Vestida Para Matar, de Brian De Palma
Dressed To Kill, 1980

Vestida Para Matar de Brian De Palma
São numerosos os filmes que, descolados
do período de gestação, encolhem-se em uma revisão.
Seja pelas características estéticas, seja pelas soluções
dramáticas, eles estão vinculados a seu tempo. Vistos fora
do contexto de origem, com nossos olhares e padrões de hoje, tendem
a ser definidos como "datados" e "envelhecidos", ao
menos por resenhistas apegados a chavões. Pois esse suposto limite,
dependendo do caso, pode ter valor cultural. O cinema assimila e insemina
traços que, para além da relevância artística,
caracterizam as épocas na qual foi gerado. Ignorar essa capacidade
é diminuir suas possibilidades. Filmes podem ser vistos apenas
como filmes, mas também integram a história do cinema e
do mundo.
Embora seja evidente a autonomia narrativa
de Vestida para Matar, que cumpre a meta de capturar nossa atenção
e manipular nossas emoções, o 13º longa-metragem de Brian
de Palma reflete seu ano de nascimento e, visto com 23 anos de distância,
parece mais interessante sob esse viés. De inspiração
descaradamente hitchcockiana, no caso derivado de Psicose, tal
suspense também é uma aula sobre o diretor. Tanto o enredo
como as opções visuais revelam particularidades desenvolvidas
antes, depois e melhor pelo cineasta. A relevância do resultado
não está em si mesmo, mas em sua função como
peça chave para melhor entendermos o universo do autor, um segmento
do cinema americano feito nos anos 80 e a própria sociedade americana
daqueles dias.
A primeira parte do filme sintetiza elementos
caros a De Palma. Nos momentos iniciais, temos uma sequência que,
sinteticamente, expressa os temas centrais. Angie Dickinson, em papel
escrito para Liv Ullmann, banha-se no chuveiro. Seu marido barbeia-se
em frente ao espelho. O vapor dá um ar onírico à
imagem. Não é mera impressão. Estamos em um pesadelo
erótico. Angie acaricia-se sob a água. A câmera flagra
partes de seu corpo em detalhes. De repente, ela é atacada. Um
homem a agarra por trás, em citação quase cafajeste
de Psicose. É uma punição a seu desejo. Na
cena seguinte, ela transa, burocraticamente, com o marido. Está
vestida. Em poucos planos, temos o retrato da mulher: uma insatisfeita
com sede de prazer que reprime a busca por satisfação. Despe-se
e toca-se no sonho. Mantém-se de roupa e finge orgasmos na realidade.
Essa situação será
explicitada minutos adiante em uma rápida consulta com o psicanalista
(Michael Caine). A punição pela abertura para as necessidades
da carne e da imaginação também voltam à tela.
Depois de flertar com um descolhecido no museu, em uma longa sequência
sem diálogos, pontuada por música incessante e calcada em
um trecho de Um Corpo Que Cai, a protagonista cede à ebulição
dos hormônios. É bolinada dentro do taxi e vai com ele a
um apartamento. Ao despertar, leva um choque. Descobre que o parceiro,
de quem nem sabia o nome, tem doença venérea (sífilis).
O pecado cometido com o corpo é punido no próprio corpo.
Primeiro com a provável contaminação, depois com
um assassinato, cometido no elevador, em outra homenagem a Psicose.
Impossível não associar, hoje, a situação
a seu momento. Estamos em 1980. E a liberdade sexual levaria uma rasteira,
nos anos seguintes, com a profusão de casos de Aids. Vestida
para Matar manifesta sintonia fina com seu entorno.
Tem-se assim o início da segunda parte
do relato. Tratará da investigação desse crime, cometido
por uma figura de cabelos loiros e testemunhado por uma prostituta (Nancy
Allen, esposa de De Palma, com quem ele trabalhara em Carrie e
Home Movie), que logo se torna a principal suspeita. A moça
contará com a ajuda do filho da vítima, um gênio amador
da tecnologia e das ciências exatas, para descobrir a identidade
da assassina. Estamos em um dos jogos de aparências enganosas de
De Palma. A imagem engana e também revela. Se o criminoso despista
os investigadores com uma simulação visual, será
por meio de uma improvisada câmera de Super 8 que será encontrado
o caminho para a solução do caso.
Não são poucos os momentos
da filmografia do cineasta que tratam dos efeitos da manipulação
da imagem. De Palma não filma imitações da realidade,
mas encenações de uma realidade cinematográfica.
Isso explica o jeitão fake de muitas passagens. O truque é
posto às claras para se assumir a brincadeira de cabra-cega com
o espectador. Essa teia de simulacros, porém, é arquivada
ao final. O diretor tenta nos enganar para depois nos revelar a verdade.
É como se reordenasse o mundo imaginário e onírico
com uma explicação dotada da lógica do mundo real.
Esse procedimento frequente em seus filmes,
que mostram uma busca pela verdade objetiva em uma rede tecida por ruídos
entre signos e significantes, enfraquece o filme conforme ele se aproxima
do final. De Palma não parece à vontade quando, saindo da
superfície das imagens, tenta-lhes dar uma razão psicológica.
A explicação psicanalítica para o criminoso, um ser
em conflito com suas pulsões sexuais, assim como a vítima,
reduz o desfecho ao lugar comum do gênero. Cabe aqui, no entanto,
uma lembrança. Estamos na nascer dos anos 80 e, nesta fase, psicopatas
rimavam com divã. Há quem possa alegar que, neste caso,
sente-se cheiro de homofobia. Será? Não seria o criminoso
fruto da repressão – de si mesmo, da sociedade e da psicanálise
– à sua natureza indomável?
Inspirado em um artigo de Gerald Walker,
usado como base da premissa de Parceiros da Noite, de William Friedkin,
lançado no mesmo ano, De Palma filma a revolta do sexo contra a
civilização. Ele ameaça o casamento e a ciência.
Não é por acaso que, no papel da principal suspeita, está
uma prostituta. Ela simboliza essa ameaça à ordem. Mesmo
estando inserida na produção capitalista, a ponto de perguntar
sobre bolsa de valores, goza de razoável autonomia sobre as atividades
de seu corpo. Nesse sentido, De Palma, em vez de misógino, como
costuma ser chamado, tem olhar libertário. Duas décadas
depois isso fica cada vez mais nítido. E reveste de interesse até
as fragilidades de seu filme.
Cléber Eduardo
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