Entre
o amor e o esperma:
o cinema de Peter e Bobby Farrelly
Cameron
Diaz na cena do "gel" em Quem Vai
Ficar Com Mary? de Peter e Bobby Farrelly
Uma
das primeiras coisas a despertar a atenção do espectador nos filmes dirigidos
pelos irmãos Peter e Bobby Farrelly é uma utilização cômica despudorada
de elementos ligados a fluidos, secreções e excreções corporais. Vem logo
a mente a célebre sequência do “gel capilar” de Quem
Vai Ficar com Mary ou a, no mínimo ousada, fusão de imagens cocô/sorvete
de chocolate em Eu, Eu Mesmo e Irene.
Aliado a isso, vemos uma presença de temas que desprezam por completo
as normas do bom gosto e daquilo que se convencionou chamar de “politicamente
correto”, como piadas envolvendo deficientes físicos e mentais, crianças,
animais, o que acaba por levar a uma leitura preconceituosa e equívoca
de suas comédias, que alguns poderiam classificar como de baixo nível
ou puramente escatológicas, mas que desconsidera a riqueza de detalhes
de um cinema a seu modo ousado e narrativamente muito bem construído.
O filósofo russo Mikhail
Bakhtin1 demonstrou que “O riso popular que organiza todas
as formas de realismo grotesco foi sempre ligado ao baixo material e corporal.
O riso degrada e materializa.” Para ele, a grossura e o grotesco são uma
manifestação de cultura popular presente desde os tempos mais remotos,
e de grande importância social durante a Idade Média e o Renascimento,
mas que, a partir da modernidade, passou a ser reprimida pelas elites.
Essa repressão torna-se, então, por demais evidente em uma sociedade essencialmente
puritana e hipócrita, como a norte-americana, que não se furta em querer
fantasiar uma realidade, impondo valores e normas de conduta artificiais.
Desta forma, os filmes dos irmãos Farrelly, que desafiam constantemente
tais normas e valores, podem ser vistos como uma espécie de cinema de
resistência.
Desde sua estréia
em 1994 com Debi e Lóide, Peter
e Bobby seguem perpetuando, e sempre tentando elevar um tom acima, uma
tradição de humor popular, ao mesmo tempo grosseiro e referencial, que
Mel Brooks muito bem trabalhou em seus filmes da década de 70 (lembremos,
por exemplo, de Banzé no Oeste
e a sequência dos peidos) e que rendeu, na década de 1980, duas geniais
comédias dos também irmãos David e Jerry Zucker, em parceria com Jim Abrahams,
Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu e Top Secret. Mas a receita dos irmãos Farrelly
acaba por introduzir no estilo uma série de ingredientes, alguns desses
mais apimentados, como uma cara-de-pau sem fim, para a qual não parecem
existir limites; mas também ingredientes mais sutis e sofisticados, como
uma utilização de recursos de uma comicidade física e visual digna dos
mestres do cinema mudo, assim como um trabalho com elipses e piadas que
acontecem fora da cena que parecem remeter a Jacques Tati.
Uma leitura mais atenta
de seus filmes acaba por situá-los numa tradição do cinema clássico americano,
não somente pela utilização de elementos referenciais, como por exemplo
o tema do esportista derrotado ou desiludido que faz trambiques para sobreviver,
como o jogador de boliche Roy Munson (Woody Harrelson) em Kingpin, personagem que dialoga diretamente com
o jogador de sinuca Eddie Felson, interpretado por Paul Newman em Desafio à Corrupção, de Robert Rossen e
A Cor do Dinheiro, de Martin Scorsese.
Só que, nos irmãos Farrelly, estas referências na maior parte, não aparecem
de formas tão evidentes, como na reencenação literal de sequências presente
em Brooks e no trio Zucker/Abrahams/Zucker. Aparecem quase sempre inseridas
na trama, como na segunda metade de Eu,
Eu Mesmo e Irene, que apresenta
elementos evidentes de Alfred Hitchcock, como a narrativa-itnerário com
eficiente utilização dramática de sequências passadas em um trem.
Mas o gênero clássico
mais caro a Peter e Bobby Farrelly é certamente a comédia romântica. Todos
os seus filmes, mesmo apresentando uma série de outros elementos, podem
ser classificados como tal, com um protagonista, de certa forma fragilizado
ou traumatizado, tentando superar seus medos e limitações, sendo resgatado
por uma espécie de anjo, que na maior parte das vezes se apresenta como
um ideal de mulher, a princípio bastante distante, como as personagens-título
de Quem Vai Ficar com Mary (Cameron Diaz) e Eu, Eu Mesmo e Irene (Renee Zelwegger),
a também Mary (Lauren Holly) em Debi
e Lóide ou a “falsa-magra” Rosie (Gwyneth Paltrow) de O Amor é Cego. Somente em Kingpin
esta figura do anjo-redentor aparece numa personagem masculina, o
amish Ishmael (Randy Quaid), mas a comédia romântica se faz presente na
tensão constante entre o protagonista Munson e sua parceira-vadia, Claudia
(Vanessa Angel), que chegam literalmente a se estapear.
Associadas tradicionalmente
a uma idéia de sofisticação, as comédias românticas tradicionais, em sua
maior parte, apresentam uma série de elementos básicos, como um humor
calcado em diálogos ágeis e espirituosos, com personagens e locações que
muitas vezes podem ser classificados como glamourosos, sendo que este
glamour, quando utilizados de forma equivocada, pode gerar um desagradável
clima de assepsia, como por exemplo no recente e insosso Encontro de Amor, de Wayne Wang. Peter e Bobby Farrelly subvertem
estes elementos, substituindo os diálogos em privilégio de uma ação física
e visual, e utilizando os elementos escatológicos para, ao invés de uma
ambientação glamourizada, situar suas personagens em um mundo cru e real.
E, no lugar dos milionários e advogados bem sucedidos que costumam infestar
as comédias românticas, temos sempre alguma espécie de pária ou figura,
de algum modo, socialmente segregada ou inferiorizada, que, como já dissemos,
vai lutar para ultrapassar um grave trauma em seu passado, trauma este
que pode aparecer no fato de ter sido corneado pela esposa com um anão
negro, como o Charlie (Jim Carrey) de Eu,
Eu Mesmo e Irene ou um acidente com o zíper no banheiro da
casa da candidata a namorada, como o sofrido por Ted (Bem Stiller) em
Quem Vai Ficar com Mary.
Este último título,
por sinal, merece uma atenção, especial, não somente por ter sido o principal
sucesso da carreira de seus autores, mas principalmente pela riqueza de
elementos que apresenta. A começar pela personagem título, por quem absolutamente
todos os homens caem de quatro, por que simplesmente constitui aquilo
que um ideário masculino considera uma mulher perfeita e inatingível:
não somente bonita e gostosa, mas também inteligente, bem-sucedida profissionalmente,
mas também relaxada e bem humorada, preservando características de um
comportamento supostamente masculino, como gostar de tomar cerveja, assistir
a esportes e falar merda. Esta espécie de reflexão sobre a mulher ideal
seria retomada em O Amor é Cego,
que relativiza esse conceito, com Rosie preservando quase todas as características
de Mary, exceto sua beleza física, substituída por uma intensa obesidade.
Quem Vai Ficar
com Mary, a cada revisão, demonstra um constante fortalecimento de
suas qualidades, onde, passado o impacto causado pela hilariedade das
situações escatológicas, vemos um roteiro e direção muitíssimo bem construídos,
que utilizam de forma impecável os elementos de comédia romântica, visual
e até mesmo musical, seja na inserção das canções na trilha, ou na dupla
de músicos que acompanha a narrativa numa espécie de coro grego. Não seria
exagero classificá-lo como obra-prima, o que, no final das contas, pode
acabar tornando-se um peso para os cineastas, pois estabelece uma espécie
de padrão-ouro a ser seguido (e até o momento não atingido novamente)
pela dupla. Mas, mesmo em momentos um pouco menos inspirados, os filmes
de Peter e Bobby Farrelly injetam e transmitem ao espectador um vigor
e inventividade atualmente raros no cinema digestivo americano, que ultimamente
não vem conseguido fazer juz à velha e batida máxima de que “o cinema
é a maior diversão”. Por este motivo,
esperamos com ansiedade seu próximo trabalho, Stuck
on You, prometido ainda para este ano, e que, para não fugir à tradição,
trata-se de uma comédia protagonizada por uma dupla de irmãos siameses.
Gilberto Silva Jr.
|
1- BAKHTIN, M. A cultura
popular na idade e no renascimento. São Paulo: Hucitec/Ed. Universidade
de Brasília. 1987.
|