Perversa Paixão, de Clint
Eastwood
Play Misty For Me, EUA, 1971
Perversa Paixão, de Clint
Eastwood
O
que mais impressiona na descoberta pós-anos 90 de Perversa Paixão
não é propriamente a distinção ou a grande
segurança que o diretor estreante Clint Eastwood apresenta no exercício
do então novo ofício -- um salto planejado em sua carreira,
para o qual ele já vinha se preparando há algum tempo --,
mas o quanto este filme evidencia um estilo praticamente consolidado já
em seu momento inaugural. Esta é uma impressão comum que
temos ao assistir todos os filmes da fase inicial do cineasta, marcada
sobretudo pela parceria com o fotógrafo Bruce Surtees.
De
fato, se pararmos para analisar, é difícil perceber qualquer
mudança relevante no estilo de Eastwood ao longo dos anos, senão
um constante aprimoramento, pequenos ajustes que resultam no apuro máximo
de seus trabalhos mais recentes. Que se tome como exemplo um plano notável
de Perversa Paixão: o mulherengo disc-jockey Dave Garver
(Eastwood), acossado por uma fã psicótica (Jessica Walters),
toma plena consciência da encrenca em que se meteu quando ela tenta
cometer o suicídio, sem sucesso, no banheiro de sua casa; com um
abraço, ela demanda a presença de Garver durante sua recuperação.
A câmera se desloca, passando do plano de conjunto em que vemos
os dois enlaçados numa cama até isolar num close o semblante
atormentado de Garver.
Há
neste plano excepcional um leve apelo ao artifício, uma concepção
de cinema (na utilização da luz, no uso da câmera,
na decupagem no interior do plano) que deriva basicamente da estratégia
hitchcockiana do estudo de personagens -- uma tentativa de aproximação
psicológica denunciada pela evidência do recurso formal.
Em
que pese a influência de Hitchcock em diversos momentos da sua obra
(pensamos especialmente em Poder Absoluto), a presença do
artifício é bastante rara no cinema de Clint Eastwood, surgindo
apenas em ocasiões muito especiais, como licença poética
-- como o último plano de Cowboys do Espaço. Sua
arte é a da narrativa clássica, em que a transparência
do relato é o item primordial e incontornável. Pois se tomarmos
um outro momento qualquer em que Eastwood se utiliza daquele mesmo recurso,
daquele mesmo movimento de isolar com a câmera a expressão
de uma personagem num dado contexto, veremos que o que importa, sempre,
é o que se mostra, e não como se mostra. O
plano final de Coração de Caçador ilustra
bem a idéia: toda a expressividade do plano está na expressão
de John Wilson (talvez o maior momento do ator Eastwood), no "action!"
quase sussurrado quebrando o silêncio da sequência. O movimento
de câmera é invisível.
*
* *
Perversa
Paixão é um exercício de controle de tensão
realizado com rigor exemplar e grande intuição. Hitchcock
é aqui, sem sombra de dúvida, a grande fonte de inspiração
-- quer na construção do suspense ou mesmo nas imagens carregadas
de simbolismo, nas imagens de castração. Há uma abundância
de referências diretas a Psicose, que serve ao filme como
modelo.
Excelente
diretor de atores, Eastwood constrói sua personagem com segurança
e desenvoltura, tendo plena consciência de suas limitações.
Sua presença é contida, reservada, desenvolvida na medida
exata para compensar o desempenho agressivo de Jessica Walters, que combina
doses iguais de doçura e histeria na composição de
sua personagem, totalmente atípica dentro da concepção
de personagens femininas fortes no cinema da época.
Vale
dizer que aqui inexiste o moralismo tosco de seu derivado mais famoso,
Atração Fatal, pois Perversa Paixão
não compartilha o institucionalismo de Adrian Lyne e muito menos
sua visão da sexualidade masculina. Eastwood pode ser um moralista,
mas não um qualquer; seu filme não impõe um julgamento
preestabelecido às personagens, ele persegue a moral em seus atos.
Fernando
Verissimo
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