Finis Hominis, de José
Mojica Marins
Brasil, 1971
A galeria de tipos criados por José Mojica
Marins em Finis Hominis (1971) é talvez um dos aspectos
mais extraordinários neste filme atípico
de sua carreira. Mojica, até então prisioneiro de Zé do Caixão, reage
inventando a figura lunática do profeta Finis Hominis. Sua performance
é praticamente igual – o mesmo olhar, a mesma barba, o mesmo tom de voz
apocalíptico e as mesmas unhas vampirescas. Mas neste filme, Mojica é
uma espécie de anti-Zé do Caixão. E, se em O
Estranho Mundo de Zé do Caixão, no episódio Ideologia,
o seu duplo Oãxiac Odez comparava-se a Deus buscando a comprovação de
suas teorias no espaço de sete dias, em Finis
Hominis o personagem de Mojica é a encarnação de um “cristo” absolutamente
brasileiro.
A força da caracterização dos personagens criados por Mojica
é tanta que resvala para os coadjuvantes, os figurantes e até mesmo para
os que passam na rua e são, por acidente, flagrados pela câmera. E, apesar
de absurdos, bizarros, deformados, são reais. Doutora Havanir e Enéas
Carneiro poderiam perfeitamente ter saído de um filme como Finis
Hominis.
Auxiliado pelo roteiro de Rubens F. Lucchetti, Mojica trabalha
com diferentes climas que se interpenetram ao longo da narrativa, numa
sucessão de situações tão diversas e estranhas quanto os personagens que
aos poucos vão surgindo.
Finis Hominis abre com uma introdução típica, espécie de preâmbulo exterior ao próprio
filme, no qual, sobre imagens em table-top,
Mojica/Zé do Caixão discursa a respeito de “problemas insondáveis” que
“pairam sobre a existência: a vida e a morte”, para então concluir que
existe somente uma verdade, para tudo e para todos: “nada existe, nada
vive, nada morre, sem razão de ser. Se existe, há uma razão para existir.
Assim, existe este filme.”
A partir daí tem início a ação, e, com ela, a peregrinação do
profeta (Mojica), que nasce nu das águas
cinzentas de uma praia de Santos. Ele a princípio assusta os moradores
da cidade mas, aos poucos, vai conquistando adeptos, operando milagres
(frutos da imaginação popular ou feitos reais?) e se torna, em pouco tempo,
fenômeno nacional com direito a destaque e transmissão ao vivo por uma
rede de televisão.
Mestres da síntese, Mojica e Lucchetti trabalham com símbolos
ancestrais, ligados à religiosidade: o aparato católico, as vestimentas
de Finis Hominis, a água e o sangue, o topo de uma pedreira (de onde Finis
faz seu sermão televisionado), a adúltera arrependida, a criança doente
repentinamente curada e a velha paralítica que volta a andar. Ao mesmo
tempo, atravessando estes “milagres”, acompanhamos o desfile de personagens
populares que parecem saídos do universo da pornochanchada: o corno manso,
o marido traído, os médicos de um hospital que só pensam em comer as enfermeiras
ou em acompanhar o jogo de futebol no radinho de pilha. Há ainda, como
satélites em órbita, outros “núcleos” não menos estapafúrdios, como o
bando de hippies que, no meio
de uma orgia, se atiram ao chão para catar as moedas que Finis Hominis
joga para o alto, e os policiais que o contratam para um show beneficente.
Tendo o personagem de Mojica como fio condutor, esses universos
funcionam também como “episódios” mais ou menos fechados – é o caso da
cura da criança no hospital e do drama vivido pelo corno manso e impotente
(interpretado por Roque Rodrigues). Este segundo “episódio”, em particular,
é talvez o melhor, espécie de conversa entre Mojica e Nelson Rodrigues
copidescada por Lucchetti (ou vice-versa). Obrigado a fazer viagens periódicas
ao Rio para tratar de sua impotência, o personagem de Roque deixa sozinha
em sua mansão a sua mulher, uma loura nada confiável. E, de fato, assim
que ele sai, os “ratos” fazem a festa. Ela tem um amante, e não só ele
como toda a sua família são indiretamente sustentados pela fortuna de
seu marido. Uma curiosidade: o médico com quem o corno se consulta é o
jovem Carlão Reichenbach.
Finis Hominis tem o mérito de desenvolver personagens inteiramente diversos, inusitados
e únicos. O simples ato de enquadrar um rosto, aqui, resume uma história
particular. Podemos imaginar (e esta é a principal força dos filmes de
Mojica e, em especial, de Finis
Hominis) o drama e a trajetória de seus personagens apenas pela escolha
dos tipos físicos. São ao mesmo tempo epidérmicos e complexos. Em Finis Hominis, o terror dá lugar ao documental-fantástico. Cada rosto
é um tratado. Cada gesto, um documento deste mesmo gesto.
Em uma das cenas de peregrinação mais impressionantes, Finis
Hominis está à frente de uma multidão que segue seus passos. Mojica monta
planos próximos de Finis e de seus seguidores com planos documentais de
uma procissão, ao som de Villa-Lobos. A “sintonia intergalaxial” de que
fala Jairo Ferreira deve ter feito estas cenas ecoarem de longe na glauberiana
procissão final de A Idade da Terra, com Jece Valadão vestido
de Cristo Índio.
Em Finis Hominis a
preocupação com os meios de comunicação continua presente – não de forma
tão genial quanto em O Despertar
da Besta nem tão ingênua quanto em O
Estranho Mundo de Zé do Caixão (episódio Ideologia).
Os meios de comunicação – rádio, jornais, TVs – são cúmplices da loucura
propagada por Finis. Seriam, por assim dizer, seus apóstolos. Em cada
aparelho de TV, uma versão padronizada da Bíblia. O “cristo” moderno de
Mojica não crê na Igreja, proclama que a única verdade é o dinheiro, mata
a sede com o vinho de um cálice sagrado, come carne num boteco e quer
sair sem pagar, participa de uma bacanal, casa um corno com uma adúltera,
e é, em essência, um moralista e um frustrado. Mas nada do que ele diz
é de fato uma mentira: “se existe, há uma razão de existir”, é o que insiste
Mojica em Finis Hominis.
Mesmo não tendo o brilho de suas primeiras criações com o personagem
Zé do Caixão, Finis Hominis
é, no entanto, um espetáculo experimental
– paradoxo aparente, mas, em se tratando de Mojica Marins, totalmente
comprovável.
Luís
Alberto Rocha Melo
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