Viver Mata,
de Nicolas Echevarria

Vivir mata, México, 2001


Embora tenha aparência de uma comédia romântica sem nenhuma ambição além de não provocar incômodos, Viver Mata, do mexicano Nicolas Echevarria, pode incomodar justamente por ambicionar propor uma visão política para além da tal comédia romântica. O casal de protagonistas encontra-se na Cidade do México. Enquanto ela chora as pitangas afetivas com uma colega na estação de rádio onde é locutora de um programa de orientação a motoristas presos em enfarrafamentos, ele lamenta as feridas amorosas para dois amigos em um monstruoso congestionamento no qual passará o dia todo. Imagens em flash-back mostram o início e o fim do romance. Um inventa para o outro uma nova identidade e contam lembranças de situações não vividas. Negam a si próprios para, por meio de seus relatos mentirosos, parecerem mais interessantes. Ilusão como forma de melhorar a realidade.

A intriga romântica resume-se a esse jogo de falsas aparências e não evolui depois de baixar as cartas na mesa. Limita-se à repetição de uma premissa esgotada logo após sua apresentação. O pano de fundo, consequentemente, vai se evidenciando. É construído por uma sucessão de situações absurdas e inusitadas, filmadas de modo a serem vistas pelo viés do exotismo e da caricatura surrealista, nunca como traços normais de um cotidiano insólito.

A tela passa a ser ocupada, portanto, por um desfile de "anormalidades": vendedores de rua fantasiados e em cima de moticletas, avestruzes correndo pelas avenidas, transeuntes de expressão indígena vestidos com camisas espalhafatosas e operários com atitude selvagem. Um ótimo material para o público local rir de sua condição inferior e para o público estrangeiro tirar um sarro daquela gente esdrúxula. Melhor seria exibir o filme em um circo com todos de sombrero.

Como o fiapo de romance, afinal, liga-se a esse contexto? Pela idéia de mentira e de falsificação. Embora simule lançar um olhar crítico e ridicularizante para o México, expondo os sintomas do subdesenvolvimento crônico e vocacional de um país iludido com a falsa proximidade do Primeiro Mundo, Viver Mata é a maior vítima de seu julgamento reducionista e pretensamente debochado. Ataca a mentira inventada para e pelo país, mas também a reproduz em suas posturas. Ao assumir um ponto de vista superior e distanciado da realidade, de modo a tratar a capital do país e o próprio país com o desdém típico de quem se coloca acima de seu meio, o filme parece fruto de um olhar estrangeiro que se atém a estereótipos grosseiros por conta de sua miopia.

Viver Mata pretende assumir a perspectiva do Primeiro Mundo para falar do Terceiro, mas com um discurso que detona esse procedimento, pois vê o mexicano como povo condenado a usar as portas dos fundos, não por razões políticas, históricas e econômicas, mas porque trazem alguma maldição herdada dos astecas. Talvez nem um diretor americano disposto a retratar os vizinhos de forma folclórica e carnavalizada chegasse a tal bizarrice. É como se a comédia romântica falasse do México, com imagens de vexatória impessoalidade estética e em contraste com a idéia tão explorada de "país do absurdo", sem querer correr o risco de assumir-se mexicano e, consequentemente, colar em sua alma a tarja de produto de origem subdesenvolvida. Isso nunca.

Nesse sentido, a imagem do carro, com o protagonista e seus dois amigos dentro, é sintomática. Os personagens transitam sobre as quatro rodas pelas ruas como se fossem turistas a fazer um simba safari pela cidade. Fazem parte daquela realidade, mas sem nunca se integrar a ela. Estão sempre dentro do automóvel e fora do mundo real. Quando abrem as portas, sentem-se em uma selva . Vivem a dizer que o país está afundando, como este não os merecesse ali. Como acontece com o romance do casal movido a farsas, o trio masculino vive em um mundo de ilusões. Querem chegar a um destino, mas, graças ao incontrolável e lento fluxo do trânsito, são levados a outro rumo. É quase impossível não ver nessas situações uma metáfora do imobilismo e da falta de direção do país. E é ainda mais difícil não ver essa metáfora como a tentativa de se falar dos mexicanos com o cuidado de não se misturar a eles. Rir do ridículo, pensam os realizadores, é atitude superior. No caso, letal. Viver Mata, afinal, é mesmo de morte. Cinema de alta periculosidade.

Cléber Eduardo