O Despertar da Besta / Ritual
de Sádicos, de José Mojica Marins
Brasil, 1970 / 1982
Se
José Mojica Marins carrega o epíteto de cineasta maldito, não resta dúvida
que O despertar da besta é o mais maldito de
seus filmes. Produzido em 1969 com o título de Ritual dos sádicos, foi imediatamente vetado pela censura do então
governo militar, que não satisfeito em impedir a exibição do filme, pretendia
também destruir todas as cópias e o negativo. Recuperado durante a década
de 80, foi somente exibido em mostras e festivais, sem ter recebido lançamento
comercial. Tamanha ira contra o filme explica-se pela forma franca e explícita
pela qual o filme aborda o consumo de drogas, apesar de impregnado de
uma certa ingenuidade e moralismo tão característicos de seu diretor.
As
primeiras sequências de O despertar
da besta apresentam momentos de violência ou degradação determinados
pelo uso de drogas. A eles se alterna o depoimento de um médico (Sérgio
Hingst), atacado por quatro entrevistadores (entre eles os diretores Carlão
Reichenbach e Maurice Capovilla), sob o quase silencioso acompanhamento
de Mojica, que interpreta a si mesmo (“Zé do Caixão ficou no cemitério;
quém está aqui é o cineasta”, diz um diálogo). O médico acabara de laçar
um polêmico livro abordando o consumo de drogas (ou “tóchicos”, como pronunciam
os atores), e apresenta os casos para justificar suas teorias. A princípio,
diálogos com frases como “São os atos anormais de uma juventude sem freio!”
e o já destacado moralismo presente nas cenas trazem a impressão que o
filme tenderá para a simplória e reducionista abordagem refletida pela
citação acima. Entretanto as sequências são criativamente encenadas por
Mojica, estando carregadas de um clima de opressão e dominação nada distante
de seus momentos de terror mais explícito. Em especial a cena na qual,
após fumar maconha, uma colegial se entrega a um grupo de “transviados”,
acabando por morrer ao ser penetrada por um toco de madeira, é uma brilhante
mistura de tensão, humor (às vezes involuntário) e ironia. Igualmente
irônica é a sequência onde uma bela Ítala Nandi é assediada durante uma
entrevista de emprego por um obeso patrão, que se empanturra de macarrão
e é visto pela moça ora como um porco, ora como cachorro.
É
digna de destaque, em particular nessa primeira metade, a utilização que
o filme apresenta para a música e o som. Desde a peculiar e hilária canção
que abre e encerra o filme, a trilha sonora que acompanha os momentos
de drogas e perversão é extermamente criativa, fazendo uso de temas clássicos
ou religiosos, passando por Roberto Carlos e o tema de A
ponte do rio Kwai (na já citada sequência da colegial), culminando
com uma adúltera relação sexual ao som da natalina Boas
festas de Assis Valente. E não somente a trilha sonora, mas todo o
filme demonstra um clima de experimentalismo que parece enquadrar este
trabalho em especial de Mojica, cineasta de orígem inegavelmente popular,
dentro do então emergente cinema marginal, passando inclusive a sua aceitação
por um grupo de cineastas paulistas que participam do elenco (além dos
já mencionados, temos Ozualdo Candeias como um dos drogados).
Na
segunda parte do filme, o médico explica seu polêmico estudo, que então
sabemos tratar-se da utilização de LSD em um grupo de drogados para observar
sua reação à figura do personagem Zé do Caixão. Bastante curiosas são
as imagens de um programa de TV da época (Quem
tem medo da verdade) no qual Mojica é inquirido por um júri de celebridades
(entre elas o compositor Adoniran Barbosa e a atriz Consuelo Leandro),
defendido pelo diretor Carlos Manga e absolvido pela quase unanimidade
dos componentes. Curiosamente o único a condená-lo, taxando-o veementemente
de ignorante, é o locutor esportivo Sílvio Luiz. No programa, Mojica,
caracterizado como seu alter-ego, destaca sua desilusão com a
vida e sua consciência como artista popular. O filme torna-se carregado
de um clima de auto-referência, que a partir de então marcará presença
em quase toda sua obra; Mojica faz uso da sua popularidade (então no auge),
pressupondo a presença de Zé do Caixão no inconsciente coletivo, o que
levaria o pesquisador a utilizar sua figura para influenciar os drogados.
E é nas imagens dos delírios acompanhados pelo médico, no qual cada um
dos quatro sujeitos do experimento apresenta sua visão pessoal de Zé do
Caixão, que o Mojica cineasta dá asas à imaginação, criando sequências
sem um maior compromisso com realidade ou verossimilhança que misturam
coisas díspares como cemitérios, mulheres seminuas, uma escadaria de corpos
humanos e rostos desenhados em bundas. Assim como o Sombra, Zé do Caixão
sabe o mal que se esconde nos corações humanos.
O despertar
da besta acaba por se
revelar um filme extremente antenado com sua época, da popularização do
rock’n’roll e da liberação sexual (vistos
com um certo preconceito) e das drogas, que, apesar da reducionista impressão
inicial, acabam por não ser satanizadas, quando o médico apresenta como
conclusão de seu estudo o fato de não serem elas as responsáveis pela
perversidão de seus usuários, mas apenas como fator de liberação de suas
frustrações. Não podemos esquecer de ressaltar a importância do roteirista
R. F. Luchetti, então colaborador habitual de Mojica, em parte responsável
pela interessante estrutura fragmentada do filme, oriunda de sua experiência
como redator de quadrinhos, também notadamente presente no trabalho anterior
da dupla, O estranho mundo de Zé do Caixão. Já O despertar da besta, em particular, trata-se
de um filme ímpar, um tanto quanto irregular e por certo moralista (mesmo
que este moralismo não se manifeste de uma forma previsível, refletindo
uma ética que vai de encontro ao senso-comum da época ao não condenar
a droga em si) e cabotino, mas que acaba por mostrar-se como essencial,
não somente para os aficcionados de Mojica, mas para todos que apreciam
o cinema como uma arte de criação pessoal, mesmo quando imperfeita.
Gilberto Silva Jr.
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