Dez,
de Abbas Kiarostami
Ten,
Irã/França, 2002
Não é notório e corrente na história do cinema
o caso de diretores com uma carreira coerente e vigorosa que constantemente
insistem em dilatar filme a filme seu repertório expressivo, sua
metodologia, sua maneira de aproximar-se da realidade, sua estética,
enfim. E entretanto esse nem é o motivo principal para se louvar
Dez, o novo filme de Abbas Kiarostami. Porque quando um grande
diretor insiste por caminhos novos, geralmente lhe elogiamos a coragem
e o arrojo em trilhar caminhos novos. No caso do novo filme de Kiarostami,
há muito mais coisas a tratar além de um vigor e de uma
obstinação que já sabemos, a julgar por filmes como
Close-Up ou Através das Oliveiras, que lhe são
próprios. Dez é uma proposta inédita de obra
cinematográfica que erige 1000 (ou seja, 10³) perguntas sobre
a situação do cinema contemporâneo, sobre o que é
fazer cinema, sobre qual é o papel do diretor de cinema.
Vejamos: duas câmeras
fixas posicionadas num carro; uma focaliza a motorista, enquanto a outra
acompanha sempre o carona. Ao invés de seguir a lógica do
campo/contracampo (mostrar cada personagem à medida que está
falando), o filme se atém mormente a um dos lados, fazendo-o falar
e ouvir. A proposta do filme é límpida: dez seqüências
dentro desse carro, guiado por uma mulher iraniana recém-separada
judicialmente de seu marido, com um filho de 7 anos que não cansa
de recriminá-la por ter se casado com outro homem. Dez seqüências
filmadas com duas câmeras DV, sem equipe de filmagem, sem roteiro,
apenas com algumas indicações que o próprio Abbas
Kiarostami dá através de um microfone de ouvido (naturalmente
escondido para o espectador). O que nos convida menos para uma noção
de filme como estamos acostumados a ver do que para a noção
de experimento audiovisual, do cinema surgindo a partir de um dispositivo
conceitual que dilata nossa percepção usual do espetáculo
cinematográfico, entregando um objeto que sem dúvida é
um filme (afinal, é uma película projetável,
de duração x, seqüência definida de rolos, etc.),
mas cuja fruição nos revela um além a fascinação
diante de um objeto desconhecido e sedutor e aquém
pela precariedade dos modos de produção, pela ausência
patente de um entrecho, pelos limites indiscerníveis entre documentário
e ficção.
Surge na tela o número
"10", um daqueles de contagem regressiva para começo
de rolo de filme. A primeira seqüência já é impressionante:
um plano-seqüência todo filmado no garoto, o filho da motorista,
que não tem a menor relutância em sistematicamente responder
de forma grosseira a todas as tentativas da mãe de criar conversa
com ele. Fala por cima das falas dela, tampa os ouvidos, culpabiliza-a
pelo pouco tempo dado a ele, repreende sua situação social
de divorciada e novamente casada e, por fim, na falta qualquer outra possibilidade
de briga, xinga-a de idiota e estúpida. É um verdadeiro
ditador que nasce de um homem iraniano de sete anos: estando todos os
imperativos de dominação da mulher espraiados pela cultura
do Irã, é fácil até para uma criança
reconhecer na mãe uma pessoa de qualidades culturais e afetivas
francamente inferiores. O plano segue até que a mãe deixe
o menino na natação. Só então vemos o seu
rosto, uma bela mulher morena, de óculos escuros e o famoso véu
com o qual as mulheres escondem a cabeça, um dos tabus mais firmes
dos costumes femininos do Irã.
Na seqüência
seguinte ("9"), trata-se de uma amiga. As duas passeiam pelas
ruas de Teerã, conversam sobre a vida das duas e, entre outras
coisas, sobre a celebração de aniversário do novo
marido. O aniversário, por sinal, é outro pretexto para
que se mostre a importância do véu: enquanto nossa protagonista
estaciona o carro por um minuto para comprar a torta, vemos a moça
da carona com muito calor, abanando-se, e contudo com o calorento véu
intocado. Pouco a pouco, Dez progride pela acumulação:
logo mais, teremos cenas com uma prostituta, uma senhora idosa e muito
religiosa, a volta dessa amiga, uma outra mulher abandonada pelo marido...
A arte de Kiarostami, aqui ou em qualquer outro filme, consiste numa poesia
discreta que só se torna clara quando alguns dos motivos básicos
vão se repetindo lenta e moderadamente. Como a questão da
invisibilidade. Muitos se lembram em O Vento nos Levará
da cena em que a mulher a quem o repórter vai pedir um pouco de
leite se esconde na penumbra de um escuro porão. Aqui, Kiarostami
prefere jamais nos revelar o rosto da prostituta ou da senhora religiosa.
De uma, só ouvimos risadas um pouco constrangidas ou desculpas
e argumentos sobre usar o amor como fonte de renda. Curioso, só
resta ao espectador construir mentalmente, ludicamente essa personagem.
Ao fim da seqüência, nossa motorista deixa sua passageira,
que passa por trás do carro e é finalmente enquadrada pela
câmera, ao longe e de costas, colocando-se em sua posição
de trabalho as calçadas de Teerã e recebendo
as propostas de diversos carros que param para saber o preço do
serviço.
Aos poucos, Abbas
Kiarostami constrói todo um imaginário sobre feminilidade
no Irã. A maneira do cineasta se colocar é doce e perturbadora,
aproveitando-se sempre da lógica de uma célebre discussão
ocorrida atrás de uma camionete em Através das Oliveiras:
sempre para um argumento que parece conclusivo e justo, quem sabe haja
uma resposta que desmonte todo e qualquer argumento possível? Kiarostami
nunca usa a câmera para fazer lição de moral e elevar
algum de seus personagens aos céus enquanto manda outros para os
infernos. Ninguém tem propriamente "razão", ninguém
detém o discurso redentor, nem mesmo a protagonista, a quem muitas
vezes o diretor dá sua própria fala. Tudo se passa no "entre",
na dinâmica de disputa e enriquecimento que é cada conversa
travada entre pessoas diferentes.
Pensa-se muito em
Mizoguchi assistindo-se a Dez. Logicamente, pela temática
das mulheres tolhidas por uma posição social inferior que
as torna sofredoras. Pensa-se também em Pedro Costa e no admirável
No Quarto da Vanda, outro filme-experimento realizado em DV e sem
equipe de filmagens. Mas o filme a seu final vai cada vez mais nos remetendo
a um cineasta imprevisível, jamais relacionado anteriormente como
cineasta que tangencia as preocupações da obra de Kiarostami:
Jean-Marie Straub. Pois a penúltima seqüência é
uma cena que poderia mais do que qualquer outra resumir a lógica
de não-reconciliação e resistência em que vem
se construindo por 40 anos a obra da dupla Straub-Huillet. Quando a tela
exibe o "2", voltamos à companhia da mulher que espera
uma decisão definitiva de seu noivo para saber se casa ou não.
Ela dá a conclusão: ele decidiu-se por não se casar.
Pela primeira vez, a decisão no que tange aos homens é tomada
com serenidade, sem o riso histérico da prostituta, sem a veemência
cega da religiosa, sem o ataque neurótico da motorista com seu
filho, sem o choro incontido da mulher abandonada. A decisão está
tomada, nada se pode fazer. Quando a motorista pergunta o porquê
de usar o véu de forma tão cerrada contra a cabeça,
a moça afrouxa o pano e deixa entrever uma cabeça raspada,
cabelo máquina-um. Um calafrio desce pela coluna. Ela liberou-se
do jugo masculino e do caráter de objeto sexual. Outro calafrio
desce. Ela abandona o véu definitivamente, "deixa a cabeça
respirar", como fala sua amiga, num carro que anda pelas ruas de
Teerã. Ficção, documentário, em qualquer um
dos dois registros (e nunca temos muita certeza em qual deles estamos
a cada momento, provavelmente nos dois, sempre) essa cena é deflagradora
e revolucionária. É a cena em que decididamente, como o
saudoso Carlos Imperial anunciando o carnaval, poderíamos cantar
em uníssono: Dez, nota dez.
Ruy Gardnier
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