As
mãos que filmam a América

As mãos.
Não
é incomum que se diga de um determinado filme de determinado diretor:
"trata-se de uma síntese de sua obra". Tremendo clichê, talvez.
Porém, se jamais houve um caso onde esta frase se aplicasse, esse
caso é o de Gangues de Nova York e Martin Scorsese. Mais
do que síntese, muito mais: a impressão que se tem vendo
o filme é que Scorsese passou toda a sua carreira treinando para
conseguir fazê-lo. Aperfeiçoando seu domínio narrativo,
estilo, personagens. Fazendo uma série de ensaios (muitos deles
geniais) para finalmente entrar em cena com esta ária final. Com
Gangues de Nova York, a maior pergunta que fica não é
de onde ele veio, e sim para onde ele pode ir agora, porque parece que
era aqui que ele sempre esteve chegando.
A idéia até
poderia parecer uma tremenda forçação de barra por
parte do crítico, mas o fato é que ela tem todos os fundamentos.
Senão, vejamos: em 1970, Scorsese, recém-formado na NYU
com um longa quase amador debaixo do braço, leu o livro Gangues
de Nova York e achou que tinha que filmar aquilo. Mais de 30 anos
depois ele conseguiu levar o livro para as telas: não é
de se pensar que ele passou 30 anos ensaiando? Este texto pretende mostrar
justamente as ligações intrínsecas entre o filme
e a carreira anterior de Scorsese, mas acima de tudo, explorar a compreensão
do seu país que pula para fora da tela a cada um dos filmes citados.
* *
*
1973.
3 anos depois de ler o livro, Scorsese lança Caminhos Perigosos,
seu primeiro filme a atrair a atenção da crítica
para ele. No poster, uma silhueta de prédios de Nova York. Uma
arma fumegante se mistura a eles e parece ser mais um prédio. Ou
melhor, parecem ser dois prédios, que pegam fogo lado a lado. Corta
para 2001, CNN: o World Trade Center, símbolo maior do capitalismo
americano arde em chamas. Corta para 2002: plano final de Gangues de
Nova York: de uma série de fusões consecutivas aparecem
as Torres Gêmeas, como se fossem uma enorme lápide, por sobre
a imagem de onde estão enterrados os dois protagonistas do filme.
Aquelas mesmas torres que já não estão mais lá,
e são muito mais que uma lápide, são um túmulo.
Que conclusões tirar desta elipse que começa com um cartaz
e trinta anos depois termina com um plano final deste épico sobre
a formação da América? Principalmente a de que, mesmo
no que ele não controla, os filmes de Scorsese estão nos
dizendo a mesma coisa há 30 anos. Imaginem no que ele controla.
Tela preta. No escuro,
uma voz: "Não se paga os pecados na Igreja, se paga nas ruas, em
casa. O resto é bobagem, e você sabe disso." Assim começa
Caminhos Perigosos: um filme sobre gangues urbanas que brigam por
respeito e enfrentam a morte todo dia nas ruas de Nova York. Seu personagem
principal vive entre a religião católica e as regras das
ruas, atormentado.
Tela escura. Barulho
de uma navalha, homem se barbeia. Faz um corte, passa a navalha para o
filho pequeno ao lado, que vai limpá-la, mas ele impede: "O sangue
fica na navalha". Corta.
* * *
Ruas de Nova York:
caos e violência imperam. Nenhuma lei parece impor um só
respeito, os cidadãos se armam e criam suas próprias leis.
Uma campanha eleitoral: o candidato afirma "Nós somos o povo".
Mas ele mora longe deste povo que habita no caos, só vai lá
para comícios, para recolher os votos. Um homem resolve fazer um
atentado contra a vida deste candidato. Seu nome (o do homem) é
Travis Bickle, ele é o Taxi Driver.

Corta para o interior.
Um homem espanca sem dó um outro homem, o sangue esguicha para
todos os lados, e o que bate tem a cara toda suja de sangue. Trata-se
de um ser movido pela violência, mas ao mesmo tempo um homem de
charme considerável com as mulheres, irresistível, poderoso,
orgulhoso e vaidoso de não ter inimigos à altura, sente
saudades de embates realmente valorosos com adversários do passado.
Seu nome é Jake LaMotta, o Touro Indomável.
Ou seriam todos eles
Bill the Butcher? E, se sim, afinal, quem é Bill the Butcher?
* *
*

Quem responde é
ele mesmo: "Eu sou Nova York". Bill the Butcher tem um olho de vidro,
no qual há desenhada uma águia. A águia, para quem
não sabe é o símbolo dos EUA. Bem mais na frente
no filme, quando Bill aparece ao lado da cama do jovem Amsterdam Vallon
enrolado numa rasgada bandeira americana, ele diz: "É o medo que
me mantém no poder. O espetáculo do pavor. De tempos em
tempos é preciso colocar a cabeça de alguém à
mostra na praça, espetada num pau para eles lembrarem quem é
que manda aqui". Afinal, quem está falando: é Bill the Butcher?
É Nova York? Ou são os EUA?
* *
*
Bill Tammany é
o político mais influente em Nova York. É ele quem explica
aos correligionários: "a aparência da lei deve ser mantida,
especialmente enquanto nós a quebramos". A aparência da lei
inclui a tranquila vida vivida pelas famílias da parte mais ao
Norte da cidade. Ou, como se diz lá no Sul, "the Uptown Gangs".
Para que esta sociedade das aparências seja mantida, sim aquela
mesma que era esmiuçada em A Época da Inocência,
é preciso muito sangue, muita exploração e muitos
votos. Tammany em dia de votação é um colosso: as
pessoas são colocadas várias vezes na fila para votar, e
assim se constrói toda uma tradição democrática
que garante resultados plenamente confiáveis e insuspeitos até
hoje, ano 2000.
Tammany agora está
nas docas. Chega um navio cheio de imigrantes irlandeses: "Esta é
a construção do nosso país. Americanos estão
nascendo aqui". Os irlandeses descem do navio e são imediatamente
passados para uma outra fila, onde são inscritos para a Guerra
Civil, em troca de um soldo. Um traveling parte desta chegada para um
outro navio que atraca, vindo do Sul, caixões são desembarcados.
Estes já não votam mais, mas cumpriram o seu papel na manutenção
da aparência da lei. Lutar por uma causa é sempre válido.
Mas, qual é mesmo a causa?
Mais à frente,
revoltado com tanta morte inútil, o povo se levanta contra os políticos,
contra as "Uptown Gangs". "O povo unido jamais será vencido", eles
não gritam. Não se sabe se porque o mote ainda não
havia sido criado ou se porque eles sabem que, bem, serão vencidos.
Mas, até lá, muitos negros serão espancados, mortos,
impalados. O povo sangrento de sangue deseja justiça, por isso
mata os negros. É o começo de uma bela amizade.
* *
*

Os Bons Companheiros
Martin
Scorsese nasce em Nova York. No seu crescimento, três influências:
a Igreja Católica, os gangsters da vizinhança e o cinema.
Quando jovem, tem enorme atração pelos mafiosos de sua rua.
Mais tarde, resolve ser seminarista. Termina mesmo cineasta.
Da Igreja Católica
o cineasta traz, além de uma tonelada de culpa a passar aos seus
personagens, uma obsessão com os rituais e seus detalhes: em seus
filmes, cada movimento, cada tempo de duração é mostrado,
é esmiuçado, é apontado. Ver Kundun, A
Época da Inocência, Casino. Gangues de Nova York.
Das gangues, o cineasta
carrega o conhecimento de que nas ruas você só é respeitado
se andar com as pessoas certas, se estiver disposto a tudo. Que sangue,
muito sangue, é igual a poder. E que só uma coisa importa:
o dinheiro. Ver Casino, Os Bons Companheiros, Touro Indomável.
Gangues de Nova York.
Do cinema, o cineasta
aprende o poder das imagens em movimento, de sua conexão com os
sons, da magia que ambos podem criar quando montados num determinado ritmo,
ao som de uma determinada música. Aprende a amar como nada no mundo
aquelas imagens na tela grande, e encontra nelas uma religião como
nenhuma outra. Ver todos os filmes de Scorsese.
* *
*

Nicky
Santoro (Joe Pesci), em Casino.
Música toca
quase o tempo todo. Uma narração em off nos explica as regras
do jogo do local, esmiuça o ambiente, explica qual o papel de cada
um. Num mundo de gangues, onde estar vivo nunca é uma certeza,
só o seguimento de regras muito claras mantém qualquer chance
de ordem, e cada gangue, cada tribo, tem a sua. Deve-se dormir com apenas
um olho fechado, porque não se sabe nunca quem vai vir te acordar
no meio da noite.
O poder é quase
supremo, mas acaba tão rápido quanto é conquistado.
E, mesmo no ápice, sabe-se que tudo aquilo que fez a pessoa atingir
aquele ponto, a violência, a ganância, o desejo de mais, a
ostentação que faz com que outros queiram mais, é
o que garante a destruição do próprio sistema que
foi armado para a vitória. Não há vitoriosos, no
fim das contas, há apenas o sistema.
Os Bons Companheiros,
Casino, Gangues de Nova York.
* *
*

Caminhos Perigosos
Charlie, Johnny Boy,
Michael, Tony. Quatro personagens. Caminhos Perigosos.
Henry, Charlie, Tommy.
Três personagens. Os Bons Companheiros.
Sam, Nicky. Dois personagens.
Casino.
Bill the Butcher.
Um personagem. Gangues de Nova York.
Um cineasta aprendendo
a difícil arte da síntese.
* *
*
"Ninguém mais
fala inglês em Nova York?" Aparentemente não. Os imigrantes
se amontoam, se organizam em grupos eventualmente fechados. Esses grupos
é que vão morar em bairros separados ou cidades, e organizar
gangues. Que de vez em quando se enfrentam para tentar ganhar território
um dos outros. Parece que é a coisa mais importante do mundo.
Isso, claro, se o
governo não decidir que os navios devem atirar contra você,
dizimando toda a sua gangue e a do rival. Aí, o máximo que
resta a você fazer é pedir para ele te matar.
"Obrigado a Deus,
por eu morrer um verdadeiro americano".
Sobre seu cadáver
se erguerão Torres ou Cassinos com nomes de grandes corporações.
E as mãos dos imigrantes, aqueles mesmos que sempre tiveram que
brigar para ficarem vivos e terem espaço, são só
as mãos que construíram a América, se formos dar
ouvido às últimas palavras do último filme, ou são
as mãos que pagam seus pecados na rua, se formos ouvir as primeiras,
de 30 anos atrás.
De uma forma ou de
outra, Gangues de Nova York, síntese da obra de um diretor.
Martin Scorsese, síntese
da obra de um país.
Eduardo Valente
|
|