O
Articulador,
de Dan Algrant
People
I know, EUA, 2001
Al Pacino é uma figura frequentemente requisitada para emoldurar
personagens espicaçados pelo embate entre seus desejos e as atitudes
decorrentes de certas contingências. Contraste de fundamento trágico,
gerado pela diferença entre intenções e ações,
entre o previsto e o possível, esse traço está na
essência, por exemplo, de seus protagonistas em O Pagamento Final,
de Brian De Palma, e Insônia, de Christopher Nolan, ambos
punidos pelos gestos cometidos pela chamada força das circunstâncias.
Mas também pode ser detectado em trabalhos dos anos 70/80, nos
quais as trajetórias seguidas de seus tipos diferenciavam dos planos
mais ou menos traçados por eles. Seus personagens costumam ser
flagrados durante o pagamento do preço pelo desvios de rumo. A
expressão cansada, o olhar caído, o cabelo desgrenhado e
o corpo alquebrado, como se a vida lhe pesasse no limite do suportável,
dispensam interpretação. Pacino é uma imagem cuja
representação está na própria superfície.
É um signo de desesperos internos manifestados pela própria
moldura.
Em O Articulador,
de Dan Algrant (Nu em Nova York), o filme é dele. Isso não
significa, longe disso, que se resuma a ele. É mais que isso. Mas
todas as cenas e colocações do roteiro passam por seu personagem,
Eli Whurman, um relações públicas dividido entre
organizar eventos cívicos com personalidades, fruto da herança
de sua militância política nos anos 60/70, e apagar incêndios
de clientes célebres da ala "in" de Nova York. Nos primeiros
minutos, Whurman nos é apresentado. Vive unicamente para seu trabalho,
do qual é dependente, apesar de fazê-lo a contragosto. Não
têm resquícios de vida pessoal, anda a urinar sangue e é
movido a coquetel de drogas. Motivo dos suspiros de sua ex-cunhada (Kim
Bassinger), viúva de seu irmão, não se sente à
vontade para namorá-la. Só tem olhos para quem lhe paga.
Em uma de suas missões, para evitar um escândalo envolvendo
um candidato ao Senado (Ryan O’Neal), opositor do prefeito Rudolph Giuliani,
testemunha um assassinato. Está tão entorpecido que, ao
presenciar a cena, sem ser presenciado, acredita ser uma alucinação.
Tende-se a esperar
a partir dessa premissa, pelo hábito alimentado pelas convenções
dos thrillers investigativos, que o herói caído irá
redimir a si próprio buscando a Justiça. De preferência,
com tiros, perseguições em Manhattan, correrias pelas avenidas
e metrôs, um pouco de sangue, tudo montado em ritmo ensandecido.
Esqueça ! Não há carros e corpos em movimento veloz,
as cenas nas ruas apenas mostram a caminhada aos personagens e o fluir
da narrativa é cadenciado, sem os solavancos desse tipo de filme.
Estamos diante de um exemplar diferenciado do gênero. Tão
diferenciado que escapa dele. O Articulador é antes um drama
político-psicológico. Embora recorra à uma investigação,
em torno de uma conspiração com fins eleitorais, importa
apenas o tumulto do personagem, cujo idealismo convive com seu oportunismo,
dando-lhe uma saudável ambiguidade.
Eli Whurman/Pacino
não reage diante da multiplicidade de sujeira do mundo político.
Faz parte dela, concorde ou não. Perdeu o romantismo transformador
da juventude para se tornar um praticante da razão cínica.
Mesmo mostrando, a todo instante, ser de boa índole. Sua peregrinação
pelos bastidores políticos expõe as entranhas de uma democracia
manchada por estratégias questionáveis para se obter objetivos
supostamente louváveis. Nenhum dos lobbys, seja o dos negros, dos
judeus ou da oposição a Giuliani, está isento da
podridão. Esteticamente, é discreto, quase um telefilme.
Deve-se contabilizar a seu favor a utilização sutil e pouco
manipuladora da trilha sonora incidental. Assim como o compromisso com
o ar melancólico e a distância do tom catártico.
Paul Schrader e Stanley
Kubrick são duas lembranças possíveis. Do primeiro
extrai a via crucis necessária para se merecer a possibilidade
de redenção. Não quer dizer que ela venha ao final.
No caso de Kubrick, flerta, às vezes descaradamente, com De
Olhos Bem Fechados. O périplo dos protagonistas dos dois filmes
tem pontos em comum. Em ambos os casos, eles lidam com uma realidade que,
até um certo momento, engana seus sentidos. Vivem em uma espécie
de delírio de olhos abertos. Estão tão atormentados,
por motivos diversos, que não percebem as evidências. Ao
contrário de Tom Cruise, no entanto, Pacino não escancara
a culpa. Se a sente, arquiva. Na imprecisão de seu personagem,
apresentado com poucas luzes e algumas sombras, reside o motor do filme.
E essa impossibilidade de fazê-lo caber em um capítulo de
manual psicológico é fundamental para se tirar o resultado
do balaio de suspenses ordinários produzidos a baciada pelo cinema
americano recente.
Cléber Eduardo
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