Retrato de um Assassino,
de John McNaughton
Henry: Portrait of a Serial Killer, EUA, 1986
Chicago, EUA
Henry
Retrato de um Assassino se abre prestando homenagem a Hitchcock:
plano fechado numa face imóvel e inexpressiva, a câmera recua
lentamente em espiral para revelar por inteiro o corpo nu de uma mulher
morta. Corta para uma mão apagando um cigarro no cinzeiro.
Um recurso simples, extremamente eficaz: entrecortando curtos fragmentos
do cotidiano de Henry (Michael Rooker), o matador em série, com
imagens congeladas no tempo de suas vítimas, reveladas com estudados
movimentos de câmera e sons distorcidos reminiscentes do momento
dos assassinatos, o diretor John McNaughton demonstra algumas qualidades
raras já nos primeiros minutos de sua estréia. A técnica
pode ser banal, mas seu emprego, que é o que interessa sempre,
é magistral: a atmosfera doentia da narrativa é estabelecida
de pronto enquanto nos é apresentada a personagem esta construção
elíptica, em pleno acordo com a natureza evasiva do protagonista,
serve como uma passagem só de ida, sem direito a escalas, rumo
à sua grotesca paisagem mental; um labirinto sem saída em
que, mal percebemos, já nos encontramos encurralados.
McNaughton
é um cineasta direto, nada afeito a firulas ou papagaiadas. O que
não significa que não tem estilo, pelo contrário:
Henry é mesurado, elegante, econômico, seco, cortante;
não busca o choque a qualquer custo, e McNaughton trabalha o excesso
com um senso agudíssimo de observação e introspecção.
O diretor quase sempre parte de materiais e temas de exploitation, mas
sua abordagem recusa o sensacionalismo ou o mero fascínio pela
degradação empregando um alto grau de reflexão
que se deixa notar na utilização da metalinguagem em Henry,
seja na sequência em que a dupla de assassinos assiste repetidamente
ao massacre de uma família suburbana ou naquela outra em que eles
filmam mendigos se matando por um pedaço de pão.
A
trama tem início quando Becky (Tracy Arnold) desembarca em Chicago
para morar com seu irmão Otis (Tom Towles), e recomeçar
a vida depois de um casamento fracassado. Acontece que Otis divide seu
apartamento com Henry, o ex-colega de penitenciária que, sabemos,
é o tal serial-killer de quem se propõe traçar um
retrato. McNaughton não pede licença para filmar suas personagens:
vemos Becky pela primeira vez num plano fechado em seu rosto, a câmera
encarando de frente, sem dó nem piedade.
Nenhum
cineasta trabalhando atualmente no cinema norte-americano, independente
ou não, rebelde ou domesticado, é tão livre de paternalismos
ou de quaisquer válvulas de escape quando se trata de filmar a
ponta menos favorecida do tecido social americano. Em tempos de intenso
e até certo ponto acalorado debate sobre a representação
da parcela excluída da lógica do capitalismo e do lumpen,
o olhar livre de McNaughton é um antídoto contra as simplificações
grosseiras: não há moralismo, não há gratuidade;
qualquer explicação reconfortante para a conduta do matador
é descartada. A psicologia esbarra na expressão de Michael
Rooker, opaca, única. Henry pode até ser um monstro socialmente
produzido, mas McNaughton, cineasta da subversão como Fuller, não
corrobora esta visão sem lançar mão antes de um derradeiro
e provocante golpe de vista: Henry, afinal, se revela a última
etapa das transformações do loner o arquetípico
herói americano, individualista radical, introspectivo, solitário.
Parte
significativa do filme é dedicada à relação
entre Henry e Otis, uma espécie de introdução à
filosofia da arte uma arte cujo objeto, tema e instrumento é
a morte (Henry é o autor das "instalações"
do início do filme, muito semelhantes às fotografias de
"Mad Dog"/Robert DeNiro em Uma Mulher para Dois). Otis
encontra na apatia de Henry uma instância libertadora; nos assassinatos
praticados pela dupla, a frustração sexual de Otis é
resolvida em rituais adolescentes de vingança contra a ordem, puras
celebrações de destruição da ordem social.
Otis mata porque é marginalizado, ele se vinga contra o sonho americano
da família e do consumo, do qual sempre foi excluído; em
Henry, por sua vez, não há nenhum sinal de motivação
semelhante, mas o cumprimento de uma determinação de ordem
existencial: ele mata porque faz parte de sua natureza. Sua visão
do mundo, em que todos são vítimas e predadores em potencial
(sintetizado numa frase dita a Otis "it's either them or us"),
serve aos dois propósitos.
Quando,
no fim, Otis pratica um ato de traição contra seu pai simbólico,
ele tem os olhos vazados, num desfecho que repete em parte a tragédia
clássica. O assassinato espetacular de Otis tem ares de um manifesto
e este é o clímax, o ponto de inflexão central
de toda a história. Neste momento algo parece mudar: o ato de Henry
obedece a uma determinação de ordem moral, o serial-killer
deixa entrever uma ética até então insuspeita
ele encontra uma motivação.
Acompanhamos o desfecho com a respiração presa, num estado
de suspensão; uma sequência de diálogos precisos cadenciados
por silêncios expressivos revela a genialidade da mise-en-scéne
de McNaughton. O espaço urbano soturno de Chicago é deixado
para trás enquanto Henry tenta convencer Becky a ouvir música
no carro, seguindo viagem no espaço mítico da estrada, locus
da transformação e da entrega a um destino incerto.
Um
quarto barato de motel abriga o último golpe de vista, uma última
e impressionante elipse. No fim, a civilização termina numa
mala manchada de sangue abandonada na beira da estrada, enquanto o matador
segue viagem. O pior dos horrores nasce desta constatação:
Henry acabou de cruzar a última fronteira, e adentrou definitivamente
o terreno do mito.
Fernando Verissimo
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