Madame
Satã,
de Karim Aïnouz
Brasil,
2002
Já há bastante tempo se noticiava a feitura de um filme
sobre a vida de João Francisco dos Santos, o célebre Madame
Satã dos míticos áureos tempos da Lapa – para atiçar
um pouco mais a curiosidade, o realizador do projeto era um estreante.
Pois bem, estréia então o filme, no Odeon da Cinelândia,
bem perto da Lapa. Expectativa sobre o retrato do transformista Madame
Satã? Ora, é melhor esquecer – e ainda bem! Ainda que se
relate alguns fatos importantes da vida de João Francisco ao final,
o filme se abstém de ‘retratar um personagem histórico’,
sabe escapar da armadilha de construir uma ‘versão oficial dos
fatos’. Não há a disposição de biografar um
personagem lendário para que possa figurar nas páginas da
história oficial, o que guia o filme é muito mais uma fabulação
sobre os significados da figura de João Francisco, uma encenação
a partir de um personagem histórico no período em que esteve
mais à margem da convenção social – perdendo o emprego,
sendo preso, apresentando-se como cantor transformista em um botequim,
sendo preso novamente – antes de ganhar o concurso de fantasias do carnaval
carioca e tornar-se uma figura folclórica da cidade (o que, se
não se configura em respeito social de fato, ao menos diminui os
riscos contra certos tipos de violência).
O filme se interessa
pelo período em que João Francisco era apenas um desconhecido
negro, pobre e homossexual, nas décadas de 20 e 30 numa capital
federal em que um certo presidente passou todo o seu mandato em estado
de sítio (Artur Bernardes) e outro disse que "a questão
social é caso de polícia" (Washington Luiz), para
em seguida um ditador (Vargas) oferecer segurança através
da truculência da sua polícia. Oferecer segurança,
é claro, para quem estivesse do lado certo. João Francisco,
pobre, negro, homossexual, temperamental, bom de briga e desconhecido,
definitivamente estava do lado errado. E o filme se bandeia para o lado
dele, sem dúvidas ou pudores – é justamente o interesse
e o carinho pelos personagens que dão grandeza à narrativa
e fazem ser mais do que uma emulação de cinemarginal, uma
incorporação do Exu Sganzerla, como alguns preferiram crer.
Não, de jeito nenhum. Influências na narrativa podem ser
vistas, são milhares, como ocorre em centenas de filmes, mas há
algo além em Madame Satã.
O que o filme busca
é compreender a vida dos personagens retratados na tela – não
há interesse em mostrar uma possível podridão de
caráter da figura marginal, um retrato mondo cane que parece
interessar a um certo tipo de cinema que se pretende maldito. E
essa disposição em viver e compreender personagens é
mais do que uma das qualidades do filme, talvez seja o ponto de partida
para várias outras, como a capacidade de fazer funcionar uma série
de efeitos estéticos, que poderiam parecer despropositados em outro
projeto (certas rupturas de continuidade ou tratamentos de luz), para
criar determinadas situações emocionais à perfeição
– justamente porque há um interesse além do meramente cinematográfico
nestas situações.
Há a Lapa presente,
mas o importante não é a Lapa, o que interessa é
a vida dos personagens que passam por ela, e não este fascínio
estilizador e turístico pelos ambientes que vem acometendo alguns
outros filmes recentes – o lugar vive porque nele vivem pessoas, de fato.
Há uma representação da marginalidade social, há
uma certa estilização da narrativa, mas tudo isso parece
ter um norte, uma disposição e um interesse pela vida que
se vive que em muito diferem da espetacularização de tramas
sub-novelescas ou neo-marginálicas e cinemanovistas que vêm
saltando aos borbotões. Os problemas e encantos dos personagens
centrais não nos são ridículos ou vistos como folclóricos,
são humanos e comuns a quem é posto à margem.
Vale comemorar a atenção
que vem recebendo Madame Satã de um certo público
(ainda que se possa imaginar que tal interesse seja garantido muito mais
pelas personalidades envolvidas na produção que pela qualidade
da obra). Raros têm sido os projetos recentes que tenham alcançado
resultado tão satisfatório em suas intenções
– em se tratando de filmes de estréia, então, nem se fala.
Talvez seja redizer o óbvio lembrar da força do elenco nessa
empreitada – mas, como já se disse, toda a narrativa do filme,
com seus cortes descontínuos e tudo mais, se presta a iluminar
atores e personagens. E Lázaro Ramos, Flávio Bauraqui, Marcelia
Cartaxo e Emiliano Queiroz estão iluminados, com certeza.
Daniel Caetano
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