Brian De Palma: mal visto, mal dito
Sobre Brian De Palma,
duas proposições:
Nicolas Cage em Olhos de Serpente
de Brian De Palma
1. Seu cinema
precisa ser visto
Vale lembrar o leitor
que o cinema é sobretudo uma arte de imagens (O Pagamento Final),
da união de/espaço entre as imagens (Femme Fatale)
e do cruzamento de sons com imagens (Um Tiro na Noite). Existem
os filmes, e existem alguns filmes poucos, é verdade
que tratam direta ou indiretamente do fazer cinematográfico, momentos
em que o cinema é tornado tema e matéria por e para si próprio.
Apenas precisamos observar os exemplos de Godard, do Hitchcock de Janela
Indiscreta e Um Corpo que Cai, de Abbas Kiarostami, de Tsui
Hark, de Dario Argento... e de Brian De Palma. Mas se em Godard temos
a polivalência, em Hitchcock o catolicismo, em Argento o excesso
operístico, em Hark a arte schizo e em Kiarostami a contenção,
qual característica pode-se atribuir a De Palma? Não, com
certeza não será o maneirismo que tantos lhe acusam de exibir.
A técnica brilhante sim, qual o problema? revela
antes de qualquer outra coisa um formalista interessado na análise,
na revisão e na reflexão do correr das imagens, do qual
seu cinema e todo o cinema que lhe interessa é altamente dependente.
Por enquanto, porém, faz-se melhor permanecer naquilo que tange
sua notável habilidade como encenador; em outras palavras, o estilo
De Palma que incomoda tantos.
Na técnica,
o olhar
Já de início
nota-se o domínio assustador da gramática cinematográfica
no cinema de De Palma: a beleza nas composições, que dão
conta de um close-up da mesma maneira que o mais amplo dos planos;
a leveza nos movimentos da steadycam; uma certeza que impinge cada
movimento, cada quadro, cada plano; e, finalmente, aqueles longos movimentos
realizados pela câmera, seja através do uso do travelling
ou da grua, onde De Palma passa lentamente por um sem-número de
pessoas, de objetos e de ambiências diversas. A capacidade do diretor
de tirar do vasto repertório de imagens com o qual costuma trabalhar
apenas aquilo que lhe é essencial faz primeiros trabalhos como
O Que Andam Fazendo com Nossas Mulheres? e Hi, Mom!
momentos onde sua técnica se apresenta mais rude e, talvez, mais
primitiva mostrarem propósitos que o autor retoma em filmes
de maior arrojo como Um Tiro na Noite e Dublê de Corpo
(a saber, as relações entre o olhar e o objeto olhado, os
jogos de aparências que tomam forma via encenações
intrincadíssimas e improváveis). Os aparatos de registro
de imagem câmeras de vídeo, máquinas fotográficas,
óculos ou até mesmo simples olhares ocultos estão
sempre envolvidos em algum tipo de joguete de simulacro e manipulação
(o artifício da encenação tão caro a De Palma).
Os Mil Olhos do
Sr. De Palma
Existe algo que De
Palma quer fazer, e ele o faz com a aplicação de um pupilo
muito impressionado pelo que viu de seus mentores (não precisamos
de joguinhos aqui: Hitchcock em especial, mas também Orson Welles,
Jean-Luc Godard e Georges Méliès). Os empregos de modelos
e princípios que lhe interessam sempre parecem se adequar bastante
bem ao tipo de cinema narrativo que vem realizando, mas ainda assim permanece
qualquer coisa que incomoda mesmo alguns dos apreciadores de seu cinema.
O que? A busca do cineasta por um incessante questionamento de tudo aquilo
que é mostrado ao espectador. Para tanto, uma "imagem de base"
é fornecida, seja na forma de um plano, uma seqüência,
uma cena ou um personagem. Esta imagem põe diante do espectador
um máximo de signos e dispositivos de narração. Algumas
informações são ocultadas, outras são evidenciadas
ao ponto do exagero. O filme nada mais é do que uma análise
absurdamente detalhada desta "imagem de base", justamente a imagem que
na maioria das vezes inicia os filmes do diretor. Em O Pagamento Final,
Carlito Brigante recebe um tiro, cai nos braços de sua amada Gail
e é levado por uma maca. Começa a nos falar como num relato,
retomando todo o percurso que traçou antes deste momento. É
a partir desta narração, também a narração
de De Palma, que teremos a "imagem de base" desenredada: todos os signos
terão ao final que nada mais é que o replay
de toda a ação que se dá nos primeiros minutos do
filme significações que não lhes eram próprias
em um primeiro momento. Podemos citar Pecados de Guerra como exemplo
idêntico de estrutura, além de outros filmes que não
utilizam do formato flashback mas que também mostram projetos
equivalentes de narrações que se constróem a partir
de uma imagem que encerra o tema e/ou o assunto do filme, como são
os casos de Um Tiro na Noite, Olhos de Serpente, Carrie
A Estranha, Scarface e Síndrome de Caim.
Uma história
de cinema
Pois é, Brian
De Palma gosta de cinema. Algo estranho para quem realiza filmes, a se
julgar por todas as acusações que vem recebendo desde seus
primeiros trabalhos. O fato de que o que vemos nos seus filmes é
muito menos um agrupamento de citações aleatórias
que a estruturação de uma visão muito específica
e pessoal sobre um certo tipo de cinema parece incomodar muito pouco seus
preguiçosos detratores. Bem verdade, existe certo exibicionismo
nos retornos a Hitchcock, a Godard, a Welles. Mas a apropriação
de modelos já estabelecidos pelos mestres da imagem e som atende
uma necessidade interna na obra de De Palma: a de se olhar algo já
feito para que um processo de criação outro (o de
De Palma, o dos seus protagonistas) se inicie. Seus filmes nada mais são
do que espelhos deste processo de produção, e seu universo,
repleto de voyeurs e investigadores, só pode se tornar concreto
se o próprio De Palma toma uma "imagem de base" (de outros filmes
que não os seus, ou mesmo dos seus filmes) para desencadear uma
narrativa que lhe interesse. Portanto...
Vestida Para Matar de Brian De Palma
2. Seu cinema precisa
ser revisto
A primeira seqüência
de Um Tiro na Noite mostra-se emblemática no que permite
compreender todo o processo depalmiano: assistimos a um filme slasher
típico da década de 80. O assassino observa as ações
de diversas mulheres num dormitório para estudantes antes de entrar
em um banheiro. Segurando uma faca, dirige-se ao único chuveiro
onde alguém toma banho (obviamente uma bela loira). O assassino
recolhe a cortina de plástico que oculta o chuveiro, ergue a faca
e aproxima-se da sua vítima lentamente quando esta percebe sua
presença e lança um grito... absoluta e completamente desafinado.
Corte, recorte: uma sala de cinema, onde o diretor e o sonoplasta do filme
assistem à fita. O diretor grita um "Kill it!", apavorado
com a péssima qualidade do grito, e discutirá com o sonoplasta
sobre a péssima qualidade dos efeitos sonoros e sobre uma possibilidade
de dublar o tal grito. É da busca do sonoplasta por um outro grito
um grito falso, portanto que De Palma tira um inventário
das suas próprias obsessões: filmes amadores, problematização
da imagem e som nos mesmos moldes do Antonioni de Blowup e do Dario
Argento de Prelúdio Para Matar e Suspiria, a fascinação
por todo o aparato técnico próprio do cinema, o estudo do
processo de captação de imagens e a junção
destas com seus respectivos sons, e o tema da morte como destino único,
invariável e inevitável. Sim, um cinema de retorno à
imagem essencial, à imagem fundamento. Mas afinal, tudo isso para
quê? Uma resposta do público, aquela que mais interessa a
De Palma: o abandono de uma condição espectatorial molenga
a que muitos já estão acostumados e a conseqüente conquista
de uma relação com a imagem baseada no estudo e no questionamento.
Em outras palavras, a passagem do espectador de mero voyeur a investigador.
Uma história
de imagens/A ilusão 24 quadros por segundo
No interesse de De
Palma por uma outra trama que se constituirá paralela à
trama principal do filme a farsa na qual seus protagonistas são
invariavelmente engodados já se percebe sua curiosidade
pela duplicidade das formas. O seu universo é repleto de tipos
já perpetuados pelo cinema: os gangsters (Carlito Brigante,
Tony Montana), os tiras bons (Eliot Ness), os tiras maus (detetive Marino),
os tiras bons e maus (comandante Kevin Dunne, Rick Santoro), os castrados
(o soldado Eriksson, Jack Terry, Ethan Hunt), os transexuais (doutor Robert
Elliott, Carter na sua encarnação Margo), as femme fatales
(Laure Ash, Julia Costello, Kate Miller), os traídos (Carlito Brigante,
Carter, Ethan Hunt, Rick Santoro), os traidores (Dave Kleinfeld, Cain,
Jim Phelps, comandante Kevin Dunne). Mas para que retomar essas figuras
se não por uma impostura, uma incapacidade de criar personagens
com um mínimo de verossimilhança? O que De Palma faz,
e poucos lhe dão o devido valor por isso, é jogar uma outra
luz, deixar brotar uma ambigüidade que poucas vezes foi ofertada
a estes personagens. Imagens que nos fazem pensar em outras imagens, personagens
que nos fazem pensar em imagens, duplos que não correspondem às
suas origens, tempos dilatados que não correspondem aos seus espaços,
espaços exagerados que insistem em apresentar simetrias e informações
visuais de toda a espécie: aqui temos um raciocínio de imagens,
através das imagens, que tem a imagem como ponto de partida
e outra imagem como finalidade.
Brain De Palma
O cérebro que
engendra e que opera todo o excesso de e das imagens, através das
imagens. A multiplicação dos pontos de vista, daquilo que
vários olhares registram de uma cena, das possibilidades oferecidas
por todos os tipos de aparatos de registro de imagem (vídeo ou
película, binóculos ou telescópios, e até
mesmo nossos olhos, vejam só); apenas de uma loucura analítica,
de um estágio onde não mais se sabe o que é real
ou ilusório, revelado ou ocultado, é que se pode tirar alguma
conclusão do objeto que se toma como referência. Todos os
pontos de vista são incompletos e todos revelam alguma informação
vital. A composição criada pelo fotógrafo Nicolas
Bardo em Femme Fatale, no entanto, esclarece tudo isso que pode
parecer confuso e/ou excessivo ao nos debatermos em um primeiro momento
com a obra de Brian De Palma: o que importa não são as imagens
mas os joguetes de pontos de vista, a maneira que se agrupa e organiza
todas as informações que compõe uma imagem, a operação
lógica que leva a tudo isso. Finalmente, podemos dizer que
é aquilo que existe entre as imagens aquilo que comprova
que um filme é uma operação que nos leva do fragmento
à totalidade, da "imagem de base" a uma "imagem síntese"
o material de todo o cinema que realiza Brian De Palma.
Bruno Andrade
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