Marie-Jo
e Seus Dois Amores,
de Robert Guédiguian
Marie-Jo
et ses deux amours, França, 2002
O novo filme do realizador do estupendo A Cidade Está Tranquila
tem uma série de semelhanças com o anterior (e, segundo
consta, embora o resto de sua obra não seja conhecida no Brasil,
com seus outros filmes também): passa-se na mesma Marselha, conta
com os mesmos atores principais no elenco, e acima de tudo, se ocupa da
vida "pequena" (e por isso mesmo, enorme, no que parece ser o principal
postulado do cinema de Guédiguian) de personagens absolutamente
comuns. Desta vez, porém, ao contrário do filme anterior
que atingia um escopo maior de observação da cidade, o diretor
centra bastante suas lentes em três personagens e num tema: o amor
e suas dificuldades. Ou principalmente uma que possa ser a maior delas:
é possível amar duas pessoas com igual intensidade?
Esta pergunta que
pode parecer simples (só mesmo para quem nunca passou por isso),
é uma das mais lancinantes dentro do modelo de "felicidade" e,
especialmente, do de "bom comportamento" que a nossa sociedade acaba nos
impondo. Porque aqui não se trata do que a ficção
ocidental já passou a considerar como aceitável, ou seja,
a traição do cônjuge quando um personagem se sente
negligenciado por este. E sim de algo muito mais complicado: continuar
sendo feliz num casamento (ou relação), amando profundamente
uma outra pessoa.
A grandeza do filme
de Guédiguian está em duas características, acima
de todas as outras: primeiro a de nos dar a dimensão da angústia
junto com a dimensão da felicidade desta personagem maravilhosa
que é Marie-Jo. Tantos cineastas menos rigorosos buscariam alguma
bengala que solucionasse dramaticamente a situação: um dos
amantes em algum momento se mostra menos "merecedor" daquele amor, um
deles morre (uma solução muito em voga), a personagem descobre
que o que parecia amor era apenas uma atração passageira,
etc. O diretor recusa quaisquer destas saídas simples. O outro
índice de seriedade de sua proposta está no tratamento dado
aos personagens: a forma de filmá-los, de olhar para eles. A delicadeza
dos momentos íntimos, a forma de filmar o sexo como pulsão
vital. Há cenas efetivamente arrepiantes pelo seu índice
de humanidade e maturidade no trato dos personagens: a dança de
Marie-Jo e Daniel (na qual o diretor mostra toda a cumplicidade que partilham
sem necessidade de uma só palavra), as fusões, as conversas
onde Daniel entende o que se passa e não exige reparações
ou decisões, apenas deseja recomeçar, e assim por diante.
Que se diga: o filme
não é perfeito. Há momentos onde os personagens acabam
falando demais (na tradição do preconceito que marca o cinema
francês, ou seria mesmo a sociedade francesa), externando aquilo
que encenado (como na dança) era mais forte. Também há
momentos em que se parece estar dando voltas em torno do próprio
rabo, o que nos passa bem a idéia de que esta questão domina
completamente os personagens, mas inevitavelmente também nos entedia
um pouco.
Mas são problemas
muito menores num filme de um cineasta que filma com o ser humano, sempre.
Problemas que somem de fato quando se vê uma cena onde a personagem
explica ao seu marido que o que mais a fazia sofrer naquela situação
dúbia era aquele caso estar tornando-a tão feliz, e ela
não poder dividir aquela felicidade com a pessoa com quem ela divide
tudo, e que a verdadeira traição para ela estava nisso.
Isso sim é grandeza de humanidade.
São estes bons
momentos que não somente passam por cima do seu final, que num
primeiro momento soa abrupto, mal resolvido e simplificador, como na verdade
permitam que, após algum tempo, percebamos que não é
assim. O drama de Marie-Jo é talvez um dos mais trágicos
da humanidade hoje. Seu conflito (dramaturgicamente falando) é
um dos mais insolúveis de forma coerente, com o que entendamos
como narrativa (ou seja, algo que chega a um fim). O que Guédiguian
parece nos dizer com o seu final é: só há um fim
com a O Fim (ou seja, a morte). Ou mais, com um sacrifício mesmo.
Qualquer outra opção seria simplificadora. Claro que dentro
de uma idéia de narrativa moderna, poderíamos pensar num
final "aberto", não conclusivo (aquela história continua...).
Mas seria, de fato, uma covardia. Seria não admitir que as coisas
chegam sim a um fim. E que, neste caso, ele precisa ser abrupto, e simples
(não simplificador), e até não-naturalista. Porque,
como em todas as tragédias de fato, os deuses precisam intervir
para que cheguemos a uma solução final. Coerência.
Eduardo Valente
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