Nanook, O Esquimó, de Robert Flaherty
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Nanook of The North, EUA, 1922
Verdades
re-encenadas
A relação
de incertezas entre o olhar do cinema ficcional e o olhar do documentário
(como os dois paradigmas que nortearam a criação cinematográfica
do século XX) tem em Nanook, o esquimó a síntese
cristalina de seus dilemas. Polemico, apontado como o inventor do documentário,
acusado de ilusionismo e idealização da realidade, a obra-prima
de Robert Flaherty aparece na década de 20 como um desafio marcante
aos territórios demarcados pelo cinema. Com uma historia peculiar
de produção (o filme foi rodado duas vezes por inteiro,
já que os primeiros negativos se perderam em um incêndio),
o filme navega entre a experiência da jornada de Flaherty
ao Alasca em 1913 e a tentativa de recriar de forma autentica
o conteúdo do material original em sua refilmagem de 1920. A
seqüência da caçada das morsas, encenada pelo elenco
de não-atores do filme (apesar de este ser um hábito abandonado
anos antes das refilmagens, como assume o diretor), ainda hoje tenciona
os limites da intervenção do diretor/idealizador sobre
a realidade observada.
Dividido
entre o dispositivo-cinema como instrumento de registro cientifico/informativo
e as tradições do teatro filmado, o cinema encontrava
em Nanook um hibridismo até então impensável.
Entre o olhar épico das descrições de grandes eventos/paisagens
(cultivadas nos cinejornais e nos filmes-de-viagem) e o olhar dramático
da tradição do teatro filmado, Flaherty faz de Nanook
um filme que bebe na fonte do entretenimento narrativo e na liberdade
do registro in loco com uma só e mesma curiosidade.
Nanook,
o esquimó-ator, pode ser descrito como o primeiro personagem
tridimensional do cinema documentário e o marco de toda uma nova
tradição de representação da vida no cinema.
Longe de buscar a Verdade, o que parecia interessar a Flaherty era a
descoberta de uma nova impressão de autenticidade, uma nova forma
de construção de verossimilhança (aparência
de verdade) capaz de se aproximar do exótico, do homem não
adestrado, do desconhecido.
Curioso
notar-se que, ao contrario do que se poderia supor, o documentário
como gênero narrativo aparece aqui justamente como uma reapropriação
das construções da linguagem ficcional e se utiliza dela
como base sobre a qual intervir. O ''cinema do real'' aparece como uma
reinvenção dos padrões de ficcionalização:
Flaherty faz em Nanook o primeiro filme de viagem/registro a
explorar a construção da identificação publico/personagem
como motor central de sua observação. Longe dos grandes
eventos e das paisagens registradas por expedições cientificas,
Flaherty constrói não apenas um retrato de indivíduo,
mas a imagem de uma certa humanidade em estado bruto e de suas relações
com as forças da Natureza (tema seminal da obra de Flaherty -
ver O Homem de Aran, de 1934).
O mistério
do rosto silencioso do esquimó marca a fundação
de uma nova tridimensionalidade da personagem registrada, da invenção
da identidade a partir da interpretação de si diante da
câmera. Flaherty inventava ali uma ficção nova que
poderia ir alem dos esquematismos dos grandes estúdios e das
"interpretações delicadas" (expressão griersoniana)
das estrelas. A tentativa de objetivação, encontrada na
narração dos filmes de Flaherty, não era, lembremos,
uma postura nova; mas uma releitura do próprio modo de operação
narrativa (baseado em lições de moral e com raras nuances
de discurso) cultivada no cinema norte-americano nas décadas
de 10 e 20. Flaherty não se via, ao que deixa transparecer, como
o criador de um gênero para a Verdade no cinema (como depois se
propagou entre militantes do documentário e de um certo cinema
antropológico), mas de um modo de aproximação da
imagem e artesanato temático que apontariam para uma representação
humana para alem do teatro de gestos marcados.
O que
parece ser flagrante em Nanook não e seu lugar de ilusionismo
discursivo ou de realidade transcrita, mas o modo como ele registra
o momento em que o cinema descobre em seu aparato técnico a possibilidade
de uma dramaturgia liberta dos padrões de captação,
iluminação, interpretação e segurança
dos palcos-estúdios – expandindo os domínios da narrativa
dramática para alem do teatro encaixotado e das interpretações
cultivadas em formol. Não se trata, portanto, de documentário
ou ficção, mas do foco renovado em direção
ao discurso fílmico em seus desdobramentos, em suas possibilidades
de arquitetura e aproximação de temas. Se Grierson bebe
em Flaherty para fundar sua escola naturalista e engessada de documentários
(propagada nas TVs a cabo de todo o mundo ate hoje), também estão
na coragem de Flaherty as primeiras faíscas de um cinema narrativo
irrequieto com o lugar de onde se narra, com a forma de se aproximar
das imagens do novo, do não-familiar.
Um
falso filme de registro ou um registro fiel de uma re-encenação?
Diante das ebulições de novos realismos e outras tantas
falsidades, o filme de Robert Flaherty permanece inigualável,
ignorando e reinventando os limites de território e gênero,
sobrevoando a todos no rosto inimitável de seu esquimó.
Nanook é Nanook e é cinema. Nada mais do
que tudo isso.
Felipe
Bragança
CITAÇÕES:
"O
peixe solar de ‘O Homem de Aran’ era verdadeiro e demandou dois dias
e duas noites de esforços para ser pescado, o que dá evidentemente
ao episódio, além de um valor dramático uma tonalidade
documental. Mas daí a considerar-se a obra de Flaherty como essencialmente
documentária, o passo é largo demais. Em última
análise, os filmes de Flaherty exprimem uma visão íntima
e subjetiva do Homem e sua grandeza, uma grandeza no fundo perdida,
e que poderá ser eventualmente reconquistada, mas que Flaherty
por sua conta só situa em formas arcaicas da sociedade humana.
Diferentemente do peixe solar de "O Homem de Aran", o monstro
marinho de "La Dolce Vita" era de matéria plástica.
Mas pode-se perguntar se a obra de Flaherty é mais documentária
do que a de Fellini. Aqui fica uma sugestão para um debate útil."
Paulo Emílio Salles Gomes, na exibição de "O
homem de Aran" na Cinemateca, 1962
"A
idéia do documentário, em suma, exige apenas que as questões
de nosso tempo sejam trazidas para a tela de uma qualquer maneira que
estimule nossa imaginação e torne a observação
destas questões um pouco mais ricas que até então.
De um certo ponto de vista, se confunde com jornalismo; de outro, pode
elevar-se à poesia ou ao drama. E de outro ainda, sua qualidade
estética resulta simplesmente da lucidez da exposição."
Robert
Flaherty (1924)
''Se
há uma historia, é a do homem na sua oposição
a natureza'.'
Robert Flaherty
(1922)
FILMOGRAFIA:
Nanook,
o esquimó (1922)
Story
of a potter (1925)
Moana
(1926)
The
24 Dollars Island (1926)
White
Shadows of the South Seas (co-dir. 1928)
Tabu
(co-dir. F.W. Murnau / 1931)
Industrial
Britain (1931)
O
Homem de Aran (1934)
O
Menino e o Elefante (co-dir. Zoltan Corda / 1936)
The
Land (1942)
Lousiana
Story (1948)
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