em sua forma (comentário de um diretor que vive entre a consagração na França e os percalços em Portugal). Quando o ator encara de perto a tia e pede para que ela pegue em seu braço, há um momento de silêncio onde as palavras tornam-se corpo, movimento de lábios, gestos – mesmo sem decifrar palavras, os dois se encontram na imagem. Daí minha afirmação de que a imagem em Oliveira não é o “suporte para as palavras” que alguns identificam – não, as imagens são o corpo do filme, como as palavras são seu espírito...mas corpo e espírito se conjugam juntos, paralelos, tensionados em cinema. Sem dúvida, é a palavra que dá ao cinema de Oliveira seu lugar de movimento, é ela quem projeta olhares, é ela quem atravessa a imagem em forma de sequenciação de ações e anunciações (Palavra e Utopia leva isso ao extremo na figura profética de Antonio Vieira). Em Oliveira, o mundo-corpo-imagem não caminha, está ali, É. São as palavras (isso é, os modos com que seus personagens se relacionam em códigos e são lançados a se narrar) que inventam o ritual do movimento, fazendo da imagem do cinema mais do que a contemplação da eternidade. Daí as histórias de Manoel de Oliveira serem, por si, efêmeras narrações de sentimentos: de amores frustrados (O passado e o presente, Amor de Perdição, Benilde, outros), de dramas familiares (Vou para casa, entre outros), de brincadeiras de crianças (Aniki-Bobó) – pois não se trata de uma contação de eventos, mas da observação de como os atos e rituais cotidianos (ou eventos que lhe tiram do eixo em Vou para casa) se impregnam em seus personagens (dos aristocratas aos miseráveis de A Caixa). Mesmo quando voltado para um evento Histórico (Non, ou a vã glória de mandar) sua perspectiva não é a da reconstituição de atos, mas a de um olhar crítico sobre as práticas da palavra e as formas como ela se inscreve no mundo do poder e da batalha. Um olhar crítico que, em momento algum torna-se ranzinza, desinteressado, amargo. Melancólico talvez, “desiludido” (como disse certa vez em entrevista), saudoso de um presente que nunca poderá por ser abarcado, mas cujos rastros Manoel persegue ciente de sua impossibilidade (lembremos de “Pedro Macau”). Historiador do momento Agora, Oliveira faz de seu cinema um lugar onde a simplicidade reiterativa de temas da vida reforçam a complexidade silenciosa que ela esconde, simula, disfarça – “É preciso que o cinema seja simples, porque as paixões, os sentimentos, a vida, nada é claro”. E por simplicidade não decorre um discurso obtuso, duro, simplificador da vida, não: Manoel de Oliveira dedica seu cinema a tornar a vida inexplicável. O Princípio da Incerteza (sua mais recente parceria com a amiga e escritora Agustina Bessa-Luís), que gira em torno das dúvidas que permeiam o ritual do casamento, é o exemplo de um olhar em que a crítica não se confunde com desprezo, onde a vida não se resume às nossas vontades ou julgamentos de conduta. “Cada gesto é uma aventura”, diz Oliveira, e, citando Spinoza traduz-se: “Julgamo-nos livres porque ignoramos os impulsos que nos levam a atuar. Há forças exteriores, inexplicáveis, que nos atiram para frente...”. Com
os olhos no abismo e os ouvidos nas palavras: cinema eternamente agora.
Por que? “Porque seu eu parar...ai de mim”1,
brinca o cineasta. Felipe
Bragança
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