Spider: a primeira pessoa no cinema

Por uma crítica impura


“Os livros do senhor, a arte do senhor cheiram a crime. Em vez de fazer alguma coisa por esses montanheses desgraçados, o senhor assiste a morte deles, busca nessa morte temas ardentes, encontra nelas a beleza de sua arte. Não vê que essa beleza mata, aliás, já disse um jovem escritor que o senhor certamente não aprecia.(...)O senhor se assemelha a esses aristocratas. Leva um povo inteiro a representar uma tragédia sangrenta, enquanto assiste de camarote e faz pilhérias, junto com sua dama.”

Estas palavras cruéis e acusatórias parecem que atingiram diretamente a extremada susceptibilidade de Walter Salles Jr, acuando-o pela sua contundente verdade, a ponto de ter de retirá-las do roteiro três anos após haver lido o livro Abril Despedaçado e dar início aos trabalhos de adaptação, realizado juntamente com Sérgio Machado e Karim Aïnouz. No primeiro trimestre de 2000, o último tratamento do roteiro estava fechado, dando-se início as filmagens em outubro do mesmo ano.

Na verdade, o que atraíra o diretor no livro de Ismail Kadaré, segundo depoimentos divulgados na pequena e grande imprensa foi a “qualidade mitológica do confronto ancestral narrado por Kadaré - este embate trágico entre um herói obrigado a cometer um crime que não quer e o destino que o impele à frente.” Para transpor esta tragédia para o sertão baiano, a equipe de roteiristas teria de tomar algumas liberdades prontamente endossadas por Kadaré, sem as quais o projeto seria inviável: “ Era uma condição essencial para avançar, devido às diferenças culturais entre o Brasil e os fatos que Kadaré narra na Albânia - o Kanum, código que regulamenta os crimes de sangue naquele país, não tem equivalente no Brasil.”
A falta de equivalências não param por aí- são listadas com muita autoridade e segurança pelo cineasta através da extensa entrevista. Entretanto, por mais que apresente suas soluções de nivelamento para que a idéia básica do romance, sem grandes avarias, circule até o filme, seu intento perde-se na encruzilhada que a desviará da tragédia para a colocar na direção do melodrama. A imposição de uma visão voltada para o passado comum entre os povos, da mitologia, do espaço atemporal contido na adaptação fabular não convence plenamente os que leram o livro e se depararam com outras prioridades sequer sugeridas pela adaptação. Na verdade, o silêncio com relação a estes aspectos da obra literária revelam muito mais das intenções do cineasta brasileiro do que as motivações expressas nos meios de comunicação, por ocasião do lançamento do filme.

O livro conta a história de um rapaz vivente em uma região localizada ao norte da Albânia, onde gerações de famílias são submetidas a um código de sangue denominado Kanun, e ao qual o jovem Gjorg Berisha, devido à morte do irmão, foi obrigado a recorrer, deixando cair sobre si a pegajosa mancha de sangue. Paralelo ao drama do rapaz, temos a chegada à região do escritor Bessian Volps e sua esposa Diana, que resolvem passar a lua-de-mel em meio a paisagem humana e geográfica “pitorescas”. O interesse da obra deve-se, em grande parte, às idas e vindas da narrativa e às distâncias e aproximações entre os dois mundos retratados. Estas diferenças explodem na página 181 do livro, em um diálogo extremamente direto entre o escritor Bessian Volps e o médico que, ao ser recriminado por seu trabalho ingrato de contabilizar feridas ao invés de curá-las, joga na cara do escritor as palavras introdutórias deste artigo, que são respondidas pateticamente por Bessian e retrucadas, definitivamente, pelo exaurido dr :

“Acho que o senhor tem razão. Não passo de um miserável fracassado. Mas ao menos tenho consciência do que sou e não enveneno o mundo com livros.”

Para percebermos o grau de auto-complacência do diretor, basta substituirmos na frase a palavra “livros” pela palavra “filmes” e veremos o quanto a adaptação deixa a desejar quando não achamos em sua narrativa o elemento de auto-crítica impiedosa tão caro à história contada por Kadaré. Pode-se dizer que esta opção foi motivada pelas visões universalistas de Walter Salles Jr, mas, de igual modo, a versão de que tais omissões partiram de um medo congênito do cineasta brasileiro em expor-se, de se colocar nu frente a seu público, como o fez Kadaré quando escreveu o livro, é tão válida quanto qualquer outra. Ou até mais reveladora.
Walter Salles substitui o interessante contraponto pela lamentável folclorização da cultura nordestina. O casal de intelectuais é substituído por um casal mambembe, artistas andarilhos, que representa um nordeste lúdico e desvirtua de maneira definitiva qualquer possibilidade de discussão do posicionamento do diretor com relação àquela realidade. Quando ele opta unicamente pelo ponto de vista do excluído, do pária social, ele está retirando os elementos que fornecerão um dos aspectos mais interessantes da obra, que é a crítica corrosiva ao papel do artista em meio às catástrofes sociais e às suas representações.

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Sem querer entrar numa análise exaustiva que fugiria ao tema central deste artigo, A Primeira Pessoa no Cinema, e ao filme que propomos analisar, Spider, achamos necessário chamar a atenção para o que consideramos ser uma falha recorrente da crítica cinematográfica atual, e que, a nosso ver, compromete de maneira significativa uma análise mais criteriosa dos filmes, podendo, ao longo prazo, torná-las perigosamente isoladas de um contexto salutar de livre diálogo, em especial, com os livros.
Esta relação equivocada da crítica cinematográfica atual com a literatura pode ser encontrada em observações acerca do filme Abril Despedaçado, de Walter Salles Jr, onde claramente se vê que muitos dos que criticaram o filme, favorável ou desfavoravelmente, não utilizaram o livro homônimo como referência nas análises. Este fato seria amenizado caso o filme se chamasse simplesmente Despedaçado, o que justificaria em parte a falta de integridade dos comentários e de verossimilhança do filme com sua matriz. Porém, o título da obra e as intenções do diretor impediriam tais simplificações. O filme amparou-se no prestígio do livro e do seu escritor, contando, inclusive, com o aval de Ismail Kadaré, cujos comentários positivos com relação à adaptação foram explorados na divulgação da película. Talvez isso tenha intimidado os críticos a falarem da qualidade da adaptação e, de quebra, sobre as diferenças significativas do espírito da obra adaptada com relação ao livro; afinal, seu próprio escritor assumiu-a como uma das melhores transposições feitas a partir de um texto seu e, certamente, não há ninguém mais apto a emitir tal julgamento.

Entretanto, vemos que esta atitude dos críticos, antes de refletir uma reverência ao escritor albanês, tem origem em um preconceito que vem se tornando fisiológico. Para constatar isso, basta ler outras críticas que analisam filmes de igual natureza como Spider, Os matadores, Uma Vida em Segredo, etc todos eles adaptados e todos tendo seus livros, uns mais, outros menos, desmerecidos na análise. Este posicionamento com relação ao livro, especialmente ao livro que deu origem ao filme, vem transformando a crítica cinematográfica em um ambiente hermético, em um monólogo que em nada colabora para a inserção do cinema na dinâmica que o torna, juntamente com as outras artes, um manifestação humana, perene e, providencialmente, impura.

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Na introdução do livro “Os Filmes da Minha Vida”, François Truffaut constata, não sem uma certa dose de ironia, que “qualquer pessoa pode se tornar crítico de cinema; não será exigido do postulante nem um décimo do conhecimento que se exige de um crítico literário, de música ou de arte.” Na época, ouvia-se em Hollywood a máxima confirmativa: “Cada um tem duas profissões, a sua e a de crítico de cinema”, anotada e transposta por Truffaut para as páginas desse interessante compêndio de textos críticos, cuidadosamente selecionados pelo autor. O cineasta revela-se um crítico maduro, cuja autoridade já não se sustenta mais na polêmica dos artigos juvenis. O livro, lançado na década de 70, mantém atualidade em suas observações argutas sobre a condição do crítico de cinema, quanto mais as confrontamos com a situação das críticas ligeiras de jornais e revistas contemporâneos.

O álibi para a falta de profundidade da grande parte desta produção é o dinamismo que a notícia impõe ao crítico, juntamente com o curto espaço que em nada colabora para apreciações mais ponderadas e fundamentadas. A isto decorre a divisão sugerida por José Carlos Avelar, que, em argumentação contemporizadora, soube discernir duas ações distintas: a de escrever sobre o filme, tarefa afetiva, mais ligada à percepção imediata; e a de analisar o filme, trabalho da crítica especializada. Somente o espaço aberto por esta última, forneceria um amplo horizonte ao pensamento. Escrever sobre filmes, entretanto, exigiria antes uma esquina que um horizonte. Nada temos contra as esquinas, nem contra a síntese, o coloquialismo e as impressões da crítica ligeira. Mas, preocupa-nos que o vão colocado entre o escrever e o analisar transforme-se em um abismo, de tal forma que as idéias pairem falsamente expressivas, olhem para baixo, se dêem conta do vazio e caiam, como o coiote animado da Warner. A curiosidade de saber cada vez mais, de pesquisar, de se aprofundar não pode conformar-se em um espaço restrito, muito embora seus produtos estejam a ele contingentes. As idéias admitem a síntese; mas a síntese deve partir de um cérebro ávido e expansivo.

Apesar de algum esforço da parte de algumas publicações em incrementar seus suplementos culturais com uma crítica de qualidade, vemos que muitas vezes a intenção esbarra em certos preconceitos, ou manias, que impedem uma exploração mais integral da obra por aqueles que a analisam (ou escrevem, simplesmente). Uma destas manias, em especial, é o desprezo ao livro em que um filme foi baseado ou adaptado. Para muitos críticos, a análise de uma obra cinematográfica adaptada prescinde de sua fonte de inspiração. Tem-se com o livro, nestes casos, o mesmo procedimento que se tem com um coelho dentro da cartola: puxam-no pelas orelhas. Chegou-se ao ponto em que se um livro não tiver mais orelhas, deixará de ter alguma utilidade para a crítica ligeira. A leitura do livro que originou o filme por vezes torna-se dispensável em uma lista adaptada aos caprichos de um tempo curto e de um público ávido por impressões mais diretas e emocionais.
Ao curto tempo, ao curto espaço e à pouca exigência do público alvo acrescenta-se ainda uma visão estóica de cinema. De uma certa forma, o filme em si já trás elementos suficientes para o julgamento analítico, podendo-se chegar a questões importantes relativas ao projeto sem a consulta à obra em que foi inspirado. Mas, apesar da grande gama de elementos estéticos fornecidas pelo cinema ao deliciado crítico, quando se trata de um filme adaptado, a recusa em inserir o livro dentro do foco analítico, se não compromete as verdades a que se pode chegar, diminui, em muito, as possibilidades de alcance de uma visão proporcionada pelo diálogo do cinema com a literatura. Não só o filme adaptado deve ao livro, mas de uma maneira mais ampla, o próprio cinema deve à literatura parte de seu suporte teórico e lingüístico.

“Para mim, o romance é como a história e como o seu protagonista, o homem: um gênero impuro por excelência”.

Quando Ernesto Sabato confere impureza ao romance, faz pela literatura o que André Bazin fez pelo cinema. Em um célebre artigo, Bazin confessou o despropósito de uma determinada vertente do pensamento crítico de tornar a linguagem cinematográfica em uma mera abstração, assim como a crítica estruturalista vinha tornando as belas letras. Paulo Emílio Sales Gomes engrossou o cordão das impurezas ao concluir, em sóbrio refrão:

“Atualmente, porém, os melhores filmes e as melhores idéias sobre o cinema decorrem implicitamente de sua total aceitação como algo esteticamente equívoco, ambíguo, impuro.”

A reivindicação de um cinema impuro e, no presente caso, de uma crítica impura é antiga. Nossa intenção aqui não é a busca da originalidade, mas a constatação de que tal assunto não se esgotou. Sua recorrência justifica-se na medida em que o seu alvo também se torna visível, como uma maçã, sobre as frontes circunspectas dos novos platônicos. Talvez seja Platão, com o Mito da Caverna, o primeiro a realizar uma crítica cinematográfica na história da humanidade, com uma vantagem adicional profética sobre os críticos atuais: o filósofo grego a realizou numa época em que o cinema nem sequer sonhava em existir. Platão não gostou muito do filme, nem das futuras acomodações. Nem por isso deixou de conquistar um lugar cativo na cabeceira de alguns críticos, mais de dois mil anos depois, que trabalham duro para manter longe a impureza das sombras.

A maior contradição existente nesta visão platônica de cinema, é o fato dos seus postulantes alimentarem tais ambições enfiando a mão no lodo das palavras e de lá conseguirem trazer algo aproveitável, o mínimo que seja, para esboçar as maravilhas da sétima arte. Seria impossível a realização de qualquer crítica cinematográfica sob estes termos, mesmo sendo as palavras instrumentos extremamente valiosos para o triunfo das argumentações. Constatada esta impossibilidade, seria plausível, então, a um crítico cinematográfico comentar os filmes utilizando os recursos próprios do cinema e não os da literatura, somente para sustentar a pureza crítica? E, ao invés de publicá-las em jornais e revistas, exibi-las nas sessões correspondentes, como um curto comentário sobre o filme deflagrador da análise cinemática? Se levadas às últimas conseqüências, a busca por uma crítica cinematográfica pura resultaria desastrosa ou, comprovado o talento do crítico como cineasta, sempre além dos esforços necessários, já que uma ou duas páginas escritas seriam suficientes. Quando se assume a crítica como algo tão impuro quanto seu objeto, o trabalho fica bem mais simples. O futuro do cinema puro ainda não chegou e, talvez, não chegue nunca. Não enquanto tiver como matéria prima privilegiada a própria transitoriedade do homem. O mesmo se pode dizer de seus dependentes indiretos...

Tendo em vista o que foi exposto até aqui, como analisar, ou mesmo escrever sobre o filme Abril Despedaçado, sem levar em conta o livro de Ismail Kadaré? Como demonstrar as conseqüências das escolhas do cineasta Walter Salles Jr, como avaliar suas omissões se retirarmos o romance e seus elementos originais da perspectiva da análise? No nosso entender, se tais escolhas fossem avaliadas devidamente, muito do poder poético propagandeado pelos admiradores do filme seria facilmente derrubado por seus detratores, que até o momento intuíram, mas não apresentaram de maneira convincente os maneirismos histriônicos contidos na obra. Walter Salles pretendeu com o filme confirmar sua ascensão ao mundo dos estetas do cinema. Para isso, higienizou a obra de Kadaré, mostrando a tendência do novo cinema brasileiro em fugir do pesadelo da auto-crítica. Podemos inferir talvez um reflexo de uma reação geracional, onde se procura imprimir outras prioridades que não as buscadas pelo Cinema Novo, cuja auto-referência era uma das principais características...Ou seria medo em estado bruto? O fato é que, sem uma leitura atenta do livro, essas questões ficam em branco, como que à espera de serem escritas.

Nelson Pereira do Santos, sem dúvida um cineasta extremamente feliz nas adaptações literárias que fez para o cinema, observa que para o seu êxito, além de se manter a essência do livro, uma boa adaptação deve escolher o ponto de vista de um personagem a partir do qual se construirá a narrativa cinematográfica. Esta escolha, em meio a tantas outras que farão toda a equipe de criação mobilizada para a realização do filme, longe de ser arbitrária, poderá nos conduzir ao coração do criador. Seus batimentos aceleram-se ou desaceleram-se conforme a empatia por um determinado personagem, por uma determinada situação, intermediada por sua visão de mundo particular. Ao final (se o diretor não sofrer um ataque cardíaco antes da conclusão) resta-nos os impulsos nos quais podemos diagnosticar estética e ideologicamente uma obra. É claro que eles estão ali independentes do livro, mas um confronto com os de sua matriz, certamente, os tornarão mais expressivos.
A contundência possibilitada pelo contraste, longe de constituir-se em algo supérfluo, pode mostrar-se de grande valia para as conclusões a que se queira chegar, não só com relação ao filme, mas também na relação do filme com seus congêneres. Além do exemplo de Abril Despedaçado, a riqueza analítica fornecida por essas relações pode ser conseguida ao compararmos o livro de Patrick McGrath, Spider, com o filme homônimo de David Cronenberg.

Afora esta particularidade comum, em tudo o mais a sua adaptação difere da realizada por Walter Salles Jr. Apesar de ser um livro com qualidades estéticas bem inferiores ao de Kadaré, a adaptação resultou em um produto muito mais fiel, no sentido de atmosfera, e, consequentemente, valorizou em muito os elementos disponíveis pela narrativa literária, transformando Spider em uma das mais instigantes adaptações cinematográficas dos últimos tempos. Curiosamente, este não é o melhor filme do diretor canadense. Mas, as questões que o filme é capaz de levantar, quando comparado à obra na qual teve origem, são tão interessantes, que acabam tornando tanto o livro quanto o filme melhores do que realmente são, pelo estranho diálogo mantido entre os dois, intermediado pelo escritor e roteirista McGrath.

Um destes aspectos que uma comparação cuidadosa pode destacar é a relação entre estas duas linguagens com a primeira pessoa narrativa, sobretudo, os diferentes recursos usados por uma e por outra para dar credibilidade a esta voz onipresente do discurso. Tentaremos, a partir de agora, falar um pouco sobre isso, ainda que tal assunto, ao contrário da longa introdução que fomos obrigados a fazer em defesa dos livros, apresente dificuldades que fogem da alçada de nosso conhecimento.

 

BIBLIOGRAFIA

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SALÉM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: O Sonho Possível do Cinema Brasileiro. 2 ed.
RJ: Record, 1996.

TRUFFAUT, Francois. Os Filmes da Minha Vida. RJ: Editora Nova Fronteira, 1975