Ação e Dispersão, de Cezar Migliorin


Ação e Dispersão de Cezar Migliorin

Se há uma coisa faltando nas mostras de curtas brasileiros nos últimos anos é polêmica. A capacidade de um curta incomodar, mexer com a platéia. No máximo o que temos visto recentemente são protestos contra as comissões de seleção, expressões de descontentamento com a qualidade de filmes, mas nunca uma apaixonada reação de rejeição da platéia a algo inesperado, não visto anteriormente, que mexa com o espectador e o faça reagir. Diga-se que nem toda reação deste tipo é rica por si mesma. Se lembramos das recentes vaias ao curta Remanescências de Carlos Adriano, quando exibido junto a Elogio do amor de Godard, no CineSesc de São Paulo, vemos que esta revolta foi uma muito mais de tédio perante algo inesperado do que algo criativo, renovador. Dificilmente alguém questionou o cinema ou sua forma de ver a vida a partir dessa sessão, simplesmente se desejava ir logo ao longa.

O último verdadeiro "escândalo" que me lembro de presenciar foi na própria Curta Cinema, em 1994. Quando exibido o filme de Paul Sacramento, Juvenília, houve gritos na platéia: "Que porra é essa??" O filme incomodava pela sua aparente gratuidade violenta, que era na verdade fruto de uma necessária reflexão sobre a banalização dos impulsos de uma certa juventude, de um mundo onde a perda da sensibilidade e a necessidade da busca do prazer nas fontes mais inesperadas tornava-se quase uma necessidade, além de um reflexo de um egocentrismo sem limites. A platéia, e mesmo o crítico, eram forçados a parar para repensar suas impressões, suas sensações, seu incômodo. Nem todo filme precisa provocar isso para ser bom, longe disso. Mas é saudável para qualquer cinematografia poder causar tamanha sensação de quando em vez.

Pois agora, oito anos depois, nós pudemos ver de novo esta reação, nas exibições do curta digital de Cezar Migliorin, Ação e dispersão. E, mais uma vez, não foi por acaso: o cineasta testa os limites de espectadores e críticos, misturando coerência estética, profundo questionamento político, e um conteúdo que necessariamente espelha e projeta uma série de problemas, como única forma de colocá-los a nu. Esta sua opção, muito semelhante a de Sacramento em 1994, prova que o artista não pode sempre ser "agradável" e que ele precisa colocar dedos em feridas das maneiras mais desconcertantes. A arte não pode ser sempre "sublime".

Mas vamos começar pelo início: do que trata este filme de Migliorin? É importante começar dizendo que ele é parte de um dos concursos que a Petrobras organizou para produções em digital. Estes concursos foram bastante criticados internamente no meio do cinema pela incoerência aparente entre a premiação em dinheiro separada para as produções em digital (R$20 mil) e as do edital para filmes em 35mm (R$50 mil). Como se sabe, é muito mais barato produzir um filme em digital do que em película, ainda mais quando o produto final ficava atrelado a uma duração curta (5 minutos), e uma cópia final em vídeo mesmo. Entre as pessoas que costumam batalhar na área do curta a piada corrente era de que a Petrobras queria mesmo era equipar uma série de microempresas, de produtoras de audiovisual, porque com seu prêmio se poderia comprar uma câmera e um equipamento de edição e ainda realizar o vídeo. A idéia seria até boa, diga-se, se assumida como tal, o que não era o caso.

Pois bem, partindo deste incômodo inicial, Migliorin propôs um projeto de documentário-processo, onde ele não poderia dormir duas noites na mesma cidade até o dinheiro do prêmio terminar. Argumentada em torno de uma questão do cinema digital como filme-diário, dos famosos "filmes de viagem", etc, o projeto foi aprovado. E ganhou notoriedade logo numa matéria do jornal O Globo que tentava "denunciar" os absurdos de premiações, mostrando que com este dinheiro o cineasta ia viajar o mundo por conta de um concurso de roteiro feito com verbas de empresa pública. O que na época a reportagem não podia prever é que Migliorin estava pelo menos uns 100 passos na frente do jornal (como é função de um artista): o filme em si era a denúncia. Ou seja: passando por aproveitador, Migliorin ia de fato ser aquele a trazer às claras a insanidade do prêmio em si, mas não só.

Isso porque o produto final do seu trabalho, esse Ação e dispersão exibido na Curta Cinema, é um filme-processo sim, mas da forma mais inesperada e inédita. Começa com uma cartela de créditos informando o montante do prêmio recebido, e todos os gastos básicos feitos (equipamento, salários, etc). A primeira estranheza: um filme com uma prestação de contas em si mesmo? Bem, como era de se esperar, dos R$20 mil sobravam R$13 mil, após todos os gastos. Como gastar o resto? Aí o pulo do gato de Migliorin: proposta deixada clara na tela ("não dormir duas noites na mesma cidade"), o filme começa com um "taxímetro" regressivo num canto da tela, onde dos R$13 mil vão sendo subtraídos a cada plano os gastos necessários a sua realização. Migliorin filma da forma mais "preguiçosa" (aparentemente) suas passagens básicas de viagem: ônibus, táxis aviões e estradas, hotéis e restaurantes, aeroportos e rodoviárias. A cada deslocamento, o dinheiro diminui, a cada noite idem, a cada refeição mais ainda.

O que o espectador presencia então é praticamente um homem em sua missão: queimar R$13 mil e fazer um filme deste seu processo. No meio tempo ele cruza o oceano duas vezes, se hospeda em belos hotéis, passeia por Europa e EUA, come do bom e do melhor. Tudo, conforme o logotipo da patrocinadora no início e no final deixa bem claro, às nossas custas. No final da sessão em que eu estive presente, uma mulher levantou revoltada: "Vagabundo! É o meu dinheiro também!"

Desse grito (desejado e conseguido pelo filme) começam as inúmeras e necessárias perguntas que ele levanta: vagabundo por quê? O cineasta fez um filme com o dinheiro do prêmio, que era o que se exigia dele. Apresentou seu resultado final, com a duração pedida, dentro do orçamento proposto. Qual o problema, portanto? Que ele tenha se beneficiado pessoalmente deste dinheiro? Bom, pelo menos nós vimos como ele o fez. Quantos belos jantares e viagens foram pagas nos outros filmes produzidos com este prêmio e nós nem sabemos? Quantas contas de motel? Então, supomos que a revolta não pode ser no campo da ética, já que antiético seria fugir com o dinheiro sem fazer o filme ou escamotear prestações de conta escondendo tais gastos, coisas que Migliorin não fez.

Portanto, a revolta daquela senhora, e de tantos espectadores, deve ser estética: o filme não a agradou. Bom, realmente: os documentários em primeira pessoa, embora uma corrente já bastante desenvolvida, e ainda mais após a entrada do digital em cena, não agradam a todos os espectadores. No entanto, com seus enquadramentos inusitados, banalidade de cenas e humor afiado, o filme sem dúvida diverte. Será que se poderia falar ao menos isso de muitos mais dos filmes feitos em concursos de roteiro recentes? Porque não nos revoltarmos contra estes gastos de dinheiro público sem qualquer retorno artístico?

Se ética e esteticamente o filme não pode ser considerado, portanto, um absurdo, sobra só uma opção: ele incomoda porque é um espelho e o que ele reflete sobre o nosso modelo cultural é doloroso demais para ficarmos sentados assistindo. Me parece que estamos chegando a algum lugar por esse caminho. O que Migliorin faz com seu filme é partir do particular (o absurdo desta premiação da Petrobras) para atingir o muito mais geral: como deve ser usado um recurso público investido em arte? Que tipo de prestação de contas é possível e/ou plausível num sistema baseado em incentivos governamentais? Aonde começa o abuso e termina a necessidade? Como são escolhidos os premiados? Se pode ludibriar um fomentador a imaginar que se fará um filme e com a mesma proposta realizar outro completamente diferente? Como foram gastos os R$20 mil nos outros premiados? O que é lícito de ser premiado com o "nosso dinheiro"? Mas, acima de tudo: qual o limite ético de uma realização de obra de arte? Porque não fique dúvida: Migliorin tirou sim vantagem pessoal de uma premiação pública. No entanto, se não fizesse assim, seu filme não poderia existir e denunciar este processo. E aí, como resolver o paradoxo? E mais: há porquê tentar fazê-lo? A arte precisa de explicações?

Em cinco minutos, o realizador coloca isso tudo na tela de forma tão absolutamente cristalina, sucinta, necessária, enxuta, que não fica dúvida: trata-se de uma das mais importantes realizações audiovisuais nacionais recentes. Portanto, muito mais relevante que todos os outros filmes feitos com este prêmio. Daí, de novo, a pergunta: vagabundo como? Se este filme é o único a realmente fazer valer o dinheiro nele investido com o retorno esperado: uma obra de arte relevante, urgente, viva, pulsante.

E mais: o realizador é duplamente corajoso pois não só se colocou como vidraça ao público, para efetuar sua afronta ao sistema regente, como também estabelece a mesma relação de conflito com relação ao próprio patrocinador, aos colegas de classe e realizadores, etc. O rei, depois do filme dele, está nu, e todos estão vendo cada ruga do seu carcomido corpo. Migliorin vai ganhar pouquíssimos novos amigos e muitos inimigos com o seu trabalho porque fez arte para mexer, e incomodar. Pelo menos aqui conosco, isso ainda vale muitos pontos, e só reforça a crença de que ainda há muito a se fazer em cinema, seja ele digital ou em película. Atrelado a que sistema for, fugir dele ainda é possível.

Eduardo Valente