Captar o Mundo
(sobre Abbas Kiarostami)


Abbas Kiarostami conversa com Mania Akbari, intérprete e co-autora de Dez

"Você precisa se tornar amigo deste filme para ele se
abrir, mas depois suas recompensas são ilimitadas"
– Jonathan Rosenbaum, sobre O Vento Nos Levará

Se Abbas Kiarostami é um cineasta difícil, isto se deve muito por praticar um cinema da curiosidade. Da sua curiosidade diante do mundo, e da nossa também. Seus filmes parecem partir sempre de uma necessidade de conhecer e se relacionar com o mundo, e o que ele nos pede como espectadores de cinema não é coisa mais simples do que o desejo de acompanhá-lo em sua jornada (e não é por acidente que a maior parte dos seus filmes se constrói como longos percursos).

Em Close-Up um homem se faz passar pelo diretor Mohsen Makhmalbaf, acaba enganando uma família de classe média e depois é preso. Kiarostami se interessa pela história e resolve fazer um documentário sobre o assunto. Leva sua câmera para captar estas pessoas, e mais importante ainda, as convence a reencenar boa parte do ocorrido. No processo da realização do filme, os motivos de todos ficam mais claros e as partes se aproximam; no fim, o impostor chegará até mesmo a conhecer o verdadeiro Makhmalbaf. Close-Up, Kiarostami nos lembra, é um plano que nos aproxima do personagem, porque "de longe, as pessoas desconfiam uma das outras. O close-up cria outra idéia, real, do personagem"1.

Não é à toa que em seu cinema predomine com tanta freqüência o fora de campo e o não-dito. Não veremos a velha senhora em O Vento nos Levará, assim como não saberemos ao fim de A Vida e Nada Mais se o cineasta teve sucesso em sua jornada. Kiarostami prefere confiar em nossa capacidade de imaginar, de completar aquilo que ele apenas sugere. Porque é também numa crença e respeito muito grande pelo espectador que se constrói este cinema.

É assim que se constrói aquele momento mágico em ABC África em que as luzes se apagam e a câmera permanece ligada a filmar o escuro enquanto Kiarostami e sua equipe discutem. Neste momento da ausência da imagem, talvez seja também aquele em que nós espectadores começamos a compreender melhor o que é o universo que Kiarostami aborda e por conseqüência muito do próprio filme.

ABC África não chega a ter a força de Close-Up, obra-prima sobre o cinema que este é, mas colocá-los lado a lado não deixa de ser bastante interessante. Porque num primeiro momento, ABC África parece um contraponto pessimista do seu documentário anterior. Afinal, se em Close-Up a câmera acaba tendo o poder de intervir, de que nada no julgamento de Ali Hossein Sabdzian não deixa de ser alterado pela sua mera presença, não se pode dizer o mesmo em ABC África, onde ela somente registra. Mas isto seria não pôr em consideração tudo aquilo que o cinema de Kiarostami acredita que só se confirma no que esta câmera registra: o mundo, a vida, o sobreviver. ABC África é, de todos os filmes de Kiarostami, o de assunto mais pesado, mas paradoxalmente também é (com a possível exceção de Onde Fica a Casa de Meu Amigo?) o seu trabalho mais acessível, não porque o cineasta fuja de nos confrontar com a realidade à sua volta (a cena onde o pedaço de pano, com um bebê morto dentro, é retirado de um hospital continua ressoando muito depois do filme acabar), mas porque ao reafirmar seu credo como o faz aqui não poderia ser diferente. Cada vez que a câmera de Kiarostami capta uma criança ao longo do filme, a tela do cinema acaba por ser tomada por uma inevitável energia.

Vive-se sempre no cinema de Kiarostami (até mesmo quando seu protagonista é um possível suicida como em Gosto de Cereja), mas para isso é preciso que haja um espaço em que se viva. Daí a importância da geografia nos filmes de Kiarostami. Não é à toa que quando a luz entra na já mencionada cena da escuridão em ABC África, descobrimos que a câmera está apontada para a janela. Da mesma forma, não se capta tantas cenas de paisagens em seus filmes por nada, mas porque é preciso registrar onde as pessoas vivem. Isto fica claro nos seus três filmes sobre a região de Koker (Onde Fica a Casa de Meu Amigo?, A Vida e Nada Mais e Através das Oliveiras), filmes estes que se revelam como reflexões sobre Koker e como se vive ali (os dois últimos foram feitos após um terremoto que arrasou a região e que é lembrado com freqüência pelos moradores). A geografia de Koker não deixa de ser tema dos filmes, algo ampliado em A Vida e Nada Mais e Através das Oliveiras pela forma que ela deixou marcas em cada pessoa que o cineasta encontra.

Tudo isto dito, a grande questão no cinema de Kiarostami é como captar esta vida, este mundo? Como chegar até ele? Como Close-Up nos lembra, não se trata do puro e simples documental como uma leitura pobre do realismo que uma certa crítica burra até hoje propaga. Com toda a simplicidade que a mise en scène de Kiarostami sempre busca, ela nunca é desprovida do artifício como na excepcional passagem de Onde Fica a Casa de Meu Amigo? na qual o protagonista observa um outro garoto (que pode ou não ser aquele que procura) enquanto este segura um volume de madeira que permite que nós vejamos somente sua calça (idêntica àquela que o garoto que está sendo procurado vestia na última vez que o protagonista o viu).

O que Kiarostami acaba por fazer é registrar o encontro das suas idéias, do ponto de partida que ele como cineasta concebeu com este mundo, e desse encontro resultara sempre um filme diferente. Nos percursos de Kiarostami o que se aprende no trajeto é sempre muito mais importante do que a chegada. Da mesma forma, muito da graça e poesia destes filmes reside na forma como as pequenas coisas vão influindo neles.

O que nos faz retornar novamente ao espectador e no profundo respeito que Kiarostami tem por ele. Porque tudo isto que o cineasta faz só tem como se completar com a nossa participação, este segundo encontra agora entre nós e o filme. Porque Kiarostami tem curiosidade em relação ao mundo, e este também nos inclui. Se este cinema nos soa difícil num primeiro instante, será só neste, porque o que Abbas Kiarostami nos pede é algo que quem ama cinema está sempre disposto a dar: o nosso desejo de nos perdermos naquilo que o cinema apresenta.

* * *

Nisso tudo a obra de Kiarostami se insere dentro de uma opção do cinema moderno por uma dissolução da mise en scène, onde o empenho do cineasta se volta em se perder dentro da encenação da relação entre os personagens e seu mundo (pensemos aqui num Pialat ou Cassavetes, por exemplo). Pois bem, eis que surge Dez, o ultimo trabalho de Kiarostami, exibido na Mostra de Cinema de São Paulo do ano passado, para nos deixar ainda mais confusos. Kiarostami vêm buscando uma depuração de estilo desde seus filmes mais antigos aos quais temos acesso. Que Dez leve isto adiante, não é, em si, nenhuma novidade. Só que o que Abbas Kiarostami conseguiu aqui é algo único cuja riqueza não tem como ser apreendida numa única visita, ainda mais no meio de uma mostra de cinema, mesmo que o passar do tempo só enriqueça a lembrança do que é o filme.

Dez não deixa de ser uma espécie de ápice do projeto descrito no inicio do parágrafo anterior. Um carro como espaço, duas câmeras, uma voltada para a motorista e outra para o passageiro, uma longa preparação anterior com os atores (e um microfone escondido que permite que o diretor lhes faça recomendações durante as filmagens, mas nenhum roteiro). 10 conversas que ganham vida diante desta câmera. Apenas isso. Ao cineasta cabe, após a concepção da idéia do filme, somente editar todo o material registrado.

Qual a função do diretor de cinema, nos vemos diante de Dez forçados a perguntar (esta é apenas uma das diversas perguntas que o filme nos leva a levantar)? Especialmente porque assistindo-o não se há por nenhum momento a menor dúvida de que se trata de um filme de Abbas Kiarostami. Se o cineasta à primeira vista quase se exclui do processo da realização de seu filme, tudo o que ele faz não deixa de ser completamente coerente com toda a obra que desenvolveu até ali e o resultado final do que está na tela, a progressão quase natural dela. A penúltima seqüência é de uma força e beleza que não deixa a dever a outros tantos grandes momentos que o cinema de Kiarostami já nos legou.

Apesar de toda a atenção focada no como o filme foi feito, o que interessa em Dez é o que se vê na tela e seu impacto para aqueles que se dispuserem a dialogar com ele. Com Dez, Abbas Kiarostami parece ter conseguindo levar ao limite o seu desejo de captar o mundo.

Filipe Furtado


1. "Kiarostami transfigura realidade com poesia", entrevista concedida a Inácio Araújo in Folha de São Paulo, 02/11/94