Touro Indomável, de Martin Scorsese

Raging Bull, EUA, 1980, 129', p&b/cor

Robert De Niro vive o boxeador Jake La Motta
em Touro Indomável de Martin Scorsese
Martin Scorsese e Touro Indomável
Ainda que a maioria de seus filmes apresente
assuntos não necessariamente palatáveis (não só
pela escolha do tema, mas também pelo tipo de abordagem), há
sempre alguém interessado em investir nos projetos de Martin Scorsese
– o que ele atribui ao contato com atores de peso, a exemplo do companheiro
de longa data Robert De Niro. O fato é que lá se vão
mais de quarenta anos de uma carreira incontestavelmente rica, que abarca
desde uma produção modesta como Depois de Horas (1985)
até a atual superprodução Gangues de Nova York,
cujo making of daria uma novela. Basta evocar filmes como Caminhos
Perigosos, Taxi Driver ou Os Bons Companheiros, ou o
próprio Touro Indomável, para que crítica
e público concordem com relação às qualidades
de cineasta de Scorsese, cineasta não por fazer filmes, simplesmente,
mas por viver cinema, respirar cinema, pensar a partir e através
do cinema.
O que prontamente chama a atenção
na filmografia de Scorsese é o seu ecletismo: a violência
da máfia, ou a de um sociopata como Travis Bickle (Taxi Driver),
não obstrui o caminho de reflexões sobre a espiritualidade
e a religiosidade (Kundun, A Última Tentação
de Cristo), tampouco a incursão no humor negro (Depois de
Horas, O Rei da Comédia) e no romance de época
(A Época da Inocência). Ecletismo, contudo, que não
significa a ausência de temas recorrentes. Muito pelo contrário,
há traços inconfundíveis norteando sua obra: personagens
fracassados, ou em situações limite; temas bíblicos
(pecado, culpa, punição, redenção); estetização
da violência; diálogos despojados, naturais, fundamentados
muitas vezes num realismo cru, donos de falas antológicas. E é
congregando alguns desses elementos que Touro Indomável,
premiado pela crítica americana como melhor filme da década
de 80, narra a trajetória decadente de Jake LaMotta, campeão
de peso médio do boxe que após abandonar o esporte se torna
contador de piadas em casas noturnas.
Filmado num período conflitante para
Martin Scorsese (a desaprovação mais ou menos unânime
de New York, New York, de 1977, havia ofuscado a ótima repercussão
de Mean Streets e Taxi Driver), Touro Indomável
(1980) traz a dupla Robert De Niro/Joe Pesci – que mais tarde seria repetida
em Os Bons Companheiros e Cassino – excepcionalmente afiada,
protagonizando cenas violentas e discussões inflamadas. O sentido
de fraternidade, aqui, ultrapassa os códigos de lealdade
e companheirismo que nos outros filmes cabiam ao universo da máfia,
pois em Touro Indomável os personagens de Joe Pesci (Joey
La Motta) e De Niro (Jake La Motta) são irmãos de sangue.
Como o título original já indica, Jake é movido por
ódio, suas melhores lutas nascem da raiva, o que se esclarece na
cena em que praticamente deforma o nariz de um adversário cujo
rosto bonito sua esposa Vickie ousou elogiar.
A decupagem das cenas de luta é irretocável,
e embora disponha de recursos semelhantes (a câmera lenta, a teleobjetiva,
as panorâmicas velozes, a abundância de sangue e inchaços
no rosto) há algo que torna o seu resultado muito mais pungente
e realista que o de Rocky (cujos produtores são os mesmos).
O merecido Oscar de montagem sublinha o trabalho de Thelma Shoonmaker,
que desde então não parou de trabalhar com Scorsese. Os
êxitos formais do filme dificilmente passam desapercebidos: há
um "preenchimento" do espaço-fora-da-tela pelo som em
off diegético (barulhos vindos da vizinhança, ruídos
distantes que corroboram a tensão das personagens, músicas
que acompanham as tomadas internas e ajudam na ambientação
anos 40 e 50); há elipses temporais em que a imagem se antecipa
ao som (continuamos ouvindo o diálogo ou a música anteriores,
no entanto a imagem já avançou e um letreiro nos informa
a passagem de tempo); há a fotografia em preto e branco de Michael
Chapman, que não aposta no alto contraste para obter a atmosfera
desejada, reservando uma forte oposição claro-escuro somente
para momentos cruciais (como na cena na prisão). Mas se em Brian
De Palma, por exemplo, só para citar outro renomado cineasta da
geração de Scorsese que também trabalha cada plano
com extremo apreço técnico e preocupação estética,
as próprias imagens são as personagens (no sentido de que
a embriaguez visual é o grande mote das cenas), num filme como
Touro Indomável há o aprofundamento psicológico
do protagonista. A evolução do filme revela pouco a pouco
um Jake La Motta auto-destrutivo, um lutador de boxe derrotado pelo próprio
orgulho, pelo ciúme doentio que cultiva após o casamento
com a jovem Vickie, pela má alimentação, pela teimosia.
A atuação de De Niro, que teve
de engordar absurdamente para interpretar a segunda fase da vida de Jake
La Motta, está entre as melhores de sua carreira. As seqüências
em que contracena com Joe Pesci são particularmente marcantes,
sendo que o destaque está na longa discussão que mantém
com ele a respeito de Vickie (o ciúme paranóico de Jake
não poupa nem o próprio irmão), culminando no que
talvez seja o ápice da agressividade de La Motta: ele invade a
casa do irmão, espanca-o sem piedade e dá um soco na esposa
que o havia seguido para impedir a confusão. A chegada de Jake
à casa de Joey é precedida pela curiosa cena da ameaça
que este último fazia, sentado à mesa do almoço,
apontando a faca para o filho pequeno que não queria comer direito.
A seqüência resume a natureza eruptiva trabalhada pelo filme:
homens de comportamento explosivo, trajetórias destrutivas (Jake
não destrói somente a si mesmo, inclui quem se situa nas
imediações – fato impresso na amargura progressiva da esposa),
violência que se dá em diversos níveis (gráfico,
psicológico, emocional, espiritual). Violência que o meio
(no caso, o Bronx) facilita, mas que também é intrínseca,
está na composição biológica, pode irromper
do contato entre iguais, entre irmãos, como na escalada de violência
cega que culmina na morte de Abel por seu irmão Caim exposta no
livro Gênese. Epicentro dos acontecimentos trágicos,
esse episódio empresta sua face cruenta tanto ao que se segue como
– por um efeito-refluxo – ao que havia já ocorrido; desta forma,
toda a narração do Gênese parece revestir-se
da violência como que sob o estado de semente maléfica cujo
crescimento é irreversível. A partir daí, cada momento
da história dos homens responderá por esse germe de violência
que ora lhes é intrínseco. Em se tratando de Scorsese, não
há como negligenciar tal contribuição – a formação
católica do diretor não é escondida em nenhum momento,
sendo apenas confirmada pela parábola bíblica que preenche
a tela entre o último plano e os créditos finais. Uma das
características que define Jake é o excesso de orgulho,
e a partir dele sua violência irradia. Segundo o próprio
Scorsese, "o orgulho é o maior dos pecados"; não
espanta, portanto, que La Motta seja tão severamente punido pela
vida, até clamar por redenção numa solitária
cela de cadeia. A ferocidade que La Motta cultiva ao longo do filme desaba
na pusilanimidade oriunda da constatação de sua derrota
moral. Consumada a violência, Jake não sabe bem explicá-la,
é tão pouco dono de sua erupção agressiva
quanto das vontades imperfeitas que o fizeram atingi-la, da mesma forma
que Travis Bickle havia se espantado com a matança que ele próprio
acabara de promover ao final de Taxi Driver. Violência sem
dono. Ou cujo dono são todos os homens: na luta mais sanguinolenta
de Touro Indomável, a platéia fica em polvorosa,
"foi golpe atrás de golpe e o público se incendiou!",
o locutor exclama.
O modo como acaba a carreira de campeão
de Jake La Motta, com a derrota para Sugar Ray, é bastante emblemático.
Jake pede que o antigo adversário o soque com mais e mais força,
só para permanecer de pé e provar-lhe que nunca foi derrubado
por ele. Depois de derrotado sem ter ido ao chão, Jake sai do ringue.
A câmera passeia por ali, dá a volta pelo juiz, mostra um
pouco da platéia perplexa com o que viu, assiste à comemoração
de Sugar Ray, até finalmente encontrar o que deseja: o detalhe
do sangue de Jake La Motta escorrendo num pedaço da corda que cerca
o ringue, primeiríssimo plano que escancara as opções
estéticas do filme ao mesmo tempo em que condensa o destino abraçado
pelo boxeador. "Aqui, vocês assistiram à queda de um
campeão", havia dito o locutor uns segundos antes. Em seguida
ao plano detalhe do sangue gotejante (escoamento do tempo como degradação),
o filme pula para 1956, para apanhar Jake sentado à beira da piscina
de sua casa em Miami, explicando a um repórter o porquê de
ter largado o boxe. Daí em diante o sentido de queda não
pára de evoluir: o divórcio, a prisão, a liberdade
condicional, o retorno a Nova York, o abandono. Jake com a cara inchada,
barriga estufada, voz pastosa, não deixará de proferir a
ressentida frase: "Ainda que eu possa lutar, prefiro recitar",
comprovando que o "pecado mor", o orgulho, não o abandonou
jamais.
Para fazer jus à fama que seu diretor
carrega de ser admirador/colecionador dos grandes clássicos do
cinema, Touro Indomável termina com uma longa citação
da fala de Marlon Brando em Sindicato dos Ladrões, de Elia
Kazan, que, assim como Scorsese, era elogiado por conta de saber aliar
precisão técnica, sensibilidade plástica e crítica
social. Passados vinte e três anos de seu lançamento oficial,
Touro Indomável sem dúvida permanece como um dos
pontos máximos da carreira de Scorsese.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Apresentação: Eduardo Valente
e Ruy Gardnier. Convidado: Cezar Migliorin (diretor e montador de cinema)
Raging Bull, EUA, 1980, 128’, p&b
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Paul Schrader e Mardik Martin, baseado em livro de Jake
LaMotta, Joseph Carter e Peter Savage
Fotografia: Michael Chapman
Montagem: Thelma Schoonmaker
Música: Robbie Robertson
Produção: Robert Chartoff e Irwin Winkler
Com Robert de Niro (Jake LaMotta), Cathy Moriarty (Vickie La Motta), Joe
Pesci (Joey La Motta), Frank Vincent (Salvy), Nicholas Colasanto (Tommy
Como), Theresa Saldana (Lenore La Motta), Mario Gallo (Mario), Frank Adonis
(Patsy) e pontas de John Turturro e do próprio Martin Scorsese
CITAÇÕES:
CINEMA DO CINEMA
"Quando
Godard em O Desprezo coloca um chapéu na cabeça de
Michel Piccoli em plena banheira, como Dean Martin em Deus Sabe Quanto
Amei, aquilo não era simplesmente fetichismo gratuito, Era uma
forma de afirmar que o cinema era liberdade, a alternativa ao conformismo
do tempo, uma autêntica paixão."
O COMEÇO
"Bob (De Niro) queria fazer o filme. Eu não, eu não
entendia nada de boxe. Para mim, é como um jogo de xadrez físico.
É preciso ter a inteligência de um jogador de xadrez para
escolher os golpes e ao mesmo tempo executá-los com o corpo. Alguém
pode ter zero de educação e revelar-se um gênio na
arte do boxe. Quando eu era moleque, olhava as lutas de boxe no cinema,
filmadas sempre no mesmo ângulo, e nunca conseguia distinguir os
boxeadores. Achava aquilo tudo muito chato e, além do mais, não
entendia nada, Tinha uma idéia sobre o que motivava um boxeador
e entendia por que Bob queria a todo custo interpretar o papel de Jake
LaMotta. Ele vinha do mesmo meio, operário, ítalo-americano."
SCORSESE E DE NIRO
"Eu ainda não entendia porque Bob achava aquilo tudo interessante.
Eu sabia que ele queria ganhar peso para o papel. Tínhamos todos
os dois 35 ou 36 anos na época. Ele não parava de repetir:
"Eu só tenho mais uns dois anos pra fazer isso com o meu corpo...
É preciso realmente fazer esse filme". Eu não conseguia
entender a graça do projeto. Depois um dia ele veio me visitar
e disse: "Mas o que está acontecendo? Não tem vontade
de fazer o filme? Só você pode fazê-lo!" Respondi
que sim, e então compreendi. Eu podia fazer o filme, o filme falava
de mim. E eu nem precisava dizer a Bob, ele já sabia."
A MONTADORA FALA:
"Não monto durante a filmagem. Começo por uma espécie
de cabo-a-rabo muito elaborado com diversas opções para
cada cena de forma que Martin possa escolher entre quatro ou cinco tomadas,
especialmente quanto à atuação. Faço isso
para que ele possa ter uma opção. Depois, na sala de montagem,
tomamos juntos as decisões. A montagem começa verdadeiramente
aí, o que é uma exceção e não tem nada
a ver com a maneira com a qual se faz filmes hoje. Escolhemos as tomadas
que nos parecem mais satisfatórias do ponto de vista da atuação,
depois eu monto a cena e mostro pra ele. Ele reage, eu volto à
mesa de montagem, etc. Ele toma muitas decisões sobra a atuação
na montagem. Ele não faz isso na filmagem, preferindo ter uma certa
margem de manobra na montagem . Ele pode controlar melhor as coisas, refletir
melhor."
O ROTEIRO
"Pedi a Paul Schrader para escrever uma nova versão da história
de LaMotta. Ele teve a idéia genial de começar a história
pelo meio, no momento em que Jake está quase ganhando uma luta.
Ele nocauteia um sujeito. Mas ele perde. Por quê? Porque ele não
quer seguir as regras dos mafiosos. Não por honra, mas simplesmente
porque ele não quer partilhar o dinheiro com eles. Depois ele chega
em casa e bate na mulher porque ela não cozinha o bife do jeito
que ele gosta. Ou seja, teremos uma cena de sexo, que a mesa vai voar
e ficar em pedaços, que o irmão vai tentar separar a briga.
Pronto, temos aí um filme. Schrader nos deu tudo isso, a progressão
dramática do filme, o conflito que vai aumentando."
Apresentação:
Eduardo Valente e Ruy Gardnier. Convidado: Cezar Migliorin (montador e
cineasta).
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