Um Tiro na Noite, de Brian De Palma

Blow Out, 1981


John Travolta em Um Tiro na Noite de Brian De Palma

A poesia da noite. Ao mesmo tempo a poesia do etéreo e da brevidade, do que é duradouro e do instante que já se passou. Nas primeiras cenas de Um Tiro na Noite, podíamos jurar estar diante de um Nicholas Ray: a noite toma conta, tanto na fita de terror assistida pelo sonoplasta Jack Terry quanto na seqüência em que Jack sai para gravar alguns sons para o filme no qual está trabalhando. Mas o que existe de tão fascinante na noite? Por que os grandes cineastas a apreciam tanto? Bom, existem as luzes quando de noite. Dispersas, espalhadas por diversos lugares, as luzes oferecem um tipo de encanto especialmente cinematográfico. Nas mãos de um bom realizador (o que Brian De Palma mais do que certamente é), as luzes podem servir como ferramenta para a produção de cenas de grande impacto visual, fonte que possibilita uma ininterrupta criação com cores, formas e linhas, em suma com toda a matéria plástica utilizada pelos cineastas (quer queiram quer não) para criarem suas imagens. Mas nas mãos de Brian De Palma especificamente essas luzes parecem ganhar ainda todo um outro caráter: sempre foi a luz incidida numa tela o principal interesse do cineasta, seja nas dimensões de um CinemaScope ou do mais granulado 16mm. Indo do grande espetáculo hollywoodiano para o pequeno filme subversivo e também realizando o movimento inverso, é importante ressaltar que Um Tiro na Noite tem especial acolhimento entre os fãs mais ardorosos do diretor: o filme-testamento para vários, aquele onde o cineasta consegue reunir todos os temas e todas as propostas formais de seu cinema.

Ainda no início, De Palma estabelece a lógica interna do filme: duas bandas, uma para as imagens e outra para os sons (a tradução brasileira é com certeza bastante eficiente ao revelar muito do que o filme trata). Vemos Jack no seu escritório, trabalhando na organização e ordenação de uma série de fitas onde estão gravados os efeitos sonoros com os quais trabalha. Uma pausa para descansar, sentar-se à poltrona, ligar a televisão. No noticiário, os últimos resultados das pesquisas da eleição para presidente: o governador McRyan se encontra muito à frente do outro candidato. Jack se levanta e volta ao trabalho, mas deixa a televisão ligada. Emprego do split-screen, o recurso que nenhum outro cineasta utiliza tão bem quanto De Palma. 50% da tela nos mostrará a cobertura das eleições para presidência na televisão; outros 50% mostrarão Jack no seu trabalho, e no que esse trabalho consiste. Enquanto numa banda temos um princípio de narrativa na qual De Palma nos mostra com as imagens frágeis de um telejornal diversas informações que farão parte da intriga do filme, na outra banda temos um ensaio, a preparação de todos os sons que constituirão em um momento ou outro do filme (que está por vir) informações vitais para o sonoplasta (um tiro, o vento, uma janela se quebrando). A imagem e o som nos seus estágios embrionários, ainda esperando seu pai/criador/subversor lhes permitir o desenvolvimento em termos narrativos: o milagre do cinema, do nascimento do cinema, filmado em todo o seu esplendor por De Palma.

Retorno à noite. Numa ponte, Jack grava aqueles sons que deseja: o vento batendo nas folhas, um sapo coaxando num pântano. De repente o diálogo entre um casal. Instantes depois eles percebem a presença de Jack, no que ela pergunta "What is he, a peeping tom or something?". Os amantes se vão, mas Jack continua no batente. Capta com o aparelho um barulho estranho, que se repete por algumas vezes em intervalos precisos antes de se encerrar. O canto de uma coruja chega aos ouvidos de Jack, que com a habilidade de um repórter consegue rapidamente localizar a tal corujinha. O som de um carro em velocidade invade o gravador de Jack. O carro se aproxima, acelerado, e no que está para atravessar o caminho de Jack.... uma explosão. Jack lança então seu olhar para a pista onde o carro, completamente desgovernado, derrapa fatalmente. O veículo abandona a pista para imediatamente cair num rio. Jack se dá conta da gravidade da situação, e sai correndo em direção ao outro lado da ponte para se jogar no rio de maneira a operar um resgate. Mergulha na água, pois o carro já está afundando, e nele apenas uma moça (seu companheiro já está morto). Ele consegue tirá-la do carro, e após salvá-la leva-a para um hospital. No hospital, Jack descobrirá que o companheiro da moça era ninguém menos que o próprio governador McRyan.

Do que se falou até agora? De tudo, e de nada. Pois é esse sim o princípio de toda a trama de Um Tiro na Noite, a seqüência onde tudo que irá compor a trama do filme se insinua. Mas nada mais se fez aqui do que botar em palavras o conteúdo desta seqüência. Sobre o que não se falou até agora - e sobre o que é impossível falar - é de todo o brilho, de toda a genialidade que Brian De Palma (e seus colaboradores Pino Donaggio, Vilmos Zsigmond, Paul Hirsch e Paul Sylbert) consegue incluir a cada quadro. Existe nestes primeiros 14 minutos de ação o resumo prático do que seria o cinema para Brian De Palma: a imagem como um espelho e o filme como uma operação puramente reflexiva, como bem disse Jean-Marc Lalanne a propósito de Femme Fatale no Cahiers du Cinéma. O que existe principalmente neste início de filme (e permanecerá durante o resto), porém, é o domínio formal do De Palma encenador, a maneira que ele faz toda a técnica do filme operar para um único fim: seu próprio meio, o do cinema. É portanto apenas óbvio que todo o resto de Um Tiro na Noite seja principalmente a análise e o estudo preciso, exagerado e relativista de toda a seqüência do acidente de carro, de todos os sons capturados e de todas as coisas que Jack consegue lembrar de ter visto na noite do acidente.

Mas é melhor retomarmos aquela lógica interna do filme, proposta no início do segundo parágrafo: som e imagem. Jack e Sally. Ele, um sonoplasta. Ela, uma maquiadora. Mas quem é ela? Sally é a garota salva por Jack no carro, debaixo da água. Mas o que ela fazia com o governador McRyan se ele tinha uma família? De mero sonoplasta, Jack passa à investigação. E é assim que descobre a razão de Sally estar com o governador naquela noite: alguém a havia contratado para seduzir o governador numa festa de maneira que ele fosse pego com ela, posteriormente, através de fotografias. Um entrecho se forma: quem foi essa pessoa que a contratou? E porque na gravação de Jack um som estranho, uma "explosão", antecede o estouro do pneu que fez o carro do governador se desgovernar e cair no rio? A investigação como necessidade, sempre, a todo o custo. A investigação como mote para a realização e percepção cinematográfica, e sobretudo a investigação como a principal maneira de se relacionar com o fluxo insano de sons (e imagens) com os quais Jack (e Brian De Palma) terá de trabalhar para chegar a uma possível verdade sobre o que realmente aconteceu na noite do acidente.

O som, através de Jack, não é mais um problema: ele existe, foi gravado, e nele o registro claro de que o pneu do carro de McRyan levou um tiro. O problema está no fato de ser apenas um som, um som que não mostra de qualquer maneira qualquer coisa. E é em Sally (a imagem, o artifício - vide o fato de ela trabalhar como vendedora de maquiagem) que Jack pode encontrar a solução deste problema: pois na mesma noite em que ela estava debaixo da água se afogando num carro trancado, o fotógrafo Manny Karp, parceiro nos golpes, tirava fotos do ocorrido debaixo da ponte na qual Jack gravava seus sons. Som e imagem, apenas do cruzamento destes dois existe a chance de alguma prova, de alguma evidência. Evidência de quê? De cinema, especialmente, e da crença de De Palma nesta maravilha em sua mais absurda (porque fantástica, porque maravilhosa) manifestação. É uma crença de cineasta - só pode ser - a que faz De Palma deixar nas mãos de Vilmos Zsigmond o pesadelo logístico que é iluminar a Wissahickon Creek numa noite de inverno como também é essa mesma crença que faz o diretor iniciar o filme com um devaneio que não apenas é a subversão dos inícios de Carrie - A Estranha e Vestida Para Matar como é também a mais vulgar (e por isso apaixonada) homenagem ao adorado Psicose. Mas essa crença se manifesta, mais do que em qualquer outra coisa de Um Tiro na Noite, especialmente na necessidade de De Palma (e Jack) em perseguir uma imagem obsessivamente - o tiro que acerta o pneu do carro -, mesmo que para tanto seja necessário abdicar de toda e qualquer verossimilhança. O cinema volta a ser uma arte das imagens com Brian De Palma.

E quanto a Jack e Sally, eles não funcionam em outro registro que não o de signos? Certamente que sim. Nas interpretações de John Travolta e Nancy Allen, ambos os personagens exibem um carinho que surge lentamente um pelo outro, e mesmo com ambos funcionando principalmente como signos (suas funções são muitíssimo importantes neste aspecto para que De Palma abdique de suas concepções), De Palma consegue dar a eles a beleza do que é efêmero (o amor que ambos sentirão rapidamente e que será perdido). Descobrimos que Jack é uma espécie de renegado (inclusive por conta do que está escrito no seu jipe), que passou a trabalhar nos filmes B após um trabalho fracassado para a polícia, e que Sally, apesar dos pequenos golpes e de trabalhar como vendedora de maquiagem, tem suas ambições apesar da aparente fragilidade. Como o Carlito e a Gail de O Pagamento Final, Jack é um homem escapando do seu passado e Sally é alguém que anseia por uma vida melhor, onde possa fazer aquilo que gosta (ao contrário do presente, onde faz o que não gosta). Essa capacidade em De Palma de estender sua mão aos personagens, mesmo que em um filme de conceito tão pouco aberto, e de tentar entendê-los, mesmo que de maneira simples, é dos mais belos atributos de Um Tiro na Noite.

Mas se for para falar em imagens e Brian De Palma, vale lembrar aquela que lhe é fundamento, a essência não apenas de seu cinema mas a imagem que De Palma toma por essência de todo o cinema: 'Scottie' Ferguson abraçando Judy Barton transformada em Madeleine na obra-prima Um Corpo Que Cai. Se o Michael de Trágica Obsessão e o Peter de Vestida Para Matar já mostravam uma afinidade com a necrofilia do personagem interpretado por James Stewart em Vertigo, ao final de Um Tiro na Noite - e apenas no final - Jack revelará a verdade do herói depalmiano, o destino do qual nenhum dos personagens de De Palma jamais conseguem escapar. Sally, no momento em que vai entregar a fita com as imagens e os sons do acidente com McRyan a um jornalista, é posta em perigo justamente pelo responsável do tiro no pneu (a quem não conhecia, pois ela e Manny foram contratados por telefone), que se apresenta a Sally como o tal jornalista. Encaminhada pelo assassino Burke (que diz estar sendo perseguido, mas apenas no seu papel de jornalista) através de uma estação de metrô, Sally carrega um "grampo" com um microfone do qual Jack pode escutar o que fala mas que não a permite falar com Jack, que está escondido do lado de fora da estação. Jack percebe algo de errado. Não sabendo para que direção Sally e Burke foram, Jack traça com seu olhar todos os lugares para os quais podem ter ido, mas como não tem qualquer certeza precisará se manter no centro da estação. De repente, do "grampo" carregado por Sally, o barulho de uma catraca. A placa "Subways" está à esquerda de Jack, e é portanto para a esquerda que deve correr. Antonioni, Hitchcock, Argento: ecos de todos aqui, especialmente na construção do suspense (Hitchcock e Argento) através da utilização complexa de espaços amplos e arquiteturas diversas (Antonioni). Mas o que então resta de De Palma, afinal? O olhar atento que analisa o tempo todo as encenações (o assassino que "interpreta" o jornalista e engendra Sally numa trama que pode levá-la à morte) e a atenção dada aos empregos dos aparelhos de registro de som e imagem (o "grampo" utilizado por Sally e também a maneira que o personagem de Travolta precisará trabalhar os sons que rodeiam Sally com o seu olhar, estabelecendo uma relação entre sons e imagens baseada nos possíveis cruzamentos de um com o outro). Mas o que De Palma talvez apresenta de mais particular é a maneira como trabalha o barroco - seja pela mise en scène sofisticada ou por uma tendência do seu cinema ao excesso -, barroco que faz parte de toda a conclusão de Um Tiro na Noite.

E portanto retornamos à poesia da noite. A poesia das luzes, do movimento, das cores evidenciadas pela escuridão que as cerca. Jack tentará de todas as maneiras alcançar Sally após perdê-la na estação de metrô, chegando a sofrer um acidente com seu jipe na avenida onde ocorre a comemoração do "Dia da Liberdade" (para onde Sally e Burke se encaminhavam). A noite surge, e com ela Jack desperta do seu sono. Ele terá mais uma chance para salvar Sally - a última. Mas a corrida contra o destino, como bem sabemos, é sempre uma impossibilidade no cinema de De Palma: Jack já salvou Sally uma vez de ser morta, e não poderá salvar a segunda. É o mesmo procedimento que De Palma usa em O Pagamento Final e Pecados de Guerra, e o oposto do mecanismo empregado em Femme Fatale: Jack chegará tarde demais, e tudo o que lhe resta a fazer é matar Burke. A tragédia desta cena é ampliada pela comemoração do "Dia da Liberdade", uma liberdade que após o assassinato de Bob Kennedy e de toda a história política norte-americana das décadas de 60 e 70 De Palma apenas pode decretar como morta. E por que Brian De Palma é Brian De Palma? Por conseguir resumir numa homenagem extremamente pessoal a Um Corpo Que Cai e Blowup - Depois Daquele Beijo todo um pensamento político, todo um furor que lhe é único, que não pertence a nenhum dos cineastas que tantos lhe acusam de plagiar. É no momento em que Jack segura o corpo sem vida de Sally, neste momento e em tudo que neste momento vemos - os fogos de artifício com as cores da bandeira americana, a câmera descrevendo um delirante movimento circular como em Vertigo, um homem que acaba de perder para sempre a mulher que ama -, que está contido todo o projeto de cinema de Brian De Palma. Seu legado está em Um Tiro na Noite.

Bruno Andrade