Scarface, de Brian De Palma
Scarface, 1983

Al Pacino em Scarface
de Brian De Palma
Brian de Palma tem dois tipos de filmes:
aqueles que são seus até a medula (Sisters, Blow
Out, Femme Fatale) ou aqueles que é chamado para dirigir
(Os Intocáveis, Missão Impossível,
Missão: Marte). Se nos primeiros há uma coesão,
uma unidade entre forma e conteúdo, nos segundos se opera uma disjunção
curiosa e pra lá de interessante: paralelamente à história
que está sendo narrada (a qual, acrescente-se, já vem dada
de antemão ao diretor, pelo adiantado do processo), De Palma cria
uma outra história, essa sim contada unicamente por imagens e por
vezes pouco tendo a ver com a história sendo contada no roteiro.
Scarface pertence sem dúvida ao segundo grupo, a título
exemplar. De projeto que lhe pertenceria intimamente (um remake de um
filme de Howard Hawks), o projeto do produtor Martin Bregman sai das mãos
do autor de Carrie e de um roteirista com quem ele trabalhava, o roteiro
vai para as mãos de Oliver Stone e a direção para
Sidney Lumet. Quando Lumet vê o material de Stone, sobre a imigração
cubana, a indústria da cocaína e a história de ascensão
e queda de um mafioso, desiste na hora. Falta a ele a dimensão
política do drama. A pecha volta então a De Palma, que herda
o roteiro e os atores. Naturalmente, seus interesses iniciais estão
limados, mas trata-se da primeira oportunidade de pegar um "filme
do ano" de uma grande produtora. Qual é sua solução?
O Scarface original cada vez mais longínquo, o diretor se
apóia em O Tesouro de Sierra Madre como âncora de
seu projeto: a história da cupidez de um homem por poder que o
leva a não poder confiar em mais ninguém, e daí à
decadência é só um passo.
Mas a real disjunção está
em outro lugar. Martin Bregman e Oliver Stone julgam fazer um filme sobre
a hybris, sobre a força e arrogância de um homem que
quer subir ao topo. Assim, julgam que seu filme terá toda a fisicalidade
dos filmes de máfia realizados nos anos anteriores, como Caminhos
Perigosos (Scorsese, 1973) e O Poderoso Chefão (Coppola,
1972-74), e que depois o próprio Stone encontrará, sem o
talento destes, em seus próprios filmes. Mas o cinema de Brian
De Palma não tende ao pathos, à exacerbação,
às ações loucas e desenfreadas dos personagens de
folhetim. Seu perfil de ação é o do clínico:
se há algo a ser feito, que seja com um único toque, um
único gesto, e tudo se realiza. Daí nasce um projeto sem
dúvida contraditório (os amantes do filme de ação
detestam a escolha de De Palma, os amantes de cinema deploram o roteiro
espetacularizante de Stone), ambíguo, tão provocativo quanto
reacionário no roteiro (o filme começa com imagens de Fidel
Castro mandando imigrantes junto com bandidos cubanos para os EUA, onde
todos juntos ficarão numa espécie de campo de concentração),
mas sem dúvida um filme muito forte e influente em meados dos anos
80. E isso, é importante considerar, deve-se tanto a Stone quanto
a Al Pacino quanto a Brian De Palma.
Mas como aqui importa somente De Palma (todas
as partes de melodrama vagabundo do filme podendo tranqüilamente
ser colocadas na conta do roteiro de Oliver Stone, a não ser a
lamentável escolha de Giorgio Moroder para fazer a fraquíssima
trilha sonora), resta analisar como ele pega um roteiro a seguir e como
o transforma com as possibilidades que têm. Duas escolhas decisivas:
reassociar ao máximo o projeto ao Scarface original, de
Howard Hawks (ao fim, o filme é dedicado a Hawks e Ben Hecht, roteirista)
e filmar preferencialmente distanciado, preferindo aos primeiros planos
e aos closes os planos abertos e distanciados, fazendo da figura do gângster
mafioso Tony Montana mais um persoangem a problematizar do que a figura
de identificação problemática, criminoso sanguinolento
mas apaixonante pela sede de poder, que Stone construiu no roteiro. Essa
última escolha rende duas conseqüências, todas elas
importantes para o filme. Filmando de longe, toda a cenografia e a arquitetura
do filme transparecem muito mais e compõem por si só uma
metáfora deslumbrante do gigantismo do mundo da cocaína
e, a partir da metade final do filme, do gigantismo particular de Montana.
A segunda é uma separação entre a direção
do filme e as ações violentas cometidas a cada seqüência
pelos gângsteres. Raramente viu-se no cinema americano do gênero
um cineasta que não atendeu aos imperativos patetizantes de filmar
em close o rosto de um homem sendo enforcado, de incorporar a câmera
à loucura da violência, fazendo-a tremer, colocando uma montagem
confusa e picotada. Em compensação, mais distanciado, o
espectador ganha em visualidade o que perderia na moralmente ambígua
fruição daquilo que ele não deveria tolerar.
A esse respeito, a cena exemplar é
a chegada de Montana, Manny e seus amigos na casa em que devem fazer sua
primeira negociação, comprar dois quilos de cocaína
das mãos de negociantes suspeitos. Em um plano, eles saem do carro,
atravessam a rua, sobem dois lances de escada, desaparecendo e reaparecendo,
longe da câmera, que permanece do outro lado da rua, reenquadrando
a cena na grua, ausente da carne e da possível tensão de
Montana com seu primeiro trabalho. Em compensação, quando
a câmera corta, é para uma cena sanguinolenta, que entretanto
assusta muito mais pelo uso contínuo e transbordante do som. A
mudança de ritmo passa a fazer toda a diferença.
Mas se em todo filme de comanda Brian De
Palma realiza um outro filme subterrâneo, qual seria então
o filme sub-reptício que estaria jazendo sob a história
de Scarface? Antes de tudo uma reflexão sobre a classe novo-rica
de Miami, os lugares em que se encontram perto da praia, as casas noturnas,
a suntuosidade das mansões e os ornamentos excessivos com os quais
os empresários bem sucedidos tentam expressar sua potência
(tanto existencial quanto financeira). Brian De Palma expõe tudo
isso da melhor forma que sabe fazer: seu olhar contemplativo e a câmera
distanciada conseguem captar através da arquitetura dos lugares
e as decorações dos aposentos todo um universo de mau gosto
e excesso que a transfiguração da câmera consegue
transformar em beleza (lembramos do cafoníssimo painel do escritório
do primeiro patrão de Tony Montana, um vermelho pôr do sol
com palmeiras ao vento, ou da onírica casinha pobre onde moram
num primeiro instante a mãe e a irmã do protagonista).
Uma das coisas que Scarface nos faz
lembrar é que Brian De Palma é o cineasta contemporâneo
da arquitetura por excelência. Nesse sentido, ele é o único
atual herdeiro de Fritz Lang, outro cineasta que sabia fazer a arquitetura
falar mais que os personagens (não apenas as suntuosas construções
de Metrópolis e A Mulher na Lua, mas também
a construção da intimidade nos pequenos apartamentos de
Enquanto a Cidade Dorme e A Gardênia Azul). Para ter
a prova, basta lembrar da cena em que Tony Montana, estirado tal qual
pachá numa enorme banheira, discute com a esposa Elvira e depois
com o sócio Manny. Essa cena, histriônica, excessiva, gritada,
seria comumente filmada em closes e em pequenos planos americanos para
fazer passagem de um close a outro. De Palma prefere filmar majoritariamente
em plano geral, destacando de forma surpreendente o tamanho da banheira
e do pé direito do aposento (um dos planos-fetiche de De Palma
é a tomada do alto), sinais exteriores da grandiosidade que Tony
Montana supõe ter. De resto, é só confiar que o espectador
não precisa ver os poros de Al Pacino para se emocionar.
Ruy Gardnier
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