Impacto Fulminante, de Clint Eastwood

Sudden Impact, EUA, 1983


Impacto Fulminante de Clint Eastwood

1. É preciso moldar o mundo para se chegar nele?
É noite e, num helicóptero possivelmente, sobrevoamos uma metrópole. Durante aproximadamente dois minutos, nada vemos além da (re)criação de um universo repleto de especificidades: o barulho dos carros, o tráfego muito movimentado e os arranha-céus que invadem o caminho traçado pela câmera de Eastwood. Cena comum para início de um filme policial, sem dúvida. Sabemos que Eastwood trabalha dentro dos limites impostos por uma certa iconografia do cinema de estúdio norte-americano, mas o que o torna um caso especial, merecedor de destaque num contexto onde diversos cineastas foram capazes de erigir carreiras invejáveis?

A maestria de Eastwood reside em grande parte no fato de seus movimentos como diretor serem sempre evidenciados pela mise en scène; um posicionamento moral ante um personagem ou uma situação sempre é manifestado, de um modo ou de outro, de maneira cinematográfica. As coisas são aquilo que elas são, e o trabalho mais importante do diretor é o de tentar apreender seu mundo o mais objetivamente possível. Para um cinema como este a máxima Hawksiana "Cut the bullshit and go right to the point" é tão válida quanto a máxima Rosselliniana "Está tudo aí; por que inventar?".

2. A clareza na/da ambigüidade
Apesar da precisão de sua abordagem, Eastwood jamais comete a imprudência de desprezar o atributo da ambigüidade. É assim que em Impacto Fulminante o personagem do detetive Harry Callahan é retomado para, de forma semelhante ao que Don Siegel fez no primeiro filme da série (Perseguidor Implacável), ter seu approach boçal de emprego da lei posto em xeque. A maneira que Eastwood conduz o estudo que faz do comportamento de Harry será, também, muitíssimo semelhante a uma estratégia que Siegel espertamente usa no seu Perseguidor Implacável: sobrepõe-se as ações do homem da lei, o representante de uma justiça implacável e fulminante, às ações dos objetos de suas investigações, do seu trabalho (o assassino, o marginal, o psicopata).

Pois Harry, bom tira que é, fará de tudo para satisfazer a obsessão que tem pela ordem e pela lei; porém - e é este "porém" que interessa a Eastwood, sempre foi e ainda o é -, esse "ser um bom tira" acarreta exatamente no que? Acarreta em Harry seguir cegamente a perigosa cartilha dos fins que justificam os meios: pouco importa ocorrer uma chacina numa lanchonete onde várias pessoas inocentes podem morrer se há um assaltante solto, um indivíduo a quem Harry precisa impor a sua lei. Um cineasta medíocre - David Fincher, portanto -, diante das dificuldades que um personagem como este apresenta, acabaria por torná-lo num sujeito absolutamente desprezível. Se o mesmo não acontece com Eastwood é porque em seus filmes temos o trunfo do olhar, do cinema enfim, pois é toda dele uma capacidade encantadora de agregar os mais diferentes pontos de vista sobre uma mesma coisa (idéia de montagem, afinal). Desta maneira, Harry não é apenas um irascível fascista ou um homem bom no seu trabalho: ele é justamente algo que surge entre estas duas pontas (assim como várias outras), um indivíduo que, como qualquer um - e este é um ponto que Eastwood sempre faz questão de sublinhar em relação aos seus protagonistas -, não é de todo mau, nem de todo bom.

3. A imagem e (é?) seu duplo
Em Perseguidor Implacável Siegel punha Harry num interessantíssimo confronto com seu oposto, fazendo surgir deste embate alguns pontos que conduziam na conclusão a uma pergunta que mesmo hoje mostra uma autenticidade ímpar: o policial e o bandido, o que os aproxima? Se no final de Perseguidor... nem o próprio Harry sabe responder a esta pergunta direito, jogando seu distintivo (toda a carga simbólica de sua autoridade) num rio, é porque para Siegel é capital que esta pergunta permaneça, se transforme num elemento sempiterno. A genialidade de Eastwood em Impacto Fulminante está na maneira em que se mantém fiel a Siegel (e a toda a proposta do primeiro Dirty Harry, deformada por completo nas seqüências Magnum 44 de Ted Post, e Sem Medo da Morte de James Fargo) ao mesmo tempo em que explora novos territórios e expande o conceito do primeiro filme: pois desta vez Harry terá de enfrentar não seu extremo oposto mas um duplo. Pois Jennifer Spencer, a pintora estuprada por um grupo de delinqüentes, busca nada além da justiça que em um primeiro momento lhe foi negada. Não há ironia no relato aqui: Eastwood é apenas incisivo quando mostra as atrocidades que Jennifer comete àqueles que a violaram no passado para trazer à tona toda a confusão da justiça que Harry se propõe a defender. Harry, o justiceiro, o implacável, terá de trazer à justiça alguém que divide seu mesmo credo, e no processo se debate com todos os problemas que tal credo apresenta. É assim que Eastwood abre uma pergunta semelhante a que Siegel faz em Perseguidor... (mas que na diferença crucial revela aquilo que o distancia de seu mentor): o policial e o bandido, o que os distancia? Ao final do filme (o máximo de subversão que poderíamos pedir de uma produção americana de grande estúdio), a resposta do autor é uma só: nada.

4. Os meios e os fins
Impacto Fulminante se põe, portanto, como uma discussão sobre a justiça (não esperaríamos menos de um cineasta rigoroso como Eastwood) da mesma maneira que Perseguidor Implacável fazia o mesmo com a tirania (exposta não apenas pelas ações do vilão Scorpio como também por Harry na sua função de policial). Como Jennifer em relação a Harry, não seria Impacto Fulminante o duplo complementar de Perseguidor Implacável?

Bruno Andrade