John Milius, o herói americano
e o campo de batalha


O Vento e o Leão, de John Milius

O último filme de John Milius feito para cinema, Intruder A-6, saiu aproximadamente na mesma época em que o exercito norte-americano bombardeava o Iraque pela primeira vez. Há uma certa ligação do ponto de vista de Milius com a Guerra Fria que parece depois disso torna-lo desnecessário, inútil. A grande ironia, caído o perigo vermelho já parecia não haver função para o cinema de Milius nos tempos de Bill Clinton. De certo há algo de anacrônico nesses filmes, de alguma forma já havia mesmo na Guerra Fria, mas não se enganem há muito de atual aqui. Por sinal, Milius acabou de dar inicio a pré-produção do seu próximo filme, filme de guerra.

Pois bem, vejamos qual a história do seu segundo filme, O Vento e o Leão: 1904. Um bárbaro muçulmano (Sean Connery) seqüestra dois americanos no Marrocos. O presidente americano Teddy Roosevelt (alter-ego ideológico de Milius invocado na maioria de seus filmes, interpretado aqui por Brian Keith) as vésperas de uma eleição decide que alguma coisa devia ser feita. Mesmo sabendo que as potências colonialistas européias iriam protestar, ele ordena que o exército prepare uma invasão de resgate. Poucas vezes o cinema americano foi tão direto na sua apologia ao intervencionismo militar no exterior. E pode-se somar a isso que o filme é de 1975, quando da crise dos preços do petróleo ainda não havia sido contornada e o exercito americano se retirava desastradamente do Vietnã.

Ver os filmes de John Milius acaba por se revelar sempre uma experiência das mais interessantes neste sentido, porque poucos cineastas da direita americana são tão diretos no que pensam (vale lembrar que geralmente estes gostam de posar de apolíticos). Há em especial uma paixão pela guerra, um militarismo apaixonado presente em toda a sua obra. De certa forma todos os filmes de Milius são filmes de guerra, seja a guerra contra os gangsters (Dillinger), a invasão ao Marrocos (O Vento e o Leão), a de um tempo mítico (Conan, O Bárbaro), uma fictícia III Guerra Mundial (Amanhecer Violento), a II Guerra (Uma Vida de Rei) e por fim o Vietnã (Intruder A-6). Mesmo Big Wednesday, o seu épico sobre surf parece assombrado pela guerra do Vietnã.

Há dentro do cinema de Milius um desejo pelo herói, por construir o mito de um grande herói americano. Mito este que parece só poder se completar na guerra. Mesmo em alguns dos seus roteiros anteriores a passagem para direção (Perseguidor Implacável, Apocalypse Now), este esforço já está de certa forma se esboçando. A partir de sua passagem para a direção este processo de mitificação fica mais claro. Vejamos a cena de abertura de Dillinger. O famoso ladrão (Warren Oates) invade um banco gritando "Vocês estão sendo assaltados por John Dillinger. Os poucos dólares que vou roubar vão te comprar várias histórias para contar para seus netos. Este pode ser um dos grandes momentos da sua vida, não faça com que seja o último". Tanto Dillinger quanto o policial que o persegue, Marvin Purvis (Ben Johnson) parecem ter a consciência de que a guerra que travam também é uma guerra de manchetes, onde a suas respectivas imagens diante da opinião pública contam tanto quanto a caçada que um empreende ao outro.

Se Dillinger é o melhor dos filmes de Milius, isto talvez se dê justamente por ser aquele onde estes objetivos fiquem melhor traçados e equilibrados, além de ser aquele onde a sua visão de mundo e talvez em especial a parte dela que nem ele mesmo parece ter controle, melhor se apresenta. Primeiro, o diretor toma um ponto de partido raro, se não único no gênero, para narrar a história do mais famoso ladrão de bancos americano, ele adota o ponto de vista de Purvis, o homem que o caçou impiedosamente. E é assim que se dá o início do filme, nossa posição diante de Dillinger é sempre estranha, vemos um homem falastrão, violento e distante. Como se Milius partiu para o projeto para fazer um revisionismo na figura habitual do gangster carismático. Então algo acontece e Dillinger começa a se tornar progressivamente mais humano, envolvente e por fim, carismático. O filme nunca abandona o ponto de vista de Purvis que segue sendo nosso primeiro olhar sobre a história, mas Dillinger deixa de ser o vilão para ser um anti-herói. E o filme deixa de ser a construção do mito do grande policial Purvis que caçou vários dos bandidos mais perigosos do seu tempo -- além de Dillinger, ele arranjou tempo de perseguir quase toda a lista dos 10 mais procurados da época e o filme quebra sua narrativa há todo momento para mostrar a sempre heróica captura ou execução de um deles --, e se torna também a construção de um outro mito, o do grande anti-herói John Dillinger. Quase como se Milius tivesse partido para detonar o seu biografado e no meio do projeto se apaixonado pela figura dele. No final não só Purvis admite que passou a nutrir um grande respeito por ele (respeito este não estendido aos outros gangsters, em especial a um demente Baby Face Nelson, não só morto por Purvis, mas antes humilhado pelo próprio Dillinger) como a posição entre a policia e os gangsters começa a se confundir (o gerente do cinema de onde Dillinger sairá para a morte e o mito, confunde os policiais que o esperam a paisana com bandidos).

O militarismo em Milius parece existir da necessidade de se provar este heroísmo. O grande herói americano só pode se formar se for a guerra. Seria portanto preciso se criar sempre um novo campo de batalha para que se posso provar novamente este heroísmo. Não há muito vida para o herói de Milius após a guerra, a Melvin Purvis, por exemplo, caberá uma seqüência de decepções e por fim o suicídio (com o mesmo revolver que matou Dillinger o letreiro nos informa). Vale se dizer também que apesar de ter começado como roterista, Milius não lança mão de psicologismos baratos para explicar as razões de seus personagens, o que os movem parecer ser em primeiro lugar um desejo pela aventura, pelo campo de batalha (somado a um forte senso de americanismo, vários dos heróis de Milius parecem equivaler ser um bom americano com ir ao campo de batalha). Quando a namorada de Dillinger o pergunta sobre o porque ele se tornou ladrão, este responde: "era o meu sonho de infância". Mesmo em Conan,o Bárbaro onde o roteiro (co-escrito com Oliver Stone) se abre com o vilão assassinando a família do herói, o que parece mover o personagem titulo é menos a vingança, do que o gosto pelas batalhas.

Há portanto a necessidade da guerra e com ela a necessidade de se criar sempre novos rivais. É aqui que um filme como O Vento e o Leão se distância muito do noticiário da CNN. Porque há da parte de Milius uma necessidade de ter o respeito do adversário. Por mais que o contexto da Guerra Fria, e com ele um inegável nacionalismo extremado, estejam presentes nestes filmes, eles vem junto com a admissão quase a contra gosto, de que há sempre algo de nobre, de digno naquele que se encontra do outro lado do campo de batalha. Melvin Purvis não seria grande para Milius, caso ele tivesse sido responsável apenas por caçar Baby Face Nelson. Da mesma forma, o grande dilema de Teddy Roosevelt em O Vento e o Leão é justamente que ele (o vento) acaba por nutrir simpatia pelo bárbaro Raisuli (o leão). Mais do que isso não deixa de vê-lo de certa forma como um igual já que reconhece neste outro as mesmas qualidades que tanto ele, Roosevelt quanto Milius crê como essenciais.

Talvez seja por isso que há uma virada pesada nos filmes de Milius a partir da década de 80 (com a possível exceção de Uma Vida de Rei). Os filmes deste período parecem vir acompanhado de um senso de que já não há causas que justifiquem o heroísmo de outrora. James Earl Jones em Conan, o bárbaro ou os russos em Amanhecer Violento já não parecem tão dignos de respeito quanto o Raisuli. O resultado disso que há, por um fim, uma sensação de heroísmo vazio nesses filmes. O fim de Conan é bem menos triunfal do que aparentemente deveria ser.

O caso de Amanhecer Violento é ainda mais interessante, apesar de o filme ser bastante desigual com certos problemas de realização não encontrados em outros trabalhos do cineasta. O filme é menos a fantasia de vingança que o tornou infame, do que uma reflexão sobre a figura do herói caído pego em seu momento de derrota. A premissa é uma das mais ridículas já filmadas, a União Soviética invade os EUA de surpresa e dá inicio a III Guerra Mundial tomando (com o apoio dos cubanos) a maior parte do meio oeste e um grupo de adolescentes que escapa para as montanhas monta uma milícia de resistência. Há uma sensação de vazio passando por cada uma das pequenas vitórias da milícia, um reconhecimento de que se trata de um esforço inútil e que cedo ou tarde o imensamente superior poderio bélico do adversário vai supera-los. Há ecos de um Vietnã as avessas e um grande senso de melancolia. Enquanto a ação avança se reduz cada vez mais a diferença entre a milícia e os russos, ao ponto de no final eles se vestirem com vestimentas roubadas de soldados assassinados. No fim não há vitória e a única marca de heroísmo é a resistência. Em Intruder A-6, onde pilotos americanos se vêem arriscando-se em bombardeios que eles sabem não ter função nenhuma, não há mais nem isso (apesar do diretor desconsiderar o filme que aparentemente foi todo remontado pelo estúdio). Ou melhor há, mas o heroísmo para Milius em 91, já poderia se realizar apenas de forma não-oficial, no descumprir das ordens.

Filipe Furtado