O
Pianista,
de Roman Polanski
Le
pianiste, França/Inglaterra/Alemanha, 2002
São tantos os filmes sobre o holocausto que o excesso tem banalizado
o assunto. Transformou o episódio histórico em um gênero
cinematográfico inatacável - por seu valor de denúncia
humanitária - e em tema de projetos destinados a provocar catarse
internacional. Há quem veja na recorrência temática,
quase sempre carente de novidade sobre o universo enfocado, um traço
de marketing da vitimização, como se outras tragédias
fossem menores, ou insignificantes, na escala hierárquica do horror
coletivo. Mas também é possível entender a insistência
em se contar histórias fictícias ou reais sobre a vexatória
institucionalização industrial da matança nazista
como fruto do esfoço pela preservação de uma memória
global empenhada em servir de vacina contra correntes ideológicas
centradas em hierarquias étnicas-raciais-culturais.
O Pianista,
de Roman Polanski, é mais que isso. Quando foi exibido no Festival
de Cannes, do qual saiu com a Palma de Ouro, parte dos críticos
julgou-o às pressas. Muitos o consideraram excessivamente convencional.
Chegaram a defini-lo como comportado e nada audacioso. Pera lá.
A convenção sedimentada pelos filmes do gênero – hoje
um filão de mercado tanto quanto fonte de olhar humanista - segue
outro rumo do tomado por Polanski. A fórmula consagrada reduz a
questão a leituras maniqueístas, atola-se em apelos sentimentais
para chantagear o espectador pela comoção em vez de desafiar
sua consciência e transforma a História em espetáculo/entretenimento.
Não se busca muito mais que arrancar umas lágrimas a forceps,
de modo a fazer o espectador sentir-se mais humano.
O Pianista
tem, sim, carga emotiva. Como não tê-la mostrando brutais
acontecimentos como os ocorridos no gueto de Varsovia? A direção
de Polanski, porém, não os potencializa. O cineasta tem
noção de que seu material já é forte suficiente
e, por isso mesmo, evita amplificá-lo dramaticamente com uma estética
contundente. Opta por uma encenação sóbria e sem
show de artifícios, vista por alguns como careta e acadêmica,
embora seja um recurso para se concentrar no tema. Não há
problema nisso. Buscar uma adequação entre forma e conteúdo
é um desafio para qualquer criador. A forma escolhida pelo diretor
é transparente. Evita chamar atenção para si mesma.
Mas não é apenas por sua lucidez narrativa que o resultado
se diferencia da média dessa vertente cinematográfica. Seu
ponto alto, na verdade, é o roteiro.
Ao contar a jornada
pela sobrevivência de um pianista polonês, Wladislaw Spielman,
figura real, salvo do campo de concentração por um figurão
da comunidade judaica e depois protegido por colegas do mundo artístico,
Polanski levanta questões espinhosas e pertinentes, sem dar respostas
fáceis ou definitivas. Mostra a indiferença dos judeus de
elite em relação ao sofrimento dos vizinhos no gueto e não
usa meias palavras para alimentar uma incômoda pergunta sobre essa
mancha histórica: por que não houve reação
aos nazistas por parte de suas maiores vítimas? Talvez o próprio
diretor vislumbre uma resposta ao expor a perda da dignidade e o esvaziamento
da condição humana em uma situação de tamanha
humilhação. Tratados como vermes, executados à queima
roupa, despachados como lixo, os judeus tornam-se, embora nem todos, inumanos
e inertes, com o espírito caído e o corpo quebrado. Roubam
comida uns dos outros, não movem músculo diante de proximidade
de uma execução, respiram já sem motivos para isso.
Seria possível reagirem nesse estado? Há sentido em sobreviver
já sem nenhuma dignidade? Perguntas incomôdas – e audaciosas
sim – para tal tema.
E há ainda
a especificidade dramática do protagonista. Ela diz respeito ao
papel da arte diante da "banalização do mal",
conforme o termo de Hanna Arendt. A perversidade e suas variações
são ingredientes fundamentais no cardápio cinematográfico
de Polanski. Tendo vivido a infância em um gueto em Cracóvia,
na Polônia, poderia ter dado tom choramingão ao assunto,
motivado por suas lembranças. Preferiu caminho mais distanciado,
que toca em sua própria condição, a de artista criado
sob a sombra do mal, mas até então reticente à uma
aproximação, pelo cinema, de sua trajetória autobiográica.
Pouco importa se encontrou identificação na figura de Spielman.
Interessa como olha para o personagem e para sua relação
com o horror ao redor. O protagonista é salvo mais de uma vez da
morte por ser artista. Em determinado momento, descoberto e poupado por
um oficial alemão, agradece humildemente, sem nenhum rancor, consciente
de que, mesmo naquela situação, o individual deve ser respeitado,
não posto em uma moldura prévia, a de que todo alemão,
mesmos os oficiais, são carrascos do inferno.
Diante do agradecimento,
o nazista responde: "agradeça a Deus". Momento ambíguo.
O personagem se recusa a ver algum mérito em sua atitude e a credita
à uma força superior à sua vontade. Pode-se ler essa
frase de forma menos óbvia. Deus significaria, ali, a vocação
artística. O protagonista seria um predestinado, um ser especial,
um "escolhido", ou seja, superior na hierarquia humana. Teria
de agradecer a Deus por ser quem ele é. Se fosse outro, um sujeito
medíocre, talvez morresse. Como acontece com o restante de sua
família. Não nos esqueçamos que o nazismo era um
projeto estético, embora não apenas, e esse projeto via
os arianos como seres mais aptos para a arte, mas não só
para ela. Pois o pianista é salvo pelo mesmo critério que
condena toda sua família a morrer no campo de concentração.
E não deixa de ser irônico que, por estar vestido de nazista
quando estes já deram no pé de Varsóvia, venha a
ser ameaçado pelo Exército Vermelho. Justamente os soviéticos
que, sob a cacetete de Stalin, esvaziaram a arte russa, sob a alegação
de que, por serem elitistas e não populares, formais e não
diretas, certas expressões eram burguesas.
Essa idéia
de superioridade do artista é dada já na largada. Enquanto
a estação de rádio onde trabalha sofre efeitos de
um bombardeio, o protagonista insiste em continuar tocando seu piano,
como se sua arte estivesse acima das questões ordinárias
da guerra. Arte acima do bem e do mal, sem compromissos com nada, apenas
com ela mesma, como se o mundo fosse um peso, um incômodo a ser
transcendido, do qual se deve fugir. Arte como fuga?
Embora faça
uso de sua condição especial, Spielman sente o peso desse
protecionismo divino e social, pois, a rigor, está sempre com meio
corpo fora do holocausto. Em vez de participar da resistência aos
alemães nos guetos, por exemplo, prefere fugir com ajuda de bons
contatos. Como se o artista, por sua condição elevada, tivesse
de ser poupado, digamos, da luta dos simples mortais. Em outro momento,
diante da iminência de ser flagrado por um SS, finge-se de morto.
Sua postura é mesmo de um zumbi. Só a arte pode voltar a
elevá-lo à condição de homem, atenuar a vergonha
de ter sobrevivido sem arregaçar as mangas e levá-lo a conviver
com as lembranças de uma luta na qual apanhou, mas saiu vitorioso
ao final. São colacações incômodas em um universo
sempre nevrálgico quando se tenta tratá-lo com espírito
crítico. E assim Polanski o fez. Sem exibicionismo, mas com audácia.
Cléber Eduardo
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