Duas
certas tendências do cinema chinês
Prazeres Desconhecidos,
de Jia Zhang-ke,
foi o grande destaque chinês do ano
De Prazeres Desconhecidos, haveremos de nos lembrar
a cena em que um dos protagonistas do filme passa a vender DVDs piratas
em cima de sua bicicleta, numa mistura de estande de camelô e veículo
de comerciante mambembe (na verdade, é para fugir caso algum policial
apareça). A conversa que o diretor Jia Zhang-Ke faz fluir entre
os dois amigos, um cliente e o outro comerciante, é curiosa e auto-complacente,
sobretudo para quem conhece a carreira anterior do cineasta: o cliente,
Xiao Wu, pergunta a seu amigo se ele tem alguns dos filmes de arte chineses,
como Xiao Wu, Plataforma (ambos são os filmes anteriores
de Jia) ou Love Will Tear Us Apart (filme anterior do diretor de
fotografia de Jia, Yu Lik-wai), ao que o vendedor responde que não,
que não tem nenhum desses. Blague adorável, não sem
um certo tom de amargura, sobre a produção corrente da China.
Nem tanto porque os "filmes nacionais" são raramente
disponíveis em vídeo esse é um problema que,
aparentemente, é mundial, já que aqui também os filmes
brasileiros são colocados em regime de gueto nas estantes das locadoras
como "cinema nacional", independente de gênero ou proposta.
Mas sobretudo porque essa é a única maneira de fazer fluir
os filmes chineses produzidos fora do modelo de produção
dominante, controlado por um escritório governamental que pratica
a censura sistemática de grande parte do cinema chinês desde
sua retomada a partir de 1984 com os filmes da Quinta Geração
(Terra Amarela, Adeus Minha Concubina de Chen Kaige, O
Sorgo Vermelho, Amor e Sedução de Zhang Yimou).
Se nunca houve motivos para chamar a Quinta Geração
pelo nome que teve (ninguém parece identificar quatro gerações
distintas do cinema chinês antes dessa), há muitos motivos
para separar os autores dessa geração que foram conhecidos
no Brasil na primeira metade dos anos 90 e do qual Zhang Yimou é
o cineasta mais importante e famoso até o momento e os realizadores
que se seguiram (Zhang Yuan ou o próprio Jia Zhang-Ke), batizados
genericamente de Sexta Geração. Se o primeiro grupo ainda
viveu e cresceu sob os preceitos educacionais da Revolução
Cultural de Mao Tsetung e teve que passar alguns anos desenvolvendo trabalhos
manuais no campo como uma espécie de "residência universitária",
e a partir dessa vivência criou uma visão romântica
das terras e da população chinesa, a geração
seguinte foi a da juventude destruída física e espiritualmente
pelo massacre da Praça da Paz Celestial (Tian'namen), uma geração
urbana desencantada tanto com a herança homicida do regime comunista
quanto com o capitalismo desenfreado de hoje, que só traz dinheiro
e os benefícios da sociedade de consumo a uma parcela reduzidíssima
da população. O que naturalmente criou um cinema diferente,
muito longe das produções históricas e rurais que
formaram o imaginário não despido de um certo exotismo
estetizante do cinema chinês no Ocidente.
Só que esse novo cinema, desde o começo,
enfrenta todos os incômodos possíveis para sobreviver. A
legislação de cinema da China faz com que todos os projetos
de filmes tenham que passar por algum dos estúdios oficiais (logo,
o estatuto de produtor independente é inexistente). Sem a ligação
a um deles, é impossível obter autorização
para filmar. Assim, o Escritório do Cinema, órgão
estatal que administra a realização cinematográfica,
consegue manter um alto controle sobre a produção em cinema
no país. Sabe-se sempre que alguém está filmando
tal filme em tal lugar, com tais temas e atores. Mais ainda, o Escritório
tem acesso a cada projeto de filme em duas instâncias, com direito
a veto e censura em cada um deles. Primeiro, para a compra de negativos,
o roteiro do filme tem que passar pela instituição que,
assim que vê que o tema não pode incomodar a ordem vigente,
libera o projeto. Depois, chefiados do Escritório assistem à
montagem final do filme, para saber se aquilo que havia sido prometido
no roteiro havia sido modificado e, havendo tal modificação,
julgarem da natureza subversiva ou não da obra. Naturalmente, obras
críticas acerca da China contemporânea são sumariamente
proibidas, impedidas de serem realizadas antes da própria filmagem
ou interditadas na montagem. Filmes que criticam a Revolução
Cultural, no entanto, são facilmente aceitos, como se pode ver
por Chen Kaige, diretor de Adeus Minha Concubina, que hoje é
uma espécie de cineasta oficial do país, algo entre um Cacá
Diegues (pelo populismo crítico e uma inclinação
pela cultura popular mais exótica) e um Sérgio Rezende (pelo
academicismo e oficialidade dos temas e das formas épicas).
Essa política cinematográfica, associada
a uma enorme vontade de real advinda de uma juventude com real papel na
história recente de um país, só podia fraturar a
produção de cinema do país em dois tipos de produção:
os filmes oficiais e os filmes proibidos, filmados clandestinamente, sem
autorização do Escritório de Cinema, filmados com
negativo contrabandeado, montados no exterior e impossibilitados de serem
comercialmente explorados em seu próprio país. O que significa,
segundo a própria expressão de um cineasta que filma desse
modo, Zhang Yuan (O Outro Lado da Cidade Proibida, Crazy English),
um "abastardamento mundial" para que o cineasta consiga sobreviver:
realizador chinês, comentando e querendo interagir e interferir
no mundo chinês, ele é assistido e financiado quase que unicamente
por ocidentais1. Daí, para
voltar ao início, a amargura da pequena blague do autor: sem distribuição
mesmo a pirata, ou seja, mesmo sem ganho econômico do artista
, o filme dos realizadores chineses não consegue ganhar nem
minimamente os olhos da juventude para a qual eles fazem seu cinema.
Nos festivais de setembro-outubro, o que se pôde
ver da produção chinesa mostra o grande desnível
de cultura e produção em que estão esses dois pólos
de cinema. Um, oficial, pomposo, de grande orçamentos ou ao menos
com uma produção muito bem cuidada e folgada (mas não
necessariamente filmes ruins), e outro cinema, certamente mais apaixonante
e apaixonado, sem recursos, urgente, partindo de uma necessidade vital
de produzir filmes. Se o primeiro grupo foi conhecido no Brasil com o
lançamento de Amor e Sedução de Zhang Yimou no começo
da década, o segundo só apareceu muito quietinho em festivais,
em 1998, com Frozen, um filme de Wang Xiaoshuai (assinado Wu Ming,
"sem nome", para o cineasta não sofrer perseguições
no país de origem). Um exemplo intermediário é O
Sonho Azul, de Tian Zhuangzhuang, filme produzido por estúdios
mas cuja montagem final o diretor não entregou à comissão
(mostrou uma outra montagem) e recebeu uma punição de alguns
anos sem filmar.
No entanto, Primaveira Numa Pequena Cidade, seu
filme seguinte, não conta com nenhuma das contestações
do filme anterior. O que se vê é um remake de um filme de
1949, onde, num clima de pós-guerra, a amizade de um amigo é
colocada à risca quando ele descobre que um de seus mais queridos
amigos se casara com sua namorada de juventude. Talvez haja nesse dilema
algo da dúvida do cineasta (ser fiel à indústria
e ao país ou aos seus sentimentos verdadeiros?), mas nada que possa
atrapalhar ou incomodar a fruição de um drama familiar em
huis-clos (uma casa abastada no interior da China) que tenta misturar
um romance água-com-áçúcar para senhoras com
uma narrativa lenta e compassada, de trejeitos formais (planos-seqüência
e reenquadramentos incessantes no plano) roubados diretamente de Flores
de Xangai de Hou Hsiao-hsien. Se o novo filme de Tian Zhuangzhuang
tem ao menos um charme que o singulariza, o mesmo não pode ser
dito de Tutor, filme de estúdio e de gênero (drama
sobre a difícil relação entre aprendiz e professor).
Dirigido por Li Hong, Tutor se inscreve no esforço de diversos
realizadores chineses em realizar um novo cinema industrial de fácil
apreensão e repertório que possa reafirmar no seio do público
um gosto pelo cinema nacional. Honesto e eficiente na realização,
o filme entretanto é despido de maiores preocupações
artísticas, seguindo o protocolo dos filmes do mesmo gênero
(professor começa a fazer funcionar, há um trauma que coloca
tudo a perder, o professor passa a também falhar, até que
o sucesso final coloca os dois, tutor e aprendiz, na rota do sucesso).
Contudo, a crueza de algumas cenas associada ao sofrimento de aprendizado
de uma criança (convenhamos, é difícil não
se sentir tocado com um tal drama) dá ao filme alguma luz.
O mesmo já não dá pra se dizer
acerca de Virada Vermelha, produção de Chapa Branca
como não se via há anos no cinema mundial (excetuado o americano,
claro, que continua a fazer filmes de propaganda como Pearl Harbor e de
anti-propaganda como Justiça Vermelha [dir. Jon Avnet], no caso
propaganda antichinesa). Dirigido por Li Xiepu e Liang Shan com fins político-propedêuticos
à maneira de filmes como Fui um Comunista para o FBI, o
filme é um exercício de louvação a Geng Tao,
oficial do exército e do Partido Comunista de Mao Tsetung que articulou
com os empresários pré-Revolução de modo a
que se transformassem em aliados nacionalistas. Filme enorme e sem ritmo,
dirigido por uma mão pesada demais que tenta a todo momento imitar
os épicos personalistas de guerra (cenas de batalha, conflito pessoal,
decisão honrosa, canalhas inimigos, etc.), Virada Vermelha ainda
tem momentos de comicidade involuntária quando, tentando se vender
como filme com efeitos especiais, coloca aviõezinhos de miniatura
de fazer inveja a Plano 9 do Espaço Sideral. A maior graça,
contudo, é política: na era do pré-Deng Xiaoping,
falar bem de capitalistas locais, mesmo aqueles que aderiram ao regime,
era anátema para o regime. Hoje, ainda levando a cabo a máxima
de Deng "Um país, dois regimes", o cinema chinês
tenta servir de objeto de propaganda para mostrar à população
chinesa que a onda agora é misturar comunismo com empreendimento
capitalista. A política pode até ser boa, o filme não
é.
Quando se sai de um Virada Vermelha para assistir
a um outro como O Peixe e o Elefante, se acreditaria que se tratam
de dois países diferentes. Produzido caseiramente, logo clandestinamente
e sem meios de produção, o filme dirigido por Li Yu é
de tema contestatório e social (o amor homossexual entre duas mulheres,
com direito a tórridos beijos), filmado em 16mm e com diversas
precariedades técnicas (às quais se acrescenta um uso não
muito expressivo dos atores não-profissionais e uma fotografia
naturalista que não tira muito proveito do precário), mas
todas as limitações de expressividade não conseguem
tirar do filme um certo brilho interno, que deriva a cada fotograma da
verdade de sentimentos e da entrega de cada um em realizar o filme com
os meios possíveis. Nele, nada da empostação e do
comercialismo de filmes recentes do cinema chinês (O Funeral
do Chefão, Happy Times de Zhang Yimou). A própria
decisão de assumir sua condição de lésbica
para a mãe por parte da protagonista se reflete na posição
da realizadora ao assumir sua condição de cineasta clandestina
em seu país, e as duas parecem caminhar de mãos dadas ao
futuro nada feliz que se prenuncia (morte, separação...).
Mesmo que não seja exatamente bem-sucedido, O Peixe e o Elefante
tem diversos atrativos. Além da história, fortemente
ancorada num senso de captação do real, o filme tem uma
estética fria, distanciada, que por vezes dá belos efeitos
de composição de quadro e, mais que isso, utilizam a câmera
como algo que ela hoje quase já não é mais chamada
para fazer, o registro do cotidiano, o ritmo e as pequenas coisas da vida
corrente.
Se a diretora Li Yu usa o cotidiano para melhor adequar
seus personagens e histórias, Jia Zhang-Ke faz dele sua verdadeira
casa. Se no plano do acontecimento a China é um país radiante
que se constrói com o comunismo e o capital externo (Virada
Vermelha), no plano do cotidiano o acontecimento não aparece,
a juventude não pertence nem ao passado nem ao futuro, vivendo
uma existência sem amarras e delineando-se como geração
perdida (Prazeres Desconhecidos). O presente não se dá
na forma dos fatos, mas na de um presente perpétuo que se repete
ad infinitum, e que não poderá resultar senão
na ruína. Filmado em digital porque ainda não há
uma legislação que proíba se filmar em suportes que
não sejam de película, Prazeres Desconhecidos é,
além de um excelente filme, um manifesto sobre a independência
(existencial, cinematográfica) da mesma forma que Plataforma
era um manifesto sobre a arte como prática mambembe. Só
que as conclusões dos dois filmes deixam apreensivo: prisões,
rendição, covardia, fim do sonho. Até o momento,
a feitura dos filmes, só o próprio ato de se estar filmando,
nega a própria história que eles contam, a impossibilidade
de ser artista na China. Mas por quanto tempo?
Talvez a resposta venha por Lou Ye. Diretor do belo
O Rio Suzhou, totalmente independente, ele filma agora Purple
Butterfly, com a atriz-fetiche do momento na China, Zhang Ziyi (O
Tigre e o Dragão), para um grande estúdio. Se o filme
esteticamente tenderá para o lado da independência vibrante
ou do academicismo de mercado, só o futuro dirá. A única
verdade que existe no presente é que essa não é uma
fórmula possível de ser seguida por todos os cineastas e
para todos os filmes. Aqueles que permanecerão na via da contestação
e do retrato da juventude e da crítica dos dilemas atuais da China
ainda terão muita dor-de-cabeça para enfrentar.
Ruy Gardnier
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1. Grande parte das informações referentes
ao modelo de produção vem do livro Nouvelles Chines, Nouveaux
Cinémas, de Bérénice Reynaud (França: Paris,
1999, Éd. Cahiers du Cinéma), pp.14-16 e todo o capítuo
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