O
Filho,
de Luc e Jean-Pierre Dardenne
Le
fils, Bélgica, 2002
O que é filmar o ser humano? Parece uma noção simples,
afinal basta ligar uma câmera na frente de uma pessoa e, pronto,
está tudo feito. Certo? De jeito nenhum, porque a câmera
acaba por criar uma intermediação interessante, onde na
maioria das vezes o humano que se revela através dela é
o que está por trás dela. Todo filme é humano, no
que ele revela de um olhar de mundo. Mas, cada vez menos filmes são
sobre o "ser humano", e o coloca na frente dela de forma a criar uma sensação
inigualável de empatia com nossas dores e pequenas alegrias. Pois
esse é o cinema dos irmãos Dardenne: um cinema, acima de
tudo, sobre ser humano.
Há, é
verdade, um "estilo Dardenne" no que se refere à forma do seu filme.
A câmera de uma mobilidade quase inacreditável, sempre grudada
nos seus protagonistas (como se fosse mesmo a realização
do desejo de "estar ao lado" deles). A montagem que interrompe sempre
ações em curso, ou as pega já começadas, mas
que no meio delas não cria de forma algum um "raccord", como se
a dizer que as ações se sucedem de forma caudalosa (sem
começos, meios e fins) mas que no meio delas não há
porque se procurar olhares outros que não o do personagem. Há
ainda um trabalho de atores completamente naturalista, relacionado muitas
vezes a tarefas manuais de trabalho que eles parecem dominar a vida toda.
Há também
um "conteúdo Dardenne", talvez. Ele trata de pessoas de classes
baixas, lutando para se manter com a força de seu trabalho, e lidando
com dramas existenciais que são os mais profundos da humanidade,
sem contudo ter no seu dia a dia o tempo necessário, recursos ou
mesmo um instrumental para lidar com eles nesta forma. Ou seja, personagens
de Dardenne não vão ao analista nem conversam sobre inquietações.
Eles agem, e reagem a elas fisicamente e no jogo dos afetos e repulsas
físicos.
É bom se pensar
nesta forma e neste conteúdo constantes em comparação
com o cinema de Eduardo Coutinho, por exemplo. Ambos servem de prova de
que achar um formato que reflete uma visão do mundo e do cinema
está longe de ser "repetir-se". Quem pode assistir a este O
filho de forma entediada, pensando já ter visto isso antes?
Os personagens (embora nos pareça melhor falar em seres humanos)
dos Dardenne são únicos, e isso está acima de formas
e idéias. Seus dramas são só seus, e por isso mesmo
são de todos nós, assim como acontece em Coutinho.
Neste O filho
há ainda um outro elemento que, se já estava presente em
Rosetta, aqui funciona de forma magistral: como pegamos a história
enquanto ela já se desenvolve (dentro daquela idéia da inexistência
de um "Começo"), demoramos a entender de fato qual o "Drama" que
se desenrola. As relações entre os seres humanos parecem
truncadas, e nos falta sempre alguma coisa para entender em que base elas
se definem. Esta forma narrativa, para essa história em especial,
revela-se um acerto completo, porque o espectador vai se entranhando daqueles
personagens, formando idéias sobre eles que são constantemente
negadas ou mudadas, e quando finalmente nos é permitido entender
o escopo completo do que se desenrola, o efeito é brutal.
Existe uma falsa idéia
de que para se falar da dureza que é este mundo precisemos ser
"sujos", porque "o mundo é sujo". Esta desculpa é muito
usada para diretores que não amam o ser humano, e fazem dele joguetes
de seu mundinho interior afetado (vamos ser diretos, então: Darren
Aronofsky, David Fincher, etc). O cinema dos Dardenne é uma constante
lembrança de que o mundo é duro a beça e não
precisa ser maquiado, mas que há sempre espaço para o que
é o ato maior do ser humano: compreender, aceitar, perdoar até.
Saber que a única saída para a dureza é esta, e que
o mundo é o que fazemos dele, portanto cada um que filme o que
desejar. Se os planos finais de Rosetta tinham um poder único
de sintetizar toda essa visão de mundo e de função
da arte nele, em O filho o golpe parece ser ainda mais fundo. O
duríssimo mundo em que habitam os seres dos Dardenne é muito
mais acolhedor do que tantas ilusões de felicidade, pois há
neles a possibilidade do humano.
Eduardo Valente
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