O
show tem que continuar


Liza Minelli e Joel Grey, Cabaret:
"Money makes the world go around"
Se o
século XX é o século das imagens e se o século
XX é o século dos EUA, não é difícil
entender porque os EUA e a sociedade das imagens estão tão
diretamente conectados. Sociedade midiática acima de todas as outras,
os EUA dominaram como nenhum outro país o conceito de "espetáculo".
O "espetáculo" é uma das noções que ajuda
a explicar, por exemplo, o domínio mundial do cinema americano
dos corações e mentes de pessoas de lugares tão diferentes
e peculiares. A grande descoberta americana (e o cinema está longe
de ser o único local para isso, mas sem dúvida é
dos mais particularmente suscetíveis) foi a de que a vida, se tornada
espetáculo, é muito mais vida do que a rotina do dia a dia,
ou pelo menos é assim que se prefere vê-la. Essa mistura
das noções de vida e espetáculo nos ajuda a entender
desde a cobertura de guerras pela TV até o conceito de espetáculo
esportivo (completamente diferente nos EUA do resto do mundo), até
o onipresente fenômeno dos "reality shows" e das celebridades instantâneas.
O cinema americano,
que tem outra de suas mais espetaculares capacidades em conseguir tematizar-se
enquanto se faz, lidou com a noção do espetáculo
e sua mistura com a vida (até, muitas vezes, tornarem-se um só)
muitas vezes ao longo do século, mas em especial no cinema mais
recente, onde a TV passa a ter a força e a onipresença que
adquiriu recentemente. Não por acaso a TV, seu processo de realização
e, mais do que tudo, o poder sobre o espectador, está presente
em filmes tão diferentes quanto 15 Minutos e A Hora do
Show, ou nos filmes que lidam mais diretamente com conceitos sobre
a questão do reality show, desde O Show de Truman a O
Sobrevivente, passando por ed tv ou Showtime. Mas, talvez,
a característica mais interessante que une estes filmes seja menos
uma possível reflexão sobre mistura entre vida e espetáculo,
e mais a constatação de que todos (seja em chave cômica-despretensiosa,
seja num olhar mais sério) tomam para si um olhar crítico
sobre o fenômeno desta mistura, e acima de tudo, sobre a TV em si.
No entanto, nunca questionam a sua própria produção,
a sua própria espetacularização da vida, a sua própria
e muito mais profunda "ilusão de realidade", que faz as pessoas
querendo viver "vida de cinema". Talvez o exemplo mais clássico
seja mesmo Assassinos por Natureza onde Oliver Stone liga uma metralhadora
giratória que atira para todos os lados, mas nunca completa o 360º
e se volta para si mesmo. O que Hollywood parece tentar é muito
parecido com a cobertura que as empresas jornalísticas costumam
fazer quando cobrem crises econômicas ou negociatas: se auto-impõem
o papel de defensoras do povo e da Humanidade, enquanto invariavelmente
escamoteiam os problemas que dizem respeito a si mesmas ou a empresas
do ramo, co-irmãs. Cria-se uma suspensão da realidade segundo
a qual uma tal quarta parede deste jogo teatral nunca pode ser quebrada.
Podemos criticar, mas fazendo força para que não olhem para
mim.
Mas, nem sempre foi
assim no cinema americano. Houve alguns cineastas que, nos anos 70 e início
dos 80, se dedicaram a reflexões sobre o estado de espetáculo
que seu meio criava com as pessoas, de forma bem menos complacente consigo
mesmos (é importante que lembremos aqui que a expressão
"estado de teatro" se refere classicamente à corte francesa do
século 17, então não é nenhuma novidade pós-moderna).
Tendo variado do olhar mais lírico (e ainda assim profundamente
crítico) de Coppola em O Fundo do Coração
à amargura de Martin Scorsese em O Rei da Comédia,
o que se via era uma tematização de uma vida que parava
de fazer sentido frente ao espetacular que era vendido o tempo todo para
as pessoas como algo a se aspirar como objetivo de completude. Você
não é ninguém se não está vivendo um
sonho de constante e espetacular proporções.
Mas, nenhum cineasta
tematizou tão obsessivamente estas relações e perdas
de fronteiras quanto Bob Fosse, talvez um dos menos reconhecidos gênios
do cinema contemporâneo. Se olhada em conjunto, sua obra (de apenas
cinco longas) impressiona pela absoluta coerência. Em todos os filmes,
o protagonista é um "entertainer" de algum tipo. Mas, se seus filmes
lidam com o mesmo ambiente, ninguém pode chamá-lo de monotemático:
ele discute desde questões afetivas e familiares (All That Jazz,
Lenny), ao encontro com a morte (All That Jazz), drogas
e liberdade de expressão (Lenny), bissexualidade, tolerância
e ascensão nazista (Cabaret) até a emancipação
sexual da mulher (Cabaret, Star 80). O que ele tem de coerente
(e não de repetitivo) são algumas mesmas preocupações
essenciais constantes: o ser humano ainda consegue diferenciar vida de
espetáculo? Será que há diferenciação
possível, mesmo se desejada?
A grande sacada de
ver Fosse se dedicar a isso na sua carreira é justamente que sua
origem seja como dançarino e coreógrafo, trabalhando naquele
que é o mais espetacular dos meios artísticos recentes:
os musicais da Broadway. Daí para os musicais no cinema, que são
por definição os filmes de gênero mais sonhadores
e descolados da realidade direta. Por isso tudo, o mais interessante em
ver Fosse trabalhar estes conceitos é que ele não o faz
a frio, distanciadamente, e sim enquanto manipula os mesmos objetos que
questiona constantemente. Essa relação intrínseca
entra forma de viver, objeto de trabalho e reflexão, encontra sua
maior expressão na obra-prima de seu trabalho que é All
That Jazz (que ganhou no Brasil o raro adequado subtítulo de
O Show tem que Continuar). Neste, Fosse faz o derradeiro movimento
na sua coerente trajetória: o de tornar sua própria vida
(e, pasmem, morte) um espetáculo. Não é possível
mistura semelhante de homem/criador de arte/objetivos como artista.
Mas se All That
Jazz é um ápice, no primeiro filme de Fosse a mesma
preocupação já estava presente. Charity Meu Amor,
um musical pós-68 (na verdade, ele é de 68, mas a sensação
é de estar à frente), Fosse encena a vida de uma dançarina
de nightclub que sonha em viver a vida perfeita com um amor impossível
("just like in the movies", ela diz). Baseado em Noites de Cabíria
(e já diz muito da sociedade americana e sua relação
com o espetáculo que alguém possa ver o filme de Fellini
e sair de lá com a certeza de que aquilo daria um musical!), o
filme tem uma personagem de força bastante semelhante ao de Giuletta
Masina (e uma Shirley MacLaine de poesia bastante próxima), onde
melancolia e um otimismo muito próximo da demência se misturam
criando uma personagem que é típico produto desta mistura
da "busca do sonho de algo melhor" com os sonhos construídos pelo
mesmo cinema clássico do qual o filme faz parte. Uma fala especialmente
impressionante se dá quando Charity consegue entrar num bar de
ricos e famosos e afirma "ser a única pessoa aqui de que eu nunca
ouvi falar". Conhece-se mais o outro do que a si mesmo.
O final do filme surpreende
pela sua tristeza, ou melhor, pela sua negação ao "happy
ending". Ele não chega a ser triste por completo simplesmente porque
sua personagem vive de ilusão, então não aceita que
o final é ali. Mas, se este final surpreende pelo fato de Charity
parecer se encaminhar para um clássico desfecho de musical romântico,
em retrospecto é impossível que alguém que conheça
a obra de Fosse se surpreenda. Seus outros quatro filmes terminam com:
um suicídio, um assassinato seguido de suicídio pelo assassino,
a morte dele mesmo, e a ascensão do nazismo. Uau, that's entertainment!
E é justamente
esta corda bamba entre o mais declarado "entretenimento" e as reflexões
mais profundas e tristes que fazem de Fosse um cineasta surpreendente.
Como coreógrafo não é diferente, como podemos ver
pelos filmes musicais: seus números nunca são banais, os
movimentos dos bailarinos são cheios de estranhezas, ritmos sincopados
e inesperados, movimentos muito pouco clássicos. Mas, principalmente:
o Fosse cineasta nunca deixa de encenar seus números para a câmera.
Para a câmera e para a moviola, aliás. Com completo domínio
da linguagem do cinema, não faz com que tudo pare enquanto se dança
e canta. Dança e cinema são uma arte só em seus filmes.

Dustin Hoffman é Lenny Bruce em
Lenny.
Mesmo
seus filmes não-musicais têm um trabalho bastante elaborado
de linguagem, como se vê na estrutura narrativa de Lenny
e Star 80, que misturam encenações de entrevistas
(ambos são baseados em histórias reais), presente, passado,
projeções. As semelhanças entre os filmes, aliás,
são grandes porque seus protagonistas (Lenny Bruce e Paul Snider)
são ambos personagens que perderam a briga com a sociedade de espetáculo:
tentaram usá-la e acabaram completamente destruídos por
ela (ambos se matam, sendo que Snider após assassinar sua mulher).
Claro que o tipo de uso que tentam fazer é muito diferente (Snider
sonha em ser "famoso" e usa a beleza da mulher para isso, através
da revista Playboy, enquanto Bruce se torna famoso quase contra a vontade
quando descobre que simplesmente ser "verdadeiro" numa sociedade hipócrita
o tornava uma atração), mas os resultados são os
mesmos: há algo de muito mais forte do que eles em ação.
Este limite ligeiro
entre ter controle de sua vida e torná-la um espetáculo
conscientemente, e perder o controle dele é a fronteira tênue
onde passeiam todos os seus personagens. Em Lenny, All That
Jazz e Cabaret montagens paralelas constantemente contrapõem
a vida dos personagens com performances musicais (ou cômicas, no
caso de Lenny), onde uma comenta a outra, a outra explica a uma, ao ponto
de, mais uma vez, se perder o controle do que começa aqui e termina
ali. Neste quesito o filme mais complexo talvez seja mesmo Cabaret,
outro filme bem perto da perfeição. A cena em que uma simples
cantoria no interior da Alemanha nos faz entender todo processo de ascensão
do nazismo é uma dessas fronteiras quebradas que nos surpreendem
completamente. O que parecia um simples número musical vira uma
análise sócio-política, sem nunca deixar de lado
seu caráter de "entertainment". O mesmo se dá mais adiante
com o número entre o Mestre de Cerimônias (Joel Grey tem
uma das mais antológicas atuações do cinema americano)
e uma mulher vestida de gorila, que começa em chave cômica
e se mostra um comentário surpreendente sobre a intolerância
racial. Fosse controla plenamente (como Lenny Bruce não conseguiu
fazer, como vemos pelo final do filme) a fronteira entre entreter e contestar.
Nesse ponto é
que é quase irresistível colocar Chicago na discussão
porque, embora não seja de forma alguma um filme de Fosse, é
completamente baseado numa conceituação sua (que sonhava
em filmar o musical quando morreu). Esta conceituação é
menos a do filme que está na tela do que nos temas que ele levanta,
que estão todos espalhados por toda a obra de Fosse. Chicago
talvez seja o único caso de "filme de autor morto" na História
do cinema. Mas o fato é que entre "Life is a cabaret", "we live
in a should-be world instead of a what-is world" ("vivemos num mundo de
deveria ser, ao invés de um mundo de é assim" - frase de
Lenny Bruce) e "razzle dazzle", não há a menor diferença.
São todas encarnações diferentes de um mesmo artista
e suas preocupações. Preocupações que, como
fica claro no próprio Chicago ou em All That Jazz,
não o impedem de criar ou viver ou morrer (ao contrário
de Lenny Bruce), mas não o podem permitir continuar vivendo na
ingenuidade (como Charity), fingindo não conhecer as engrenagens
que fazem rodar não apenas o mundo ("money makes the world go around"),
mas especialmente o seu mundo - o mundo da Broadway, o mundo de Hollywood,
os Estados Unidos da América. Bob Fosse fez, do primeiro ao último
filme (ao filme que nunca conseguiu fazer) uma das mais subversivas obras
do cinema americano, ao mesmo tempo que uma das mais autenticamente americanas.
O show, afinal, tem que continuar.
Eduardo Valente
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