Entrevista com Emanuele Crialese


Grazia (interpretada por Valeria Golino) com os filhos em
Respiro (A Ilha de Grazia)
, de Emanuele Crialese

A Ilha de Grazia começa muito calmamente, nos mostrando antes dos personagens a vida da cidade, mais ou menos como uma aproximação documental daqueloa ilha. Só aos poucos ele vai focando numa família, e logo depois, numa personagem principal...

Então, gosto muito de documentários, mas não tive uma abordagem de documentário, consciente. Tive uma abordagem visual, no sentido de que eu queria contar uma vida, uma história muito simples. Queria contar a vida dessas crianças, desses meninos, como vivem, e dessa família. Decidi escrever uma primeira redação do roteiro sem diálogos. Escrevi apenas imagens. E, então, sobretudo o início do filme é toda uma coisa que você não sabe exatamente o que é e que, porém, tem um ritmo muito particular (porque começa lentamente), que dá imagens, que diz: "aqui há estas crianças e não se entende onde estão". Depois, há essa família. Em seguida, lentamente, lentamente, o filme, com seu ritmo próprio, monta e entra no drama, na história. A história, o conflito, chega um pouquinho mais tarde em comparação a um filme tradicional. Alguns disseram que verdadeiramente existem esses aspectos de documentário, que creio, porém, virem mais da escolha que fiz dos atores. Não tanto dos lugares ou do modo de que filmei, porque o modo de que filmei é muito tradicional. Muito fechado, nunca câmera na mão, nunca sujo e, logo, construído, isto é, staged. Então, eu acredito que a sua sensação de documentário venha mais da escolha que fiz dos atores e das paisagens, ao invés de vir de um estilo meu de dirigir e de filmar. Então, aquele sentido que sinto mais próximo do neo-realismo, se quiser, é, então, a escolha de Vittorio De Sica por pegar pessoas de rua, ou de Fellini. Em relação à escolha, ao contrário de um documentarista. Eu decidi fazer trabalhar aqueles meninos porque gosto muito de trabalhar com atores não-profissionais. Mas a coisa que gosto muito de fazer é misturar atores não-profissionais com atores profissionais, porque creio que um ator profissional possa aprender muito através do trabalho com gente que nunca representou, porque é forçado a viver o momento presente. Isto é, o ator profissional pode preparar quanto quiser em sua cabeça a cena, mas até que esteja ali interpretando a cena com gente que nunca a repete do mesmo modo, sempre diversamente. Ele não saberá nunca o que esperar. Por isso nos olhos brilha uma luz que é a luz do presente, não a luz do preparado, a luz do ensaiado. É uma luz que é a luz do agora com toda essa gente que cada vez lhe dá um estímulo diverso. Esta é uma coisa que me interessa muito porque antes de tudo as expressões de um ator são muito mais variadas, as situações são muito mais vibrantes e é uma coisa que me diverte muito realmente porque também para mim é uma descoberta. Eu preparo, preparo, preparo improvisações, ensaios, improvisações, ensaios e, em seguida: ação. Não sei exatamente o que acontecerá entre esses atores. Isto me interessa muito. Isto é um pouco o trabalho que fiz com Ilha de Grazia. Então, eu te dizia, não escrevi os diálagos desse roteiro, queria fazer um filme muito físico e, em um certo sentido, também muito líquido. Então, que não fosse um filme de palavras, talking heads; que fosse um filme puramente de imagens. Então, se essas imagens chegam e compõem uma história, eu fico muito contente. Se não, esse era meu objetivo de qualquer modo, era aquilo de conseguir fazer um filme que fosse mais imagens que diálogos.

Da mesma forma que o ambiente, o filme só vai apresentando os diversos traços da personagem principal, Grazia (interpretada por Valeria Golino), aos poucos. Inicialmente nós não sabemos se ela é simplesmente uma mulher muito expansiva, se ela é um pouco louquinha ou se tem problemas verdadeiros... Da mesma forma, não é de começo que sabemos exatamente qual é a relação que a comunidade tem em relação a ela...

Sim, é um pouco assim. Ela é um personagem que permanece ambíguo até o fim. Mas, claramente, a comunidade, que nunca é ambígua, em sua falta de ambigüidade revela também uma falta de humanidade. Porque, de qualquer modo, realmente os filmes que eu amo são filmes que falam de gente fraca, de gente que tem problemas, que tem vícios, que não consegue se liberar de algumas coisas. Estes são os personagens que amo nos filmes. É claro que é muito interessante sempre ver como estes personagens tornam-se aceitos ao contrário daqueles que gostariam de todos perfeitos porque se crêem perfeitos. E, por isso, esse contraste, entre a comunidade, a gente normal, e o fraco, o anti-herói. Então, eu procurei trazer esse personagem deixando sempre, porém, o espectador um pouquinho desorientado sobre: "O que ela tem?" "É doente?" "Não é doente?" "É contente?" "É triste?" "O que essa mulher tem?" E não dou a resposta até chegar ao final. Essa mulher não tem nada. Essa mulher provavelmente não consegue conter as próprias emoções. Tudo está aqui. Cada emoção é uma emoção intensa demais. Pode-se definir uma doença assim, talvez... não sei, no campo psiquiátrico. Mas esse era o personagem que me interessava, porque me sinto muito próximo desse personagem. E, então, é um personagem que creio ter conseguido descrever lentamente, lentamente, bem, porque é um personagem que me compete muito pessoalmente.

Acredito que a personagem de Valeria Golino tem duas "irmãs", uma dentro do cinema italiano e outra fora. Creio que pela relação com o ambiente e com a comunidade, ela me lembra muito a personagem de Ingrid Bergman em Stromboli de Roberto Rossellini, e pela relação com os próprios sentimentos e aquilo que a comunidade nutre por ela, com a Gena Rowlands de Uma Mulher sob Influência de Cassavetes.

Sim, mas a diferença é que o conflito da personagem de Gena Rowlands é no interior de uma família, mais que de uma comunidade. A comunidade defende paradoxalmente Gena Rowlands. É a família que não a defende, a família que não a perdoa. Então, Gena Rowlands é ainda mais prisioneira. Ao contrário, nesse caso, Grazia tem uma família que gostaria de defendê-la, mas não consegue porque é fraca, porque não tem a força para fazê-lo. É a comunidade que a pressiona a mudar. Esta é uma diferença narrativa bastante importante. E há também outras diferenças, no sentido de que de qualquer modo o personagem de Gena Rowlands é um pouco um personagem muito mais concentrado. Em meu filme, é mais "coral". Há Grazia, mas Grazia existe também através dos outros. Gena Rowlands tinha uma autonomia sua, de personagem, muito bela, muito forte. Por isso, seguramente existe a explicação, porque Cassavetes é um mestre meu. Eu vi Uma Mulher Sob Influência tantas vezes. Seguramente há uma inspiração forte, uma marca forte, porém as estradas depois de um certo ponto se dividem porque eu fiz um outro discurso em comparação ao discurso de Cassavetes. Porém, usei sistemas, métodos que John usava. E que eu propus de novo. E aquilo da improvisação, da refilmagem submetida à improvisação. Isto é, nós fizemos tantas improvisações, tantos ensaios antes de filmar. Mas ensaios sem fixed line. Ensaios como nos sentimos. Esta é a situação. "Como quer exprimi-la?", pergunto ao ator. O ator fala, improvisa. Improvisa uma vez, improvisa duas vezes. Cada vez diversamente. Quando se chega à ação, sempre se há o melhor resultado, magicamente. E se há qualquer coisa para corrigir, corrige-se. Porém, deste modo, eu, em suma, aprendi muito com John Cassavetes.

Seu filme tem uma relação com o outro grande filme italiano sendo exibido nesse Festival, A Hora da Religião de Marco Bellocchio. Nos dois, a mulher italiana só pode ser tomada como a mãe, a santa, ou a puta, não há meio-termo... Quando Grazia abre o canil, ela é a puta da ilha. Quando todos acham que ela está morta e ela reaparece, reaparece como santa, e você filma essa comunidade se aproxinando dela como estivessem indo em direção a uma santa.

Nunca tinha refletido sobre essa coisa. Não refleti sobre a semelhança, em todo caso, do tema com que Bellocchio defronta, em relação ao meu tema. É um ponto de vista teu muito interessante. Porque é assim, é verdade. As mulheres ou são santas ou são prostitutas. Vem da cultura católica, creio. Esta é uma coisa que foi imposta um pouco pela Igreja, segundo eu. Porém, para além do comentário sobre isso não saberia o que comentar em relação a isso. É uma coisa sobre a qual devo refletir.

Além da personagem principal, o filme desenvolve várias histórias paralelas entre as crianças e os jovens. Tem aquelas brigas entre dois grupos, a relação da filha com o jovem policial que vai para a ilha e começa a estranhar os hábitos locais...

A idéia é bastante simples. Eu queria que a menina representasse o passado da mãe. Através da vida da menina, eu queria que se imaginasse um pouquinho a vida da mãe. Isto é, como se fossem duas imagens no espelho. Através das lutas dos meninos, eu queria descrever a vida do pai. E dar com uma história que parte da infância e chega até a maturidade, até a família. Fazer filhos e formar uma família: nós nos realizamos como humanidade deste modo. Então, para mim era importante contar a história abstrata desses personagens partindo da infância para chegar até a família. A violência desses meninos é uma violência que descreve também uma situação de papel, não? Que cada um deve ter um papel, que é por isso também um filme: que cada um deve ter um papel. Sim? Alguém não tem um papel, ou sai fora do papel: as pessoas se perdem, têm medo. Porque não te reconhecem mais. E quanto menor a comunidade, mais cada um verdadeiramente tem necessidade de papel. Como em uma tribo. Em uma tribo, cada um deve ter um papel. Se uma pessoa não tem um papel, expulsam-na, não a aceitam mais. Então, para mim era importante dar a todos os personagens um papel. Grazia é uma espécie de folha um pouco ao vento, livre (mais livre que todos os outros papéis). Porém, através da menina, se faz entender o que foi Grazia e o que essa menina teria podido se tornar. Através dos meninos, principalmente Filippinho, aquele pequenininho. Ele toma sempre o lugar de Vicenzo, o pai. Quando se senta à mesa, lembra? Expulsa os dois. É um ditador aquele menino. O moleque é um ditador. É aquilo que ele deveria ser se fosse mais forte, aquilo que ele gostaria de ser, mas que não consegue ser. Então, essas side stories, para mim, são vindas dessa tentativa. Depois, não sei se consegui completamente. Isto é, não sei se é completamente claro aquilo que eu queria fazer. Porém, a existência dessas realidades paralelas é, para mim, vinda dessa reflexão, dessa tentativa de unir as vidas e de fazer imaginar aquilo que os personagens principais poderiam ser.

A idéia do jogo de espelhos não veio a mim vendo o filme. Eu acho até curioso que você tenha pensado nessa relação uma vez que geralmente esse artifício do paralelismo é usado para dar uma sensação de destino, de dizer que aquilo que acontece hoje foi o que aconteceu ontem e vai acontecer amanhã. Seu filme me parece muito distante dessa idéia de destino.

É um filme que rompe o destino. É um filme de ruptura. Isto é, não é um filme que fala do prolongamento do destino. Não, é um filme que desafia o destino. E, toda vez que nós desafiamos o destino, que rompemos com o destino, nós crescemos como sociedade, sempre. E, toda vez que nós colocamos em discussão um fantasma... pode ser o homossexualismo, por exemplo... Pode ser toda coisa que para nós é estranha, que estigmatizamos. No momento em que a aceitamos, tornamo-nos mais maduros, tornamo-nos mais adultos. Tornamo-nos, sobretudo, mais humanos. Isto é, aceitamos a diferença. E só quando nós aceitamos a diferença é que nós nos tornamos mais humanos, creio. Porém, devemos romper com o destino. Isto é, devemos romper com as tradições. Devemos romper com ciclos, se quisermos andar para frente. Isto é um pouco o tipo de... não gostaria de dizer mensagem, porque não queria deixar nenhuma mensagem. Porém, é um pouco a linha do filme. É um ciclo que se rompe. A comunidade vai contra o esquecimento. Não é Grazia a voltar à praia, na cena final. É a comunidade que decide ir por ela mesma, metaforicamente. Isto é, vai contra o esquecimento, vai contra a liberdade. A liberdade é a liberdade. Pode ser bela, pode ser feia. A liberdade, você deve aceitar. Não pode proteger-se. Quando se é livre, se é livre, se é metade ar. Neste caso, é metade água. E metade água quer dizer perda de controle. E perda de terra, de limites. E, sobretudo, há essa coisa que eu amo muito: a água, como elemento, que, quanto mais você está tenso na água, mais você afunda. Quanto mais você se deixa ir pelo elemento, mais você bóia. E, então, para mim, a imagem final quer dizer isto. Eu porcurei essa imagem, a quis, porque queria dizer esta coisa. E estou muito contente porque penso que cada vez que a vejo... Sabe? Há coisas que não posso mais ver no meu filme, que odeio do meu filme. Porém, há aquela imagem final, que digo: "Parabéns!" Digo sozinho para mim parabéns porque fala ainda a você esta coisa. Não está cansado de vê-la. Isto é um bom sinal para mim.

Há uma consonância curiosa do seu filme com um outro filme contemporâneo, Dez, de Abbas Kiarostami. Logo na primeira cena do filme, vemos uma criança discutindo com a mãe, dando ordens e xingando-a.

Por que eu amo muito o cinema iraniano? Porque o cinema iraniano é aquilo que nós éramos. Isto é, as situações são visualmente muito mais evidentes. Porque é todo um paradoxo. Isto é, hoje é muito mais visível. Porque quando você vê uma mulher completamente coberta, uma mulher que não pode sair de casa, você já vê que há um grande problema. E em uma Sicília que é aquela que eu descrevi, este problema você não vê, mas existe, existe dentro: está enraizado. Isto é, tem raízes. Então, é mais difícil capturar visualmente esse sentimento de posse em relação à figura feminina: macho-fêmea. Porém, é o mesmo, tem a mesma raiz, é a mesma coisa. Duas religiões diversas, mas a raiz é aquela. Isto é, essa vontade pela preservação da família. Sempre essa família que retorna. Podem ser de outras religiões, mas o conceito de família é aquilo que às vezes dá problema na nossa sociedade. Isto é, pela conservação da família, a mulher deve se ocupar daquilo, a mulher deve permanecer em casa, a mulher deve se ocupar dos filhos. De outro modo, a sociedade não vai pra frente, segundo este esquema. Não se encontra uma outra alternativa. Por isso, sim, eu penso que há paralelos. Nos filmes iranianos você vê esse esquema muito melhor. É mais vivo, mais forte, porque há situações de coação muito mais coercitivas. Na sociedade de uma pequena comunidade italiana você o vê menos, mas o sente de qualquer modo.

Entrevista realizada por Ruy Gardnier. Tradução do italiano e transcrição de Isabella Montello.