O
Princípio da Incerteza,
de Manoel de Oliveira
O
Princípio da Incerteza, Portugal/França, 2002
Les Demoiselles d´Oliveira
Sabemos, ao menos
desde O Vale Abraão (na impossibilidade de ver filmes anteriores),
que Manoel de Oliveira é um magnífico diretor de atrizes.
Até agora, depois desse gigantesco filme, Oliveira só tinha
de novo afrontado uma força feminina como centro de seu filme em
A Carta, mas em tom diferente, mais bressoniano Chiara Mastroianni,
por mais que tenha realizado um trabalho impressionante no filme, não
cola na cabeça como uma legítima atriz-Oliveira. Em O
Princípio da Incerteza, o vulcão feminino retorna com
força total: Leonor Silveira, a deusa de sempre, e Leonor Baldaque,
a nova deusa. Juntas, elas compõem uma das mais surpreendentes
duplas femininas que o cinema já pôde dar.
O começo do
filme não faria perceber: os créditos se desenrolam tendo
uma igrejinha em foco. No meio deles, surge a figura de Camila (Leonor
Baldaque), esquiva, que entra furtivamente e só sai quando os créditos
estão se acabando. A cena seguinte é entre os homens, com
os dois irmãos já velhos da família Roper falando
dos dois novos jovens. Contudo, as mulheres vão aos poucos tomando
de assalto o filme e tornando-se o centro (não só o centro
das atenções, mas também o da narrativa). Celsa (Isabel
Ruth), a criada da casa, preocupada com o destino de Antonio, procura
tirá-lo da companhia de Vanessa (Leonor Silveira) encaminhando-o
em laços maritais para Camila, bela filha de uma família
decadente da cidade do Porto. A narrativa até esse ponto é
protocolar, em sucessões de tempo e psicologias nada dramáticas,
a não ser para José Luciano, o "Touro Azul", filho
de Celsa e ferventemente apaixonado por Camila. A cena em que declara
seu amor é a primeira decisiva do filme: ele confessa a Camila
que a ama, ao que ela lhe responde que é tudo que ela quisera desde
a infância, mas que seu coração não é
de ninguém, nem dele nem daquele com quem ela casará, por
motivos unicamente financeiros.
Camila se converte
em estrela opaca do sistema planetário do filme: posiciona-se no
centro do sistema, faz todos os astros girarem em seu redor, passa a receber
todas as irradiações que vêm deles sem ter que dar
nenhuma (à exceção da externa, a da beleza). Incapaz
de amar, de odiar, de sofrer ou de gozar, Camila vai se tornando pouco
a pouco a tentação dos homens (além de José
Luciano, Daniel Roper também cai de encantos pela jovem, mesmo
que em chave mais amical do que passional) e das mulheres (Vanessa está
deslumbrada pela opacidade sentimental de Camila). Vanessa, por sua vez,
se é centro, é um centro falso. Ela irradia e é irradiada,
ela goza (mantém relações extra-conjugais com Antonio
até em sua casa) e sofre (por Camila, pela falência de seus
negócios), atraindo para si as atenções dos homens,
mas jamais será capaz de ter o que tem Camila: o poder destrutivo
da passividade absoluta, a suprema liberdade de não importar-se
com seu destino (casar por dinheiro com um homem que ela não ama)
ou com seu estado (ser uma mulher humilhada pela presença da amante
dentro de sua casa).
Dir-se-ia que Camila
não tem nada, que é um ser despido de interioridade ou vontade.
Pura impressão. A primeira cena do filme, cena originária,
volta diversas vezes à tela, mas só teremos a visão
de dentro da igrejinha bem mais tarde: trata-se de um pequeno santuário
empoeirado a Joana d´Arc que Camila mantém só para
si, para fazer suas promessas e pedidos à santa. Aos poucos, tudo
parece rodar em torno de suas vontades: o negócio de Vanessa depende
de uma assinatura sua (que ela não dará), um incêndio
numa das boates de Vanessa leva a vida de Antonio. Aos poucos, tudo aquele
ambiente que era dominado por Camila apenas de forma latente torna-se
claro: ela aos poucos controla todas as peças daquele mundo. Uma
vez livre para tomar todas as decisões que quiser, ela será
pela primeira vez um ser volitivo: na última cena do filme, ela
é apresentada a um advogado (para tirar José Luciano da
prisão) e seus olhos brilham. Camila e Leonor Baldaque tornam-se
uma radiantes diante da oportunidade que lhes é dada para conquistar
o mundo. A star is born.
Se Oliveira filma
os homens sempre de modo contido, aproximando seus gestos de uma teatralidade
discreta ou do naturalismo, com as mulheres ele consegue tirar ao contrário
o máximo de suas poses. Ele não as filma de forma teatral,
literária ou "cinematográfica". Ele transforma-as
em esculturas cubistas, onde o olho nunca está olhando para onde
deveria, onde a postura é regulada não pela disposição
da cena ou da situação dramática, mas unicamente
em função da câmera. Se como opção formal
o cinema de Manoel de Oliveira faz questão de sempre ser límpido
como água da nascente, suas mulheres são sempre buracos
negros prontos para implodir o sistema, de dentro fazê-lo ruir.
Cavernas escondidas dentro da pedra na queda d´água, as mulheres
são o poder demoníaco da beleza que dá a vida e a
morte, vulcão aparentemente morto que pode a qualquer instante
voltar à vida (como Camila) ou mata desertificada que só
rende cacto (como Celsa). Que Oliveira possa dar conta da perturbação
suprema (o demônio), já sabíamos. Que ele consiga
fazer isso da forma mais fluente e transparente possível, continua
sendo um mistério que nos fascina a cada filme seu.
Ruy Gardnier
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