David Cronenberg



James Wood penetra na boca de Debbie Harry
em Videodromo de David Cronenberg

Doutor Cronenberg e seus pacientes

Dois homens estão sentados lado a lado para uma experiência telepática. O voluntário revela-se possuidor de uma mente tão mais poderosa do que o outro, que parece subjugá-lo. Plano fechado na cabeça do telepata. Ela explode um vermelho indecente, deixando os presentes atônitos. A cena está no começo de um filme de David Cronenberg, Scanners. Houve muita repercussão, visando a retirada da cena. Cronenberg fincou pé: "Se não houvesse a explosão no começo do filme, as pessoas não iriam ficar com medo de que outra cabeça explodisse nas ações futuras dos scanners". No caso, mesmo que nenhuma outra cabeça venha a explodir no filme, fica sempre a sensação incômoda no espectador. É uma cena paradigmática de seu cinema. Cronenberg não pretende outra coisa que não a entrega total de sua audiência a aspectos da vida normalmente evitados. A cabeça explodida como metáfora de uma perturbação mental.

Filhos do Medo. O herói conversa com a mulher (veículo da experiência malograda de um cientista) dizendo que deseja tomar parte em sua nova vida. Que aceita as transformações que estavam acontecendo na mente dela. Ela ouve incrédula até que, como um desafio, levanta sua roupa, exibindo um filho que acaba de nascer de seu corpo deformado. Ela lambe a cria, diante do olhar enojado do marido/herói. A suposta materialização de impulsos selvagens ganha aqui contornos mais nítidos. Nada parece sob controle em seus filmes. O corpo humano é sempre insuficiente. Não esconde o que está no subconsciente. Qualquer frustração, ressentimento ou receio da mente das pessoas reflete fisicamente, seja sob a forma de orifícios, seja sob a forma de metástases que insistem em deformar, transformar a carne humana. Ou, como no exemplo citado, sob a forma de crianças anormais que buscam eliminar a dor da mãe através do assassinato da pessoa causadora dessa dor. Cronenberg, ao dar contornos físicos ao estado emocional da mulher, prega a simbiose corpo-mente. As alterações mentais são sempre visíveis através das manifestações do corpo.

O cinema de Cronenberg divide-se em duas fases: a que vai de Stereo a Mosca e a que se inicia com Gêmeos e segue até os dias de hoje. Na primeira fase, explícita, o mal interior é externado fisicamente. Corpos são deformados, eliminam estranhas excreções. Cinema de gênero, o horror, e muito mais. Cronenberg, já em seus primeiros filmes comerciais, transcende o horror graças a uma profunda capacidade de observação do ser humano.

Observação que ganharia contornos mais sutis em sua segunda fase, psicanalítica. Nela, a patologia age sobre a mente dos personagens e, mesmo que vejamos monstros ou corpos mutantes, tais imagens seriam oriundas da imaginação deles. Como o que já estava ensaiado em Videodrome, o que vemos na tela é originário de uma anomalia mental. São homens obcecados e, sob certa ótica, com uma percepção tortuosa da realidade.

Parasitas e mutações

O esquematismo de seus primeiros filmes ocasionou equívocos por parte de muitos críticos. Acusações de pessimismo e pregador do apocalipse caíram sobre sua cabeça. Mas esse mesmo esquematismo foi parcialmente responsável pelo sucesso de público desses filmes. Seus heróis são geralmente homens comuns, às vezes ingênuos, que se vêem obrigados a deter uma experiência desastrosa de algum médico ou alguma aberração provocada por um acidente. Assim, em Shivers, vemos um médico medíocre tentando salvar um condomínio de classe média de um parasita rebelde criado por um outro médico que se suicidou. Tudo começou com uma jovem promíscua que é usada como cobaia e depois é eliminada pelo médico suicida. Em Rabid, Marilyn Chambers, em seu primeiro trabalho não pornográfico, desenvolve uma vagina em sua axila esquerda. Dessa vagina, surge um falo que suga o sangue das pessoas, deixando-as contaminadas por um vírus semelhante ao da hidrofobia. O homem custa a perceber que é sua namorada a hospedeira do vírus. Em Filhos do Medo, um homem está perdido diante dos estranhos acontecimentos que o circundam. Não consegue salvar a mulher, tampouco sua filha de um experimento mal-sucedido de um psiquiatra irresponsável. Essa celebrada trilogia responde por muito do que vem a ser conhecido como modus Cronenberg de se fazer cinema. Cientista brincando de Deus, mulher vítima-veículo dos experimentos do cientista e homem medíocre que tenta solucionar o problema. Apocalíptico? Pessimista? Libertário é a palavra 

A partir de Scanners as cartas começam a se embaralhar. Temos o cientista, criador de uma droga, o Efemerol, que faz nascerem scanners, pessoas capazes de dominar a mente de outras. O herói é também o veículo, diferentemente dos outros filmes. Não cabe mais a mulher ser portadora do mal. Videodrome, o filme seguinte, mostra novamente o veículo, James Woods, sendo também o homem comum metido na pele de herói. Temos também um professor, criador do videodrome que fugiu ao seu controle. Dead Zone mostra homem comum como veículo, mas suprime a figura do doutor como criador de algo que se rebela. Não temos mais o cientista maluco, o inventor irresponsável. Um acidente é o agente da anomalia que acomete Christopher Walken. A síntese resolve-se brilhantemente em A Mosca, onde Jeff Goldblum é veículo (da mutação homem-mosca), herói e cientista. Ele mesmo é o agente de sua tragédia. Só ele pode reverter o quadro desastroso de sua experiência. Mas novamente está impotente.

A impotência do macho cronenberguiano, nesta primeira fase, clara parábola sobre o fantasma da impotência sexual masculina, merece um parágrafo a parte. Em Calafrios o médico ignora a namorada que se despe à sua frente. Em Scanners, o protagonista é mais do que impotente, é assexuado. Não revela o menor interesse pela bela Jennifer O'Neil, apesar de contar com ela como companheira de aventuras. Em Filhos do Medo o homem não percebe as indiretas da babá que cuida de sua filha, além de ter submetido a própria mulher a uma experiência duvidosa. Em Rabid temos a expressão máxima dessa impotência quando o homem comum está no telefone com sua namorada. Ela revela que contagiou um homem e vai esperar para comprovar sua condição de hospedeira do vírus. O homem sabe que ela vai ser atacada, ouve seus gritos, mas a única coisa a seu alcance é um maldito aparelho de telefone. Em Videodrome, o macho começa a agir. James Woods dá em cima de Debbie Harry. O impotente vira cafajeste. Mas parece não convencer na cama, visto que Debbie sente mais prazer se queimando com um cigarro ou se cortando. Cronenberg continua a castigar o herói em Dead Zone, mas aqui ele é impotente na hora de matar o vilão. Seus objetivos, no entanto, são alcançados. Sexualmente, ele é impedido de ser ativo por um grave acidente. A Mosca  tem o homem sendo dominado por um simples inseto. Seu corpo sofre uma mutação porque é impotente diante da força física de uma mosca cujas células misturaram-se às dele. A metáfora para a impotência masculina atinge uma modulação cruel para o protagonista.

A coerência estética e temática dessa primeira fase é notável. Fácil lembrar de Truffaut, que dizia que toda a carreira de um diretor de cinema está contida em seu primeiro filme. Pensando em Cronenberg, a afirmação fica óbvia. Tudo que ele faria já estava esboçado em Stereo, seu primeiro longa, ainda na faculdade. Nesta pérola da ficção-científica, homens e mulheres perdem o dom da fala para participar de uma experiência telepática visando a interação sexual entre eles. Temos o cientista criador da experiência e as pessoas comuns que serviram de veículos. A ausência do herói revela a imaturidade do diretor. Stereo é brilhante no campo formal, com enquadramentos rebuscados e fotografia impecável, carece apenas da narrativa clássica que o tornaria cultuado. É preciso muita má vontade, entretanto, para não ver ali um autor de primeira surgindo.

Antes de Filhos do Medo, último filme de sua trilogia B, foi rodado Fast Company. Como um verme saído do corpo de um de seus personagens, sai este filme sobre um corredor à beira da aposentadoria. Muito pouco do diretor pode-se ver no filme, apesar de ser o primeiro a contar com a colaboração do compositor Howard Shore, o qual musicou a maior parte de seus filmes. Através de uma narrativa extremamente convencional, Cronenberg purga parte de sua paixão por carros. Pode-se argumentar que as relações entre os membros da equipe e a rebeldia com que eles tratam um patrocinador inescrupuloso, além da forte identificação entre vilão e herói, são elementos de seu cinema. Mas teríamos que esquecer que são, também, elementos do cinema de uma porção de diretores, americanos ou não. Uma única cena que pode ser considerada fruto de sua idiossincrasia é a que mostra o personagem de John Saxon morrendo de inveja do corredor que tem uma mulher nua a seu lado na cama. Sabemos que ele já havia tentado uma abordagem em uma outra garota, sem sucesso. Agora fica se remoendo pelo sucesso do outro. Temos aqui, mais uma vez, o macho impotente cronenberguiano. Momento incapaz de transformar o filme em um projeto de autor. Ainda assim, como nos filmes mais mexicanos de Buñuel, não há um fotograma contrário ao seu modo de ver o mundo.

A experiência de filmar Fast Company permitiu que Cronenberg aprimorasse seu domínio da narrativa clássica. Em Scanners, filme mais esquemático ainda que os da trilogia, temos protagonista e antagonista numa trama de gato e rato, com cenas de suspense e certas concessões ao cinema comercial. A força do filme, no entanto, é inegável. Temos um diretor de volta a seu próprio mundo, com suas regras singulares. Uma seqüência é exemplar: os dois scanners conversam dentro de uma enorme cabeça esculpida por um deles. A cena termina com a morte do escultor e com a cabeça sendo quebrada, abrindo caminho para que o herói saia. É um filme cerebral, no sentido direto do termo. Uma cabeça explode, outra derrete, outra se deforma, uma outra se quebra em vários pedaços, outras levam tiros. O policial suicida do início atira na própria cabeça. Aqui é a caixa craniana que é insuficiente. Em uma entrevista da época do filme, o cineasta se dizia "feliz, casado novamente, com um novo filho... e explodindo cabeças como qualquer garoto norte-americano normal".

Cronenberg é hábil o bastante para criar suspense com um bebê que ainda não nasceu. Da barriga da mãe, ele escaneia a mente de Jennifer O'Neil. Esta, por sua vez, em outro momento, escaneia a mente de um guarda para que ele veja a própria mãe e não atire. Objetos são destruídos pelo poder da mente: um telefone derrete, um computador explode. Cronenberg parece investir contra os meios de comunicação, algo que ficaria claro com o filme seguinte, Videodrome. Scanners só não é acessível no final, quando ficamos sem saber quem domina a mente de quem. Quer dizer, conhecendo seu cinema, fica claro que o vilão é o vencedor, o detentor de maior poder. O olhar gélido não mente.

Trata-se de mais um final que sugere um mundo prestes a ser dominado por uma força maligna. O mundo está sempre à beira de um colapso ao término desses filmes. Em Calafrios, os carros partem da ilha para o continente para contaminar a todos com a doença do sexo. Em Rabid, a hospedeira, única que poderia parar o surto, é triturada num caminhão de lixo. Em Filhos do Medo, a filha carrega consigo os genes progenitores dos agentes da raiva. Em Videodrome, o domínio seria lento, mas inevitável porque trata-se de um meio de comunicação popular, a televisão. As ondas catódicas são o grande vilão neste filme que parece um falso final de um ciclo, já que é o último da seqüência em que o mundo é dominado. Em Dead Zone, o herói consegue evitar a desgraça por vias tortuosas. E em A Mosca, somente o herói é que sofre. Cronenberg encerra a sua fase sabiamente tornando a tragédia de uma pessoa algo ainda mais dramático que a tragédia em escala mundial. A alegoria é clara. A ciência, por mais que se esforce, e o diretor sempre filmou como se tivesse esse propósito, não consegue comprovar a (in)existência de Deus. Cronenberg, que já se revelou ateu, em seus filmes revela-se agnóstico. Crê na impossibilidade da certeza, na incapacidade de entender perfeitamente a natureza e de mudar suas regras. 

Sexo e medo são dois pilares do cinema de Cronenberg. Mas não devemos descartar um aspecto sempre presente em seus filmes: o comentário existencial e social. O diretor conhece bem os mecanismos de uma sociedade. Sabe o que a torna coesa e ao mesmo tempo frágil. No mundo ocidental, as pessoas tentam esconder as emoções de tal maneira, que não seria exagero dizer que estão mortificadas por um excesso de razão. Cronenberg usa essa frieza, essa mortificação, como um cientista preocupado em esmiuçar suas causas. Ou seja, para combater a frieza, é necessário mostrar de forma fria o que as pessoas não percebem. Em seus filmes, o que o ser humano tem de selvagem, sempre vem à tona graças às experiências de outrem. Não há pessoas lascivas por natureza. Todos são frios, racionais demais, até que algo (mental ou físico) mude essa condição. Uma exceção possível seria Max de Videodrome. Mas ele, ao ser perguntado de sua predileção por violência e tortura, responde que é tudo por motivos profissionais. Ou seja, a exceção querendo fazer parte da regra. Sua emotividade é castrada por sua própria vergonha de se admitir ansioso por algo, de se aceitar como voyeur. O homem, para existir de acordo com as normas da sociedade, tenta reprimir seu lado animal. O medo de expor as emoções é um atributo de grande parte dos personagens cronenberguianos.

A obsessão mental

Se na primeira fase de seu cinema os filmes formam um bloco com as mesmas características, com variações irrisórias entre eles (com a exceção do mais comercial Hora da Zona Morta e de Fast Company), a partir de Gêmeos seus filmes iriam adquirir uma outra dimensão, mais individual. Cada um deles traria as características do autor, mas estas não seriam tão facilmente reconhecíveis, pois esses filmes dialogam muito mais em forma do que em conteúdo. Várias de suas obsessões continuariam constantes, mas dissimuladas, bem menos identificáveis. Em Gêmeos não há monstros, mas as mutações do corpo são sugeridas, e não comprovadas. É a mente que torna-se veículo para as deformações. Continuamos vendo monstros (Naked Lunch), corpos deformados (Crash, Gêmeos, EXistenZ), médicos radicais (Gêmeos), perturbações da psique (Gêmeos, Spider, M.Butterfly, Crash, Naked Lunch). No entanto seu cinema passa a ser de sugestão, ou de modulação, como já disse Ruy Gardnier.

Os personagens dessa segunda fase não sofrem deformações corporais. Em EXistenZ até sofrem, mas elas não ocorrem por intermédio de algo que está dentro deles, mas sim por instrumentos operados por outras pessoas. Dessa forma, quando EXiztenZ é considerado pela crítica como uma volta aos filmes do começo de sua carreira, não devemos esquecer que há uma diferença entre o que antes era incontrolável (parasitas ou experiências que se desvirtuam) e agora é arbitrário. As pessoas podem ou não instaurar um orifício em forma de ânus - a chamada bioporta -  em suas costas. O que irá mudar é a forma de compreender o mundo. Através de um jogo virtual, colocado dentro das pessoas por esse orifício, elas adquirem uma outra noção da realidade, assim como os médicos de Gêmeos, ou o apaixonado de M. Butterfly, ambos interpretados brilhantemente por Jeremy Irons. Assim como o escritor William Burroughs em Mistérios e Paixões. Ou como Spider, no filme de mesmo nome.

EXistenZ termina sem que saibamos se o jogo terminou ou não. Mais um final enigmático de Cronenberg. No filme, há a cena mais pornográfica de sua carreira. Quando Jude Law, dominado pelo jogo pois trata de mais um macho impotente, enfia a língua na porta-orifício de Jennifer Jason Leigh, sabemos que estamos diante de uma cena de forte apelo erótico. Não há sutilezas, tudo é escancarado. Talvez seja um dos motivos pelos quais o filme foi direto para a TV Paga, sem passar pelos cinemas brasileiros. A subversão volta a ser explícita num nível anteriormente visto apenas em Calafrios.

Gêmeos permanece perturbador. Difícil esquecer aqueles instrumentos ginecológicos criados pela mente doentia do irmão Beverly. A degradação psicológica dos médicos irmãos é acompanhada de uma fotografia brilhante, de uma direção de atores impecável e de um roteiro sem furos. Cinemão clássico com a marca de um autor. No início do filme é difícil distinguir, propositadamente, quem é Bev, o irmão introvertido, e quem é Elliot, o irmão pragmático. Somente depois do envolvimento com a atriz interpretada por Geneviève Bujold é que começamos a distinguir, sem que o nome seja mencionado, qual deles está em cena. No final, com a progressiva dependência às drogas, os papéis voltam a se confundir. O que era mais fraco torna-se o mais forte. O que cuida vira o que é cuidado. O trabalho de modulação desses personagens é exemplar, e diz muito da capacidade do diretor em jogar com as regras da narração clássica, ao mesmo tempo em que as utiliza para causar o mais profundo desconforto no espectador. É muito comum, principalmente em diretores estreantes, aumentar o potencial provocativo de seus filmes, com uma forma ainda mais provocativa. Geralmente é um efeito que gira em falso, tornando estiloso e superficial o que podia ser subversivo. Cronenberg faz justamente o oposto. Parte de situações comuns, subvertendo-as aos poucos, segundo os disturbios mentais de seus personagens. A forma nunca é audaciosa, apenas funcional. Serve ao filme, nunca à modismos (Dogma, por exemplo). Nada é gratuito em seu cinema.

M.Butterfly, injustamente incompreendido por grande parte da crítica, revela um cineasta capaz de dar conta dos pequenos momentos do cotidiano, como em todas as cenas do diplomata interpretado por Jeremy Irons, René Gallimard, com sua mulher, interpretada por Barbara Sukowa. Em uma especialmente, atinge um momento sublime da arte intimista. Quando Jeremy está na cama com Barbara, ela lendo uma revista de modas. Ele conta que descobriu uma diva chinesa numa execução de Madame Butterfly. Barbara deixa sua revista para indagar mais sobre o assunto. Ele começa a explicar, mas logo distrai-se com a imagem da capa da revista. Barbara pega a revista e abana-a na frente de seu rosto como se fosse um leque, ao mesmo tempo em que canta a ária de Puccini. Corta para o espelho, onde a imagem de Barbara, linda como nunca, parece hipnotizar o diplomata. Uma bela cena, que diz muito do que viria a acontecer no filme, e expõe a fragilidade de uma relação. Cronenberg, à maneira dos grandes artistas, revela sensibilidade fora do comum para filmar a intimidade de um casal. Todos os germes da dissolução do relacionamento encontram-se nessa simples e genial seqüência. A incapacidade de Barbara em entender a obsessão do marido, mesmo que depois ela perceba que está sendo traída. A dificuldade do diplomata de esquecer a chinesa. A extrema frieza do casal na cama, antes de dormir.

Jeremy/Gallimard apaixona-se, trai seu país sem saber em nome dessa paixão, é enganado, preso, humilhado. Mas não se importa por ter sido manipulado politicamente, apenas por ter amado uma mulher que na verdade era um homem efeminado. Mas o grande achado de Cronenberg parece ter passado despercebido. Ao fazer sexo com um homem, das duas uma: ou ele desconhece a anatomia feminina, a ponto de confundir ânus com vagina, ou acredita que uma mulher pode ficar grávida fazendo apenas sexo anal. René Gallimard, então, revela-se o personagem mais ingênuo de todos os seus filmes. O homem comum realiza-se profissionalmente, mas perde-se numa relação amorosa tão improvável quanto patética. O homem acredita que a mulher chinesa, na intimidade com o marido, não pode tirar a roupa. Teve anos de um romance sem conhecer o corpo da suposta mulher que amava. É humilhado e tem sua vida profissional destruída. Sua patologia foi a cegueira causada por um amor doentio. Nada mais cronenberguiano. Através de uma love story tortuosa, Cronenberg volta a mostrar um homem incapaz de entender a natureza. O outro homem disfarça-se de mulher e diz estar grávido. Quis ser mutante. Quis mudar sua natureza. Mesmo que o filho tenha sido mero joguete político para continuar obtendo informações, a diva travestida realiza-se fazendo apenas um homem acreditar que ela pudesse ser mãe. O filme é subversão pura. Mas os críticos estavam ocupados demais descrevendo o que pensavam ser furos do roteiro.

Dois momentos devem ser lembrados. Quando John Lone, no papel da diva, diz a um outro agente chinês: "Só um homem sabe como uma mulher deve agir" , perfeito comentário da submissão do homem à mulher, mas possivelmente entendido como misoginia por seus detratores. E quando Gallimard está no tribunal e descobre que M. era homem. Seu sorriso discreto e seu olhar incrédulo seriam rejeitados por qualquer diretor que não tivesse uma noção exata do que quer de um ator. Jeremy, assim como em Gêmeos, tem possivelmente a grande atuação de sua carreira. 

A sutileza é abandonada em Crash, talentosa provocação que não foge, como querem alguns, da extrema coerência do cinema do diretor. Homens e mulheres só alcançam prazer sexual quando associam o coito às consequências de uma batida de carros. Arrebentam-se pelo gozo. Extrapolam-se sexualmente em prol da vulnerabilidade da carne. Ao final, quando James Spader pergunta para sua mulher que acaba de se acidentar se ela havia se machucado gravemente, não se satisfaz com a resposta negativa e diz: "Da próxima vez você consegue, amor". O diretor procura entender seus personagens, ao invés de julgá-los. Incensado pela crítica francesa, mas incompreendido mais uma vez pela maior parte da crítica mundial, Crash é Cronenberg à enésima potência, desde a permanente insatisfação com a normalidade, até os corpos modificados (a vagina na coxa de Rosana Arquette, as inúmeras cicatrizes de Elias Koteas).

Se eXistenZ (primeiro filme com roteiro original desde Videodrome), como já dito acima, sugere um retorno parcial ao encanto B de seus primeiros filmes, Spider sinaliza em outra direção, a da obscura identificação com um personagem norteando a própria narrativa do filme. Cronenberg declarou em entrevistas, sua identificação com o personagem Spider, ainda que desconheça os verdadeiros motivos de tal sentimento. Um Cronenberg intuitivo e, talvez, ainda mais sombrio pode estar surgindo. Certamente com a notável coerência que une sua obra.

Sergio Alpendre