Spider,
de David Cronenberg
Spider,
Canadá/Inglaterra, 2002
David Cronenberg
é um cineasta de hoje. Quando se diz isso, não se quer dizer
que ele tenta analizar o fenômeno da contemporaneidade, nem que
ele tenta traçar o perfil das mudanças de hoje. Sua atualidade
vem, antes de tudo, do fato de que a estruturação de sua
obra persegue o caminho de quase toda grande arte feita hoje, ou seja,
uma grande e mesma obsessão trabalhada contudo em moldes e módulos
bastante diversos. Todos os seus filmes, dos undergrounds Stereo
e Crimes Of The Future até Scanners e A Hora da
Zona Morta, dos cerebrais Gêmeos e Madame Butterfly
passando pelos carnais Videodrome e Crash, são reflexões
acerca da perturbação mental e de seus efeitos materiais.
Obviamente, reflexões em primeira pessoa, e nesse sentido mais
memórias do que um relato clínico, analítico. Se
seu leitmotif é uma fina teia que perpassa todo o conjunto
de seus filmes, o resultado final pode sair com recortes bem diferentes,
do gore dos primeiros filmes comerciais (Calafrios, Enraivecida
na Fúria do Sexo) às artes da alucinação
interior (Gêmeos) ou exterior (Mistérios e Paixões),
da mesma forma que um compositor como Terry Riley pode escolher o piano
ou o violino como instrumentos preferidos, desde que eles estruturalmente
dêem conta daquilo que ele deseja, ou um artista pop como Aphex
Twin pode incorporar diversos aspectos da música de hoje
da erudita experimental de Xenakis e Stockhausen até as esquizofrênicas
batidas do drum'n'bass desde que respondam a certas necessidades
de ambiência sonora. Como a desses músicos, a arte de David
Cronenberg é uma arte que depende muito mais da modulação
do que da composição. E menos da modulação
musical do que da modulação física.
Dito isso, Spider
é a modulação cronenberguiana para o relato de doença
mental, algo já bastante banal no cinema (sobretudo o americano)
desde que ficou instituído que atores só têm interpretações
excelentes quando interpretam personagens perturbados psicologicamente.
Só que a estratégia desses relatos é toda avessa
à sistemática produção de Cronenberg: dão
uma clareza absoluta de compreensão ao espectador quando essa faz
falta ao personagem principal (o que geralmente sempre conduz à
idéia do cinema como exercício de sadismo disfarçado
de piedade benevolente) e dissociam-se tanto pela terceira pessoa
que a narração e o posicionamento da câmera assumem
quanto pela limpidez do relato assim do martírio dos personagens
em busca de um lugar muito bem instalado para assistir à dor alheia.
Nada disso nos filmes do cineasta de Videodrome, onde a doença
mental domina e corrompe o relato, deixando os espectadores sempre perdidos,
num estado tão letal quanto o dos personagens. Da mesma forma,
seus protagonistas, mesmo doentes, nunca são pobrezinhos incapazes.
Desarranjando uma definição de Foucault que dizia que loucura
é a ausência de obra, seus heróis são sim passíveis
de obra, e os filmes tendem sempre a se dissolverem dentro dessa obra,
de forma que aquilo que vemos na tela já se confunde com o imaginário
do protagonista.
Spider prolonga
essa lógica em outra chave, mais ao gosto da moda. Falsamente ao
gosto da moda. Pois Spider não é só mais um
filme em que uma cesura mostra que aquilo que estamos vendo na tela é
ilusão podemos fazer uma lista nos últimos anos:
O Sexto Sentido, Os Outros, Amnésia, Uma
Mente Brilhante. Pois mesmo que haja um momento do filme que nos revela
que aquilo que víamos pertence à mente do personagem, jamais
deixamos de dela fazer parte, continuamos a pertencer àquele mundo,
talvez mais fortemente ainda.
Depois de uma seqüência
inicial notável, feita de fusões e sobreposições
de manchas amorfas em paredes velhas, acompanhamos a chegada de Spider
ao East End londrino. A primeira imagem pós-créditos nos
dá o trem de Lumière de novo, com a mesma profundidade de
campo. O trem chega, os tripulantes descem todos, e Spider é o
último. Ele balbucia coisas sem sentido, e está sensivelmente
afetado de suas funções sensório-motoras, embora
consiga andar e raciocinar sem muita dificuldade. As paisagens por onde
ele passa aumentam o sentido de quase-autismo do personagem: um enorme
reservatório, prédios com janelas e portas tapados com tijolos,
ruas completamente desertas que exprimem à perfeição
a paisagem interior do personagem. Já vemos o mundo dele.
Spider mantém
consigo um objeto em especial. É um caderninho, que ele esconde
como pode. Nesse caderno, ele rememora toda sua vida, ao menos sua vida
como ela lhe parece: de como uma vagabunda toda sexuada tomou o lugar
de sua mãe casta e toda atenciosa, com o apoio do pai, que lhe
desferiu um assassino golpe de pá. Os escritos de Spider são
da mesma forma turvos: a escrita do caderno é feita de símbolos
que se repetem, quase hieróglifos, que não respeitam a lógica
horizontal da linha nem o princípio começo-meio-fim do caderno.
E entretanto, é uma narrativa. Tortuosa ou não, é
a narrativa de Spider. E de Spider. Pois se, ao fim do filme, podemos
entender o filme segundo um básico distúrbio psicológico
infantil segundo o qual a criança não consegue suportar
a sexualidade de sua mãe (a dicotomia pra lá de conhecida
mãe-puta), o filme não se encaminha dessa forma: ele dá
asas à alucinação do personagem, preenche a tela
com seu mundo. Instaura-se um dispositivo quase beckettiano, ou metabeckettiano:
mesmo sem sentido, suas subjetivações são gestos
de resistência: esconder na roupa um vidro, manter no lugar do falo
um pé de meia com seus pertences, escrever no caderninho
e o filme tem a honradez de abrir cada flashback como uma página
escrita por Spider e, m,ais tarde, escondê-lo, e acima de
tudo os fios, as teias que estende tanto em seu quarto de criança
quanto em seu quarto de adulto e o filme chega a momentos em que
a distinção não é mais tão fácil.
Se Spider estabelece essa teia, é porque só com ela é
possível viver, manter-se vivo. E ele a cria para se desfazer de
seu universo traumático, do sexo feminino, ao qual só consegue
responder de acordo com a lógica de traumatizado: a mulher que
me faz bem é uma mãe, uma santa, e a mulher que me maltrata
é uma puta. A
se notar, então, o extraordinário trabalho desenvolvido
por Miranda Richardson, que representa ora a mãe casta cabelo
alinhado, composta, sem maquiagem , ora a puta cabelos louros
desgrenhados, garrafa de vodca na mão, excessivamente maquiada.
Se Spider é
a história de uma incapacidade ao invés do relato de uma
redenção, é antes de tudo porque o cinema de David
Cronenberg sempre faz do distúrbio mental e do fetiche que dele
deriva uma metáfora para a existência humana e dos objetos
a que nos apegamos. Daí James Spader e Deborah Unger em Crash
tentando mais uma vez morrer (de fato ou de gozo) ou James Woods atirando
contra si duas vezes em Videodrome (uma televisualmente e outra
realmente, mas sabe-se lá qual era mais verdadeira). A psicose
não é um elemento negativo que precisa ser ultrapassado
para uma vida normal, mas ao contrário aquilo que constitui a vida
assim como ela é vivida, e, assim, viver é levar até
o fim sua obsessão. Se Spider recua no momento final antes de matar
uma nova substituta para a mãe, é antes de tudo porque sabe
que sua nova aposta é a errada, e que mais vale reconstruir tudo,
voltar à estaca zero e recomeçar a lembrar, reiniciar a
série, pois só assim é posível viver sua vida.
Não há um fora impossível a ser alcançado,
não há outra vida possível. Se Spider é
um filme tão genial, é que ele consegue nos fazer apaixonar
por um personagem que já está perdido, afásico, impotente,
e que mesmo assim é capaz de agir, mesmo que a seu modo. Spider
é o mais quase-sujeito de todos os personagens de Cronenberg, e
ainda assim ele é apaixonante. Um dos mais apaixonantes, aliás.
Ruy Gardnier
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