Joe Dante e a política do olhar
Gremlins
de Joe Dante
Num primeiro momento, a cultura
popular
Joe Dante cresceu consumindo
em altas quantidades filmes B de ficção cientifica e horror,
revistas em quadrinhos, televisão e outros elementos da cultura
popular americana. Está longe de ser o único cineasta para
quem Mad Magazine ou os filmes da American International
tiveram impacto na formação (outro é Robert Zemeckis,
para ficarmos num exemplo da mesma geração de Dante), mas
em nenhum outro cineasta americano o impacto que a exposição
a este tipo de cultura popular tida como de baixa qualidade se dá
como em sua obra. Porque além do habitual caldeirão de referências,
o que acaba por diferenciá-lo é a forma como o cineasta
pensa esta cultura: como ela é produzida, exibida e recebida.
A obra de Joe Dante sempre mantém
um pé na sofisticação e outro no que o cinemão
americano tem de mais popular, incluindo aí um uso freqüentemente
pesado de efeitos especiais. Talvez venha desse fato a relativa impopularidade
dele junta à crítica (e em menor quantidade junto ao público,
ao menos na fase pós-Gremlins), mas também muito
o que há de interessante em seu cinema: a forma como Matinee
consegue funcionar ao mesmo tempo como uma reflexão sobre a Guerra
Fria e uma afetuosa homenagem a William Castle (o picareta cineasta/produtor
de filmes de terror que costuma instalar recursos como cadeiras que dão
choques para assustar mais o público) seria o perfeito exemplo
dessa relação ambígua.
No centro do cinema de Dante
costumam girar dois elementos principais: cultura e violência. Talvez
mais importante seja o retrato de como elas se misturam de forma que muitas
vezes nem percebemos a presença da segunda em nosso cotidiano.
Uma cena bastante comum nos filmes de Dante é aquela em que objetos
de uso diário acabam transformados em armas com poder de destruição
(conceito este explorado ao máximo em Pequenos Guerreiros).
È importante levar em
conta que se por um lado Dante se propõe a criticar muito da cultura
americana, ele não deixa de se inserir nela e não só
sabe disso, como não consegue deixar de possuir afeto por muito
do que forma ela; e ao contrário do que alguns podem imaginar,
isto é muito bom. Longe de tomar uma atitude superior diante do
seu objeto de estudo e impor uma simples negação dele, o
cineasta está interessado em dar ao espectador justamente ferramentas
para que se guie através deste objeto. O que seu cinema propõe,
portanto, é justamente a criação de um olhar mais
atento.
A estréia de Dante, Hollywood
Boulevard (co-dirigido pelo excelente mas pouquíssimo conhecido
Allan Arkush), era uma produção da New World de Roger
Corman, satirizando exatamente o tipo de filmes B que a produtora fazia
(incluindo pontas de vários diretores como Paul Bartel e Lewis
Teague interpretando versões cômicas de si mesmos). No seu
primeiro solo, Piranha, a obra de Dante já começava
a se desenhar de forma mais clara. Esta deliciosa sátira/cópia
do Tubarão de Spielberg apresenta sua protagonista enquanto
ela joga um fliperama inspirado justamente em Tubarão. Pequeno
detalhe que passa quase despercebido: no jogo, se controla o tubarão
e o objetivo é justamente comer os banhistas. O que segue no filme,
no entanto, investe parcialmente em desestabilizar esta lógica.
O diretor inclusive faz o uso mais incômodo possível de uma
trama paralela a respeito da possibilidade das piranhas chegarem a uma
colônia de férias infantil. Todos sabemos que filmes sobre
incontroláveis forças da natureza têm seu subtexto
político, e aqui Dante não deixa dúvidas: as piranhas
superdesenvolvidas foram criadas pelo exército "para desestabilizar
a bacia fluvial vietnamita", o cientista responsável pela manutenção
delas (Kevin McCarthy) nos informa.
Nos filmes de Dante uma figura
presente sempre é a mídia, seja através de televisores
espalhados pelos cômodos das típicas casas de classe média
que povoam seus filmes (o conteúdo deles nunca é acidental),
seja através dos personagens. Repórteres de TV protagonizam
Grito de Horror (que conclui com uma morte exibida ao vivo em rede
nacional sendo desconsiderada por um espectador como mais um espetáculo
de efeitos especiais) e A Segunda Guerra Civil. A televisão
também figura com importância em Gremlins 2 e Matinee,
assim como nas campanhas de divulgação em Pequenos Guerreiros.
O cinema é central em
Matinee e de forma menos direta em Gremlins, Pequenos
Guerreiros e em duas releituras de filmes antigos, Viagem Insólita
e Ligeiramente Grávida. Em Viagem ao Mundo dos Sonhos,
três adolescentes sonham em viajar para o espaço, fascinados
pela imagem vendida pelo cinema e TV. São contatados por um alienígena
que lhes dá as pistas para como construir uma nave com eletrodomésticos
velhos. Quando chegam ao espaço descobrem que este é um
tédio não muito diferente do lugar de onde vieram, que os
dois alienígenas que os chamaram não vão lhes contar
nenhum grande segredo. A grande aventura só existe no cinema. Pior:
os alienígenas são crianças como eles, fascinadas
pela Terra que eles conhecem - é obvio - via filmes e TV e morrem
de medo de vir para cá por acreditarem que todos os seres humanos
são extremamente violentos. "Mas são só filmes",
um dos garotos insiste para o alienígena incrédulo. No cinema
de Dante, eles nunca são.
Joe Dante, o contrabandista
No seu documentário sobre
cinema americano, Martin Scorsese nomeia um grupo especial de cineastas
de "contrabandistas", aqueles que faziam filmes que na superfície
pareciam exercícios de gênero banais, mas que revelam escondidos
neles diversas idéias, sendo que muitas delas dificilmente poderiam
ser tratadas facilmente de forma mais direta. Dante é dos poucos
cineastas da sua geração que parece ter levado tal idéia
adiante, ao menos a partir de certo momento. Pode se reconhecê-la
com freqüência em produções B da American
International e da própria New World, mas com o passar
do tempo, a maior parte destes cineastas viram suas obras ou inflar em
auto-importância (Jonathan Demme) ou simplesmente sumiram do mapa
(Richard C. Sarafian). De fato, quando perguntado se ele não se
incomodava de ter próximo a zero de reconhecimento nos Estados
Unidos, Dante respondeu que não, que se fosse mais reconhecido
talvez não conseguisse incluir muito dos elementos que inseria
nos seus filmes.
Na obra de Dante este conceito
chega a ser quase tematizado de forma mais direta. Em vários filmes
elementos que nos são apresentados como inocentes se revelam perigosos.
Em Grito de Horror, uma colônia de férias se revela
um covil de lobisomens; na sua contribuição para No Limite
da Realidade uma simpática criança acaba revelando todo
o lado mais cruel e egoísta da imaginação infantil;
nos dois Gremlins adoráveis criaturas (inspiradas no ET
de Spielberg) se tornam monstrinhos anarquistas.
No papel talvez soe direto e
pouco sutil, mas o segredo de Dante é justamente construir estes
elementos de forma que eles se integram à sua narrativa de gênero
sem atrapalhá-la, algo que consegue sem grande dificuldade. Quem
quiser ver Grito de Horror apenas como um divertido e assustador
filme de lobisomem não deixará de sair satisfeito mesmo
se não ver a sátira a comunidades new age ou os muito
mais interessantes paralelos entre a narrativa de filmes de horror e a
forma como um canal de TV apresenta suas notícias.
A única possível
exceção nisso seria Viagem ao Mundo dos Sonhos, que
flerta de forma tão direta em ser uma antificção-científica
que chega muito próximo de se tornar um filme esquizofrênico,
com as idéias de Dante jogando o tempo todo contra o que ele supostamente
se propõe a narrar. Filme inegavelmente de autor, mas de maior
interesse e sucesso talvez apenas para seus fãs.
Há uma cena em Gremlins
2 que ilustra bem os métodos de Dante. O gremlin inteligente
está sendo entrevistado num talk show da TV. O entrevistador
(Robert Prosky) pergunta de forma séria o que é que aquelas
criaturas pretendem. No que ele responde "O que nós queremos é,
acredito o que todos querem, civilização. Os bons pontos:
diplomacia, compaixão, padrões, maneiras, tradição...",
na seqüência um outro gremlin entra no plano fazendo
bagunça, sendo devidamente morto pelo gremlin inteligente
que se desculpa pelo comportamento não civilizado... do falecido.
Há muito subtexto na cena que vem próxima ao final do filme,
especialmente levando em conta a violência anárquica dos
gremlins e que o que o filme oferece como normalidade - um arranha-céu
controlado por computador onde ser localizado fora do local de trabalho
é punido com demissão - é de um completo absurdo.
Ao mesmo tempo não só a cena se encerra numa chave cômica
(que não deixa de ter suas conotações sérias)
como o apresentador está vestido como Drácula e o tom da
cena é de uma comédia leve.
Importante para a viabilidade
de boa parte da carreira de Dante é sua amizade com Steven Spielberg,
que produziu diversos dos seus filmes (os dois Gremlins, Viagem
Insólita e Pequenos Guerreiros). Spielberg chegou inclusive
a garantir a integridade de Gremlins depois que a Warner ameaçou
cortá-lo por ser pesado demais para crianças. A relação
dos dois é mais interessante ainda se levarmos em conta que boa
parte da obra de Dante, desde Piranha, parece se dedicar a inverter/criticar
muito da obra de Spielberg. Quando em No Limite da Realidade, outra
produção de Spielberg, o episódio desse sobre um
grupo de velhinhos que redescobrem a felicidade ao reencontrar a criança
dentro deles termina e na seqüência começa o de Dante,
sobre um pirralho de dez anos que mantém a família presa
dentro de casa para obedecer todas as suas vontades enquanto acredita
inocentemente que pode mantê-la feliz vendo desenhos e comendo diariamente
sanduíche, há um inevitável choque.
Nem sempre, porém, é
possível manter a completa independência num modelo de produção
como esse. Meus Vizinhos são um Terror, por exemplo, é
bastante prejudicado pela interferência do estúdio. O filme
é uma sátira sobre xenofobia, centrada num grupo de suburbanos
classe média comum que começa a vigiar seus novos vizinhos
que eles consideram esquisitões. Esquisitos, parece querer dizer
Dante, são os vizinhos ditos normais, que fazem de tudo para espiar
a vida na casa ao lado, isto até o final imposto pelo estúdio,
onde os novos vizinhos acabam se revelando perigosos, negando tudo que
veio antes.
Joe Dante não é
bem um desconstrutor de gêneros; ele prefere investigar como determinados
fenômenos funcionam. O primeiro Gremlins é menos uma
sátira aos contos de Natal que costuma ser tido do que um passeio
investigativo por suas regras. No meio disso aproveita para fazer algumas
sugestões como por exemplo de que a anarquia dos cartoons da
Warner da década de 50 é mais indicada para o formato do
que o sentimentalismo de Capra (Chuck Jones tem uma ponta; A Felicidade
Não se Compra passa na TV). Os gremlins parecem sugerir
a cada hora algo diferente: crianças, minorias, o subconsciente
dos habitantes do local, mas no final eles também desempenham uma
função não muito diferente das seqüências
de fantasia em um O Avarento. O que termina por aproximá-lo
de um Godard ou De Palma é exatamente o que há de político
em seu cinema, uma política do olhar, uma política que propõe
ver através dos mecanismos que normalmente conduzem o olhar do
espectador, algo que fica mais evidente nos seus três filmes sobre
a guerra (Matinee, A Segunda Guerra Civil e Pequenos
Guerreiros).
Joe Dante, o inventor de
formas
Três cineastas marcam
profundamente a obra de Dante: Chuck Jones (que chegou inclusive a ter
ponta em Gremlins e é responsável pelo cartoon
de Patolino e Pernalonga que abre Gremlins 2), Frank Tashlin e
Roger Corman (que produziu seus primeiros trabalhos e fez pequenas participações
em vários deles).
Jones era cartunista e Tashlin
começou como um para depois levar muito do que aprendeu no ramo
para as comédias que dirigiu. Os filmes de Dante, especialmente
a partir de Gremlins, parecem tentar continuar a explorar a relação
entre cartoon e cinema e o quanto o humor do primeiro consegue
funcionar e por vezes enriquecer o segundo.
Já Corman aparece no
gosto pelo fantástico, pela falta de vergonha em explorar histórias
que outros cineastas evitariam, pela habilidade em juntar sofisticação
e mau gosto (muitas vezes ao mesmo tempo, algo em que Tashlin também
era mestre) e na riqueza de muitas das soluções que o cineasta
encontra para os problemas dos filmes. Isto é bastante evidente
no sempre criativo uso dos efeitos especiais por parte de Dante. Seus
filmes freqüentemente fazem grande uso deles, mas nunca se tornam
exclusivamente "filmes de efeitos especiais". Dante sabe como garantir
que o elemento humano fique em relevo e sabe como tratar os efeitos de
forma que eles não soem excessivos mesmo quando constrói
planos que envolvam apenas criaturas não-humanas, como ocorre várias
vezes nos dois Gremlins ou em Pequenos Guerreiros (nestes
tempos de aborrecido CGI ultra-realista, os pequenos guerreiros, parte
efeito de computador, parte robôs, são um primor a partir
do qual alguns cineastas especializados em fantasia podiam aprender uma
ou duas coisas).
Viagem Insólita,
espécie de refilmagem livre do divertido Viagem Fantástica
de Richard Fleischer, ilustra bem um pouco disso tudo. No filme de Fleischer,
onde uma equipe médica era inserida dentro de um cientista doente
para realizar uma operação delicada, o conceito per se
era suficientemente atraente na época (o resto que havia de tensão
no filme era providenciada pela possibilidade de um espião comunista
estar infiltrado na equipe). Dante sabia que na altura de 1987 a idéia
de uma equipe médica passeando num corpo humano por si só
não era suficientemente atraente e constrói seu filme de
forma mais expansiva.
Um experimento dá errado
e um piloto (Dennis Quaid) que devia ser inserido dentro de um coelho
acaba parando dentro de um hipocondríaco (Martin Short). Isto serve
de desculpa para que o cineasta e seus roteiristas desenvolvam uma série
de situações uma mais absurda do que outra. Algumas envolvem
Quaid, outras Short (que acaba se vendo obrigado a passar por todo tipo
de situações típicas de um filme de ação
para as quais não leva o menor jeito). Aparentemente um filme mais
comercial acaba se tornando pessoal graças à direção
de Dante, menos por inserir os temas que aparecem em seus outros filmes
e mais porque a acumulação de situações absurdas
acaba por subverter a ficção cientifica típica e
tornar o filme tão anárquico quanto seus trabalhos anteriores.
Sobram idéias e originalidade, como na cena em que Quaid convence
Short a tomar uísque para que ele possa encher uma garrafa com
uma pequena gota ou a viagem dele pelo coração de Short,
ou nas cenas externas que envolvem os vilões, um estranhíssimo
caubói e dois vendedores de armas que acabam reduzidos ao tamanho
de anões.
Viagem Insólita dava
sinais da busca de Dante por fazer um filme que se assemelhasse a um grande
cartoon com personagens de carne e osso. O diretor chega o mais
próximo disso em Gremlins 2. Filme experimental de alto
orçamento, feito quase sem roteiro, talvez seja a maior prova da
inventividade de Dante. O cineasta recebeu a encomenda da Warner para
fazer uma seqüência para o popular primeiro filme da série
e pediu carta branca. Certos de que tinham um sucesso garantido nas mãos,
os executivos do estúdio concordaram e Dante teve completa liberdade
para criar seu filme. O resultado disso tudo impressiona: no começo
parece que vamos assistir a uma seqüência como outra qualquer
(exceção feita ao desenho protagonizado por Patolino e Pernalonga
na abertura). O filme parece seguir o mesmo rumo de outras seqüências,
com personagens sendo reapresentados e conexões sendo estabelecidas
com a primeira parte. É lá pelo vigésimo minuto do
filme que o diretor abandona qualquer interesse em contar uma história
e transforma seu filme em uma exuberante série de esquetes sobre
temas variados.
Dante segue criando novas formas
de construir situações cômicas enquanto faz comentários
sobre os mais diversos assuntos (a maior parte deles relacionados à
cultura e violência). O filme chega ao ponto de ser interrompido
no meio (supostamente porque os gremlins atacaram a sala de projeção)
para mostrar o crítico Leonard Maltin (o Rubens Ewald Filho local)
começando a ler sua crítica extremamente negativa do filme
original até ser interrompido e morto pelos gremlins. Quando
o filme chega ao seu clímax - um numero musical protagonizado pelas
criaturas - já não temos dúvidas de que estamos mais
próximos de um filme como Bang-Bang do que de uma superprodução
normal.
Joe Dante vai à Guerra
Em 1993, com Matinee,
Joe Dante inaugura uma seqüência de reflexões sobre
a guerra - talvez a parte mais importante de sua obra (infelizmente é
provavelmente a menos conhecida) - que depois se completaria com A
Segunda Guerra Civil (feito para a TV a cabo e lançado direto
em vídeo por aqui) e Pequenos Guerreiros. Nestes três
filmes (em particular nos dois últimos, pois Matinee sofre
de uma certa irregularidade), Dante conjuga tudo o que vinha desenvolvendo,
seja formalmente ou nas suas reflexões sobre cultura, e encaminha
muitos dos elementos de seu cinema para uma discussão sobre o tema
da guerra.
E como Dante pensa a guerra?
O que estes filmes propõem? O que primeiro salta aos olhos é
como eles estão distantes dos filmes que habitualmente tocam no
assunto. Porque o que Dante propõe é questionar como nós
consumimos a guerra, seja como ela é apresentada para o nosso consumo,
seja como nós nos posicionamos diante da imagem que recebemos dela.
Matinee trata da crise
dos mísseis de 62. A ação começa no dia que
a crise vem a público. Estamos numa pequena cidade litorânea
da Flórida (que serve também de base da marinha) e um diretor/produtor
de filmes de terror vem para a premiére de seu último
filme, Hormiga, sobre um homem transformado em homem-formiga devido
a um acidente nuclear. A partir daí veremos como uma certa realidade
reflete neste filme de ficção e como as notícias
da crise não estão próximas do filme de terror barato.
Hormiga em 1993 (ano
do lançamento do filme) é bem mais engraçado que
assustador (Dante aparentemente se divertiu muito filmando algumas seqüências
para o filme dentro do filme), mas Matinee compreende bem porque
tão engraçada fantasia ressoava como assustadora na época.
Da mesma forma, os exercícios para proteção em caso
de ataque nuclear que a escola onde o protagonista estuda realiza nos
parecem hoje muito engraçados quando levamos em conta o quão
inúteis eram e como, no fim das contas, o único efeito que
tinham era o de justamente aumentar a tensão entre os envolvidos.
Justamente aí reside
a grande sacada do filme: a forma como Dante aproxima as técnicas
do cineasta Lawrence Woosley de assustar os espectadores com a forma através
da qual a crise dos mísseis era difundida pela mídia. Em
ambos os casos o objetivo final dos responsáveis parece ser gerar
tensão e medo, e a forma como ambos chegam a isso, Dante parece
nos dizer, é muito similar (com a diferença que Lawrence
Woosley é ao menos um picareta honesto).
Já A Segunda Guerra
Civil mostra os fatos que levam os EUA a (como o título indica)
uma segunda guerra civil, partindo do ponto de vista de um canal de notícias
de TV a cabo. O que importa aqui novamente é como a situação
acaba apresentada ao público. O foco central do filme é
a forma como a TV repassa as noticias para a população,
mas mesmo quando corta para as duas partes envolvidas no conflito, vemos
os políticos reféns dos marqueteiros. De fato, o governador
de Idaho (Beau Bridges), que provoca toda a confusão, era um político
liberal que a um ano da eleição se tornou progressivamente
mais conservador quando descobriu que esta era a sua única chance
de reeleição. Acaba por ordenar o bloqueio das fronteiras
do estado para imigrantes. Enquanto isso, Índia e Paquistão
aumentam suas tensões, e um grupo de crianças paquistanesas
ficam órfãs. Uma associação do Idaho resolve
adotá-las, e a TV cobrirá tudo com ênfase, óbvio,
no bom-mocismo da associação. Outra grande idéia
do filme (tão discreta que quase passa despercebida) é que
o conflito Índia/Paquistão parece estar à beira de
se tornar nuclear, mas tão logo os problemas na fronteira de Idaho
surgem a TV, tendo encontrado algo que vende mais, o esquece.
O presidente, na expectativa
de agradar as minorias, anuncia que vai intervir na situação.
Acaba conseguindo o contrário. Nos EUA do cada um por si, a mídia
que em um momento tinha como projeto justamente aproximar os diversos
grupos que formavam a população americana hoje funciona
no sentido inverso. Há diversos grupos e é preciso de alguma
forma agradar a todos. Tudo no canal de notícias de Dante funciona
nesta lógica: há repórteres de todas as minorias,
nenhuma notícia pode ir ao ar sem que se avalie como ela vai ser
recebida por cada um dos diversos grupos étnicos/sociais.
Mas talvez o que mais chame
a atenção em A Segunda Guerra Civil é a forma
como nos lembra a cobertura dos nossos canais de televisão durante
todo o período que precedeu a guerra do Iraque, especialmente a
semelhança como o discurso que supostamente está na expectativa
de algum acerto diplomático é traído pela forma que
transparece do desejo de que o conflito chegue "aos finalmentes". Por
fim, Dante parece nos questionar o quanto isso tudo não é
algo que nós tendemos a comprar como a forma mais natural de tratar
a questão.
Curioso como Pequenos Guerreiros,
o último e de certa forma melhor dos filmes de Dante sobre a guerra,
acabou ironicamente sendo vítima de um dos seus objetos de sátira:
campanha de divulgação. No filme de Dante uma empresa lança
uma série de brinquedos infantis, metade dela composta de soldados
tipo Rambo (cujas vozes são na maioria fornecida por membros do
elenco de apoio de Os Doze Condenados) e a outra metade um grupo
de alienígenas pacíficos procurando voltar para casa, que
são programados para se esconder e perder. O filme de Dante era
em parte sobre a razão do primeiro grupo soar mais atraente e de
como a forma como eles eram vendidos tinha relação com isso.
O próprio filme acabou sendo vendido justamente como uma celebração
dos primeiros. Resultado: 9 de cada 10 críticas o trataram como
estúpido e violento demais para crianças.
No que consiste a violência
em Pequenos Guerreiros? Bonecos desmembrados, um dos passatempos
favoritos de garotos de 7 ou 8 anos. Ela é estilizada e cartunesca
a ponto de não encararmos-la como real, mas ao mesmo tempo nos
colocando na posição de questionar qual a diferença
entre os bonecos desmembrados e a violência cometida contra soldados
humanos num filme de guerra. Ou por que não entre os tais bonecos
desmembrados e os boletins sobre número de mortes em qualquer guerra?
Por que tendemos a aceitar passivamente a violência em todos estes
casos?
A grande maioria dos filmes
de guerra que vemos nos são vendidos como filmes anti-guerra, mas
são mesmo? Jonathan Rosenbaum costuma contar de quando ele e o
também crítico Bill Krohn levaram entusiasmados Samuel Fuller
para ver Nascido para Matar, o veterano cineasta saiu espumando
pois se tratava de só mais um filme de recrutamento. Uma das partes
mais pesadas da sátira em Pequenos Guerreiros é que
ela tende a diminuir a diferença entre um filme de guerra sério
como Nascido para Matar ou Patton de uma fantasia imperialista
com Os Boinas Verdes ou Rambo II. Não que Dante esteja
dizendo que os primeiros filmes sejam exatamente iguais aos outros dois,
mas questionando, como Fuller, até que ponto eles não acabam
servindo ao mesmo fim.
Se Matinee já
tratava das semelhanças entre o noticiário e o entretenimento,
Pequenos Guerreiros ao colocar a guerra dentro do universo infantil
acaba por nos pôr na posição de questionar até
que ponto as nossas fantasias militaristas não sejam exatamente
isso: fantasias infantis, cultivadas desde a época que nós
estávamos a brincar de guerra com pequenos bonecos de plástico.
Essa e a maior parte das questões que estes três filmes nos
fazem levantar não são algo que encontraremos facilmente
em outros filmes sobre o assunto, ao nos fazer pensar sobre como olhamos
a guerra, Joe Dante acabou fazendo um dos trabalhos mais importantes e
políticos do cinema contemporâneo.
Filipe Furtado |