Femme Fatale, de Brian De Palma
Femme Fatale, Alemanha/França/EUA,
2002
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Rebecca Romijn-Stamos (de costas) em Femme
Fatale de Brian De Palma
1. Da arte de abrir
um filme
Poucos diretores têm
uma preocupação tão grande com a abertura de seus
filmes quanto Brian De Palma. Poucas vezes ao longo de sua carreira ele
conseguiu encontrar uma abertura tão perfeita quanto a de Femme
Fatale (e cenas iniciais memoráveis existem a rodo no seu cinema).
Trata-se de um plano-seqüência (uma recorrência freqüente
no começo dos filmes do diretor), mas um de execução
bem mais simples que os habituais tour de forces técnicos
do cineasta. Ela basicamente consiste em Rebecca Romijn-Stamos nua, refletida
numa tela de TV que exibe o clímax de Pacto de Sangue, de
Billy Wilder, onde Barbara Stanwick, o protótipo da femme fatale,
mata Fred MacMurray. Segue um rápido e típico dialogo de
filmes B de roubo entre ela e um dos seus associados (Eriq Ebouney).
O impressionante aqui
é como a abertura aponta para tudo que o diretor irá desenvolver
ao longo do filme. Femme Fatale é ao mesmo tempo um exploitation
film – no caso um thriller softcore – e uma série de anotações
sobre cinema em geral (e o filme noir em particular) não tão
distantes de alguns dos filmes de Godard da década de 60 (algo
com que De Palma vem flertando desde suas comédias de início
de carreira, expandida aqui por uma liberdade narrativa que ele não
tinha desde Síndrome de Caim).
A nudez de Rebecca
Romijn-Stamos aparentemente está lá apenas porque o diretor
quis filmá-la nua, da mesma forma que o diálogo que se segue
é banal e sem qualquer função que não seja
a de seguir com a intriga. O comportamento violento de Eric Ebouney parece
estar lá para que todos tenham certeza de que ele é um vilão
ainda maior do que ela.
A sobreposição
da atriz sobre o vídeo com o filme de Wilder diz muito sobre como
De Palma tratará o noir no resto de Femme Fatale. Quase
toda a mídia, ao tratar do filme, parece encará-lo como
uma homenagem a esse cinema (provavelmente porque para os preguiçosos
o diretor é só "o cineasta das referências e homenagens"),
mas Femme Fatale está mais para um anti-noir, às
vezes explicitando alguns elementos que os filmes do gênero tentam
esconder, outras vezes invertendo algumas premissas do mesmo.
Consideremos um único
movimento que De Palma realiza ao abrir o plano da TV que exibe o vídeo
para o quarto. Ali está contida toda a diferença que existe
entre as possibilidades do vídeo e da película, toda uma
longa discussão de anos tratada em alguns segundos de imagens.
Vendo esta passagem dentro da abertura de Femme Fatale, é
difícil não de deixar de pensar em Godard e em Serge Daney,
em toda a idéia de morte do cinema. É difícil assistir
a Pacto de Sangue naquela cópia de vídeo e não
pensar que um certo cinema morreu mesmo. Apesar destes pesares, Femme
Fatale no seu todo é uma prova bastante viva de que outro cinema
segue, e bastante vivo.
Nesta cena (bem como
em toda a duração de Femme Fatale) se apresenta bem
a dualidade que marca toda a obra do cineasta: tão próximo
do exploit quanto do ensaio. A maior parte dos fãs tende
a preterir um dos dois lados em favor do outro. Mas eles estão
ambos lá juntos e, no fundo, para que se possa realmente apreciar
a grandeza do filme, é preciso que se aceite ambos.
2. Construindo
o Cinema
Os filmes de Brian
De Palma existem num universo particular, bastante afastado de qualquer
tipo de abordagem realista. Seus personagens transitam num mundo que só
pode existir na tela de cinema. A Chicago de Os Intocáveis
não tem nenhuma relação com a Chicago da década
de 20, por exemplo, mas de modo algum isso significa dizer que os trabalhos
de De Palma não podem refletir o momento em que foram feitos (Um
Tiro na Noite diz mais sobre as ansiedades e preocupações
dos americanos à época que a maior parte dos filmes sérios
feitos por lá no período).
Os detratores do diretor
sempre pegam em seu pé por conta dos furos na lógica e da
falta de psicologia nos personagens; em suma, de que seus filmes não
seguem as regras do sentido e da lógica estabelecidas no "bom cinema".
Não é surpresa, então, que um dos principais argumentos
usados para criticar Femme Fatale seja de que ele é muito
absurdo e fantasioso para ser um filme noir. Verdade que o noir
sempre se propôs a realista, mas poucas vezes o era. Pelo contrário,
com suas mulheres perigosas, sua visão da sexualidade masculina
e seus vilões caricaturalmente durões, o gênero sempre
esteve bem próximo da fantasia de um jovem adolescente. Mesmo os
finais pessimistas sempre foram muito mais uma forma de contentar a censura
moralista para depois se transformarem em mera convenção
de gênero. É bem possível que seja por conta disso
mesmo que ele seja tão popular hoje em alguns meios. O máximo
que se pode dizer de Femme Fatale é que ele deixa claro
que é tão fantasioso quanto qualquer outro filme de gênero.
Visto dessa forma, é claro que o bar de motoqueiros para onde Laure
leva Nicolas a certa altura é um bar de motoqueiros de cinema,
e não há nada de errado com isto.
Femme Fatale
é justamente mais uma amostra da fé que Brian De Palma tem
no cinema, e mais especificamente na imagem cinematográfica. É
por isso que sempre que pode ele abre mão do diálogo, que
em todos os filmes existe uma quantidade enorme de informação
visual com novos detalhes revelados a cada revisão (e Femme
Fatale, como todos os filmes do diretor, pede diversos retornos).
Não à toa, o filme todo parece seguir a lógica de
um grande sonho.
Se as comparações
com Cidade dos Sonhos parecem um tanto levianas (a despeito de
algumas similaridades de trama, as propostas são bem diferentes),
a forma como muitos, no desespero, para tirar um sentido mais claro do
filme, vêm tentando classificar os entrechos que incluiriam o sonho
e os "reais" parecem igualmente errônea com ambos os filmes. Afinal,
se o início e o fim do filme aconteceram de fato e o miolo foi
sonho, porque diabo as duas cenas mais fantasiosas do filme, o roubo (um
delírio tão grande que só assaltantes de cinema poderiam
colocar em prática) e o clímax ocorrem justamente no início
e no fim? Mal vale a pena citar detalhes visuais bem depalmianos como
a peruca preta de Laure que não cai da sua cabeça, o uso
simbólico da água que começa antes da cena da banheira
ou a capa da revista no clímax.
Como sempre em De
Palma, o que interessa é menos a mentira 24-quadros-por-segundo
do que a verdade na qual ele consegue chegar através dessa mentira.
Verdade esta que nunca está no plano, mas na articulação
entre dois deles, mesmo que ela venha a se revelar uma grande dúvida.
É para esta verdade que se posiciona todo o seu cinema.
3. Vendo o Cinema
Como todos sabem,
Brian De Palma tem grande prazer em enganar os espectadores de seus filmes.
Seus personagens são sempre apresentados a imagens que não
são o que aparentam e precisam descobrir o que está por
trás delas. O mesmo valendo para aqueles que estão acompanhando
os filmes da sala escura. Há um entusiasmo verdadeiramente adolescente
na forma como o cineasta gosta de nos pregar peças. Há uma
cena em Os Intocáveis onde Kevin Costner e Charles Martin
Smith são filmados por uma câmera próxima de uma janela
conversando, tudo faz crer que eles estão num trem até que
o diretor abre o plano revelando um avião. Momentos assim acontecem
em todos os seus filmes, e não há como deixar de imaginar
De Palma se divertindo muito os concebendo.
Nesta atitude não
está contida nenhuma forma de desprezo pelo espectador, ao contrário
do que alguns de seus críticos pregam. Muito pelo contrario, muito
do interesse do diretor ao construir estas pequenas peças é
exatamente despertar o espectador. Uma das muitas razões pelas
quais o cinema de Brian De Palma é essencial, hoje, é que
ele exige um tipo de participação ativa, um tipo de diálogo
entre o espectador e o filme que é cada vez mais raro. Pode-se
dizer que parte do objetivo final de qualquer filme de De Palma, e nisto
Femme Fatale é um dos exemplos mais eficientes, é
engajar o espectador numa discussão sobre a imagem, discussão
que se dá naturalmente a cada cena apenas pela forma com que ele
as encena.
É por esta
mesma razão que ele freqüentemente chama atenção
para clichês para depois desmontá-los ao longo dos filmes.
Não é à toa que se na maior parte do cinema americano
os personagens nos são apresentados como pessoas e depois têm
tudo que elas têm de humano sacrificado em prol das necessidades
da trama, nos filmes de De Palma eles sempre são apresentados como
clichês e depois sendo lentamente humanizados. Laure é má,
sem coração, etc., mas está muito longe do clichê
da femme fatale, antes de tudo ela é a nossa heroína,
nosso primeiro ponto de identificação. No cinema noir
esta parte sempre sobra para o trouxa que acaba traído (no filme,
Nicolas/Banderas). Em Femme Fatale nos identificamos – e sentimos
prazer – com Laure e todos os seus esquemas, mesmo que, no processo, questionemos
por quê. Não que Nicolas seja tratado de forma cruel ou algo
do tipo, De Palma simpatiza demais com a posição dele como
alguém dividido entre uma função vulgar (paparazzo)
e a aspiração de construir uma arte pessoal. Se o cinema
noir como um todo sempre tendera para uma postura misógina,
nada pode ser menos misógino do que Femme Fatale. Brian
De Palma sempre sofreu com esta acusação infundada, que
há muitas mulheres vulgares e/ou prostitutas em seus filmes é
inegável, como também o é de que ele ama suas vagabundas.
Nunca se morre fácil num filme do diretor, são poucos os
cineastas que expressam tão bem o efeito que ela causa nas pessoas
à volta dos que morrem, as mortes mais doloridas, aquelas que deixam
as marcas mais fortes, são sempre as das mulheres (fiquemos sobre
tudo com o epílogo de Um Tiro na Noite). Em Femme Fatale
mulheres salvam a vida de mulheres diversas vezes, mas nas ocasiões
em que alguém morre sentimos o efeito dela (pensemos em Lily, pensemos
nas reações de Nicolas na cena da ponte).
É justamente
pensando em seus personagens e no seu espectador que Brian De Palma constrói
seu brilhante final. Brilhante não pela reviravolta nem tão
surpreendente assim (que em si não é mais do que uma crítica
à avalanche das reviravoltas "surpreendentes" de filmes recentes),
mas pelo que ele inclui. Brian De Palma parece parar tudo e perguntar
ao espectador "então vocês querem um final extremamente elaborado
e violento?". Para depois nos responder "pois bem, eu farei um, mas será
um final extremamente elaborado e violento completamente diferente do
que vocês querem". Frustrar expectativas é um velho hábito
do cineasta (geralmente são justamente seus personagens mais simpáticos
que ganham os finais mais violentos para ficar numa das formas em que
ele costuma aplicar a idéia), que nunca é usado só
para passar a perna no público (apesar do diretor se deleitar com
cada espectador que for pego de surpresa).
Para De Palma, frustrar-nos
é novamente uma forma de nos engajar mais, nos revelar como as
convenções cinematográficas são meros reconfortantes,
como qualquer um pode acabar com um péssimo final, etc. Aqui, parece
ser mais uma necessidade de questionar o espectador sobre o porquê
dele desejar/esperar um outro final onde todas as personagens com que
se identifica acabem mortas. Daonde vem este impulso, ele parece nos perguntar.
Ao espectador confrontado com sua frustração não
resta muita alternativa além de reagir contra o filme ou tentar
investigar o porquê disso.
A lógica do
final do filme, para roubar uma idéia de Jean-Marc Lallane nos
Cahiers du Cinema, parece ser conjugar Smoking e No Smoking
de Alain Resnais num filme só. A idéia de colocar personagens
optando por duas atitudes/imagens é uma que recorre com freqüência
nos filmes do diretor. A ruptura na narrativa está lá porque
Brian De Palma, sempre o Dr. Mabuse de seus próprios filmes, simplesmente
quer dar a seus personagens uma segunda chance de decidir por qual destas
imagens eles querem optar. Sempre que se menciona o final, se fala de
Laure, mas se esquece que na segunda vez Nicolas também recusa
o serviço.
4. O Mosaico
Não sei se
Brian De Palma já encontrou a imagem perfeita que ele persegue
desde seus primeiros filmes, mas em Femme Fatale ele encontrou
a imagem que melhor sintetiza a sua obra: o mosaico no qual Nicolas está
trabalhando ao longo dos sete anos em que se passa a história.
O filme se encerra justamente sobre este mosaico como se o cineasta quisesse
deixar ali na imagem final a sua assinatura.
Ali está contido
todo um jogo de informações, todo um enigma que pede para
ser decifrado. Ali está todo um universo de pontos de vista diferentes
da mesma imagem se completando e reconstruindo a original numa busca por
algo maior. Uma obra aberta como é toda a de De Palma, sempre à
espera de mais uma adição seja de seu autor, seja do espectador.
A vida deconstruída e depois reconstruída para que o artista
possa melhor falar dela. Uma imagem final que sintetiza o filme tão
bem quanto a inicial serve como uma apresentação das propostas
que ele trabalhará.
Imagem sintética
da obra, mas também do filme, porque de certa forma Femme Fatale
é um compêndio de quase toda a proposta de cinema que Brian
De Palma vem desenvolvendo desde a década de 60, especialmente
no que diz respeito à imagem e ao próprio meio. Não
surpreende, visto assim, que o filme inclua referências a toda sua
obra anterior, às vezes de forma mais direta (o plano final de
Síndrome de Caim), às vezes menos (um dos vilões
chama-se Racine como o endereço do Jimmy Malone de Os Intocáveis),
até mesmo o pequeno papel de Gregg Henry parece estar lá
para aludir a suas outras parcerias com o cineasta em Dublê de
Corpo e, novamente, Síndrome de Caim. Por coincidência,
dois outros deliciosos filmes vagabundos em que o diretor tenta sintetizar
suas idéias. Destes, Síndrome de Caim, com suas experimentações
com múltiplos pontos de vista, parece mais próximo do que
o diretor tenta aqui, mas se Síndrome de Caim já
era uma radicalização de Dublê de Corpo, o
processo se repete de novo, e não temos como deixar de ver Femme
Fatale como uma radicalização de Síndrome
de Caim. Vendo esta progressão não dá para deixar
de nos indagarmos para onde o cinema de De Palma irá a partir daqui,
e enquanto isto, nos resta continuar viajando em momentos literalmente
hipnotizantes como o plano da turbina que surge para a nossa surpresa
a certa altura do filme.
Filipe Furtado
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