Josey Wales - O Fora da Lei,
de Clint Eastwood
The Outlaw Josey Wales, EUA, 1976
Clint Eastwood em Josey Wales - o Fora da Lei
A
sequência de abertura de Josey Wales - O Fora da Lei é
um destes momentos que sintetizam e justificam em poucos minutos toda
a obra de um cineasta. Não há qualquer espécie de
diálogo (senão uma rápida troca de palavras no final),
o predomínio da ação é absoluto; as imagens
tem um incrível poder de síntese, como cabe ao trabalho
de um legítimo herdeiro do cinema clássico. A narrativa
obedece à regra do máximo de economia, com extremo rigor.
Todo
o cinema de Clint Eastwood está contido neste prólogo: a
deferência prestada aos mestres (principalmente Sergio Leone com
seus cortes secos e troca de olhares em super-close), a morte como força
que define e orienta as vidas, a cicatriz que expressa uma grande perturbação
interior. Mais que uma introdução à história
de Josey Wales, esta sequência é uma verdadeira fundação
do universo de Eastwood.
O
filme se abre com imagens bucólicas: um homem e seu pequeno filho
cultivam a terra quando ouvem um chamado feminino; é a mãe
que vem buscar a criança para o jantar. Nada mais que cinco ou
seis planos para estabelecer o lugar da utopia familiar, de um lirismo
demolidor. Este espaço de perfeito equilíbrio é destruído
com a mesma rapidez com que foi construído: em meio a gritos e
fogo, o agricultor vê sua família e sua casa sofrerem o colapso
na mão de bárbaros saídos de lugar algum. Com um
plano genial mergulhamos definitiva e irrevogavelmente na tragédia:
o agricultor arrasta um saco com os cadáveres até a cova
quando uma mão de criança escorrega para fora. O homem observa
por um único segundo antes de cobrir novamente a mão e continuar
seu caminho -- e este segundo em que não vemos nada, nenhuma expressão,
é a expressão máxima do classicismo exemplar de Eastwood,
muito próximo de John Ford.
Seguem-se
o enterro sofrido e um momento de completa apatia enquanto o homem medita
sobre o túmulo. Um grupo de rebeldes sulistas surge em meio à
vegetação e alicia o homem à luta contra a União.
Sedento de vingança ele se junta a eles e adere ao combate, sem
aderir à causa. Sua causa é particular e sua guerra é
solitária; assim, nasce o mito do renegado Josey Wales.
Tudo
em Josey Wales remete às obras-primas realizadas por Eastwood
na década de noventa, a começar por Os Imperdoáveis
-- ao mesmo tempo sua refilmagem e continuação. Nos dois
filmes está presente uma mesma visão decadente do oeste,
nas antípodas das narrativas épicas de Ford: espaço
de utopias falidas, terra de brutos, mutilados, desiludidos, tiranos e
desgarrados. Há, no entanto, uma enorme dívida para com
Ford, um ponto de convergência na estratégia artística
de ambos que é a utilização deste território
como um espaço alegórico privilegiado onde se situam e confrontam-se
as forças que compõem o tecido social dos Estados Unidos.
Em Josey Wales há um importante salto nesta direção,
deixando um pouco para trás a forma fabular, mística, de
seu primeiro faroeste, O Estranho sem Nome -- embora a paisagem
de Josey esteja prenhe de um irrealismo latente.
A
trajetória de Wales remete ainda àquela de outro incompreendido
de Eastwood, o Butch / Kevin Costner de Um Mundo Perfeito. Ambos
carregam o ressentimento de não poder usufruir de um núcleo
familiar tradicional e buscam um recomeço condenado ao fracasso
em formas alternativas que substituam aquele núcleo. Eles compartilham
as cicatrizes e um mesmo impulso de movimento que os leva a um percurso
rumo ao coração da América rural. O destino de ambos
é a morte (no caso de Josey sob a metáfora da cavalgada
rumo ao pôr-do-sol), o último refúgio do outsider.
Há
neste trajeto simbólico rumo ao próprio aniquilamento um
moto profundo do cinema de Eastwood que é o impulso de morte. É
um dado presente em praticamente todos os seus filmes -- lembremos de
Bird, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal e principalmente
do último plano de Cowboys do Espaço -- e manifesta
uma visão pessimista por certo. Eastwood é o grande narrador
da falência dos valores sobre os quais a sociedade americana foi
erigida, seu maior cronista por assim dizer, mas não um ressentido.
Há um certo pesar no cumprimento de seu papel, uma autêntica
melancolia de alguém que acredita, no fundo, na viabilidade de
um mundo, não necessariamente perfeito, mas justo e livre de corrupção.
Este,
o grande aspecto político da reforma que Eastwood realiza, solitário
e perseverante, no cinema americano: à restauração
da forma clássica corresponde a recuperação de valores
esquecidos ou sucateados pela sociedade
contemporânea. Tal como o agrupamento que Josey Wales reúne
em torno da fazenda abandonada em uma terra inóspita, a ética
que o cinema de Eastwood procura recuperar remete ao espírito dos
pioneiros.
Fernando
Verissimo
|
|