Japão,
de Carlos Reygadas

Japón, México, 2002

Há grandes filmes simples, em que uma discrição na forma nos permite contudo viajar com força num mundo inédito e inexplorado. Há grandes filmes grandiloqüentes que nos fazem suspeitar das apostas estéticas: era preciso ir tão longe, isso não poderia ser cosneguido de formas menos espetaculosas? Se Japão funciona em apenas um desses lados, é definitivamente o segundo. O primeiro filme de Carlos Reygadas é uma experiência forte, certamente das mais perturbadoras que um primeiro filme já causou na história do cinema. Um parti-pris estético alucinado, um argumento mínimo, uma mestria no domínio da imagem de tirar o fôlego e uma temática certamente longe do gosto do dia (a salvação, o sacrifício). Sim, estamos diante de outro filme-OVNI, que vem se juntar a Eternamente Sua como as duas grandes descobertas e os dois mais surpreendentes filmes exibidos no Festival do Rio de 2002. Dois recortes diversos: enquanto o tailandês Apichatpong Weerasethaul prefere trilhar o caminho das águas claras, o mexicano Carlos Reygadas escolhe um caminho de redemoinhos, não apenas barroco, mas decididamente por vezes arriscando a trilhar o perigoso atalho do rococó. Japón é um daqueles filmes perigosos, ambíguos, onde cada caminho tomado é recebido num misto de maravilhamento e desconfiança: ele certamente pertence à família da grandiloqüência como ascese e salvação (pensamos diretamente em O Sacrifício de Tarkovski e Ondas do Destino de Lars Von Trier), da majetade da beleza (a música, as força da natureza) e da grandiosidade da destruição (a morte, o corpo nu envelhecido, a trapaça).

Acompanhamos desde o começo as andanças de um homem adulto. Ele manca um pouco, caminha com a ajuda de um cajado. O caminhar já permite suspeitar daquilo que se confirma quando temos de seu rosto o primeiro olhar: é um homem destruído pela vida. O olhar devastado é a pura expressão de seus gestos. Ele sai de seu mundo, a sociedade urbana, para ir aos campos montanhosos do México para encontrar a serenidade suficiente com a qual tomará uma decisão muito importante. "Para me matar", responde ele, quando perguntam com que motivos ele se dirige a um vilarejo tão inóspito para alguém da cidade grande. O tipo interpretado por Alejandro Ferretis, aliás uma espécie de duplo da voz do cineasta tão próximo um se encontra do outro, é então menos um personagem do que uma efígie, o rosto pleno do niilismo mais assustador. A regra do jogo é dada logo no começo: um menino tenta matar um pombo (para comer, imagina-se) e, quando esse homem aparece, arranca o bicho das mãos da criança para facilitar-lhe o trabalho. O plano seguinte é fechado no chão, onde caiu a cabeça do pombo, que realiza os últimos movimentos, já fora do corpo. É como senhor da vida e da morte (primeiramente da sua, depois dos outros) que se estabelece o personagem-guia e, logo saberemos, também o filme.

Esse homem vai até um vilarejo muito simples, e lá consegue encontrar acolhida na humilde casa de uma mulher, Ascen (diminutivo de Ascensión que, como ela mesma explica, é a "subida de Cristo para perto dos anjos, ao contrário de Ascunsión, que é a vinda dos anjos para perto da Virgem Maria). Poderia a partir daí decorrer uma troca: a mulher aprende com a dureza do homem e ele se deixa encantar pela simplicidade dos gestos da velha senhora. Nada disso. Permanecem dois universos distantes, um o da singeleza quase escrava de Ascen e a dureza suicida do homem. Ele é o símbolo do homem que decaiu, daquele que poderia ter acreditado, que vive com a terrível lacuna de não conseguir mais acreditar em redenção muito embora seja tudo que ele queira. Prova disso são as poucas vezes em que ele viaja solitário. Nas duas, somos acompanhados pela Paixão de São Mateus, de Bach. Da primeira vez, ele coloca os fones de ouvido e vê desfilarem, seja por qual motivo for, todos os jovens da aldeia. É a chance da salvação pelo futuro, pela inocência. Numa outra, mais sombria, é uma escalada até um topo de morro de onde se vê a grandiosidade da natureza. Junto dela, um cavalo morto. Com um revólver, o homem ensaia, mas não consegue se ver em nenhuma das situações – não tem a alma para incorporar o todo da natureza dentro de si (digamos, para simplificar, que ele não consegue encontrar dentro de si a exuberância que vê na natureza) e ao mesmo tempo não tem a coragem para abandonar definitivamente a vida em prol da outra exuberância, a da morte. Aturdido, o homem cai, desmaiado. A câmera, talvez ensaiando os passos de sua alma, sobe em curvas até o céu, onde as nuvens embranquecem a tela até o alvo absoluto. O cinema vibra.

Depois desse gesto de ascese barrada, o filme fica cada vez mais frio. O homem é levado a gestos desesperados. Num dia enlouquece de bebida e briga com os camponeses, em outro faz com que Ascen tenha relações sexuais com ele. O filme também se coloca numa situação delicada. Reygadas filma, quando da demolição da casa de Ascen, uma cena entre a devoção mística e a exploração pura e simples quando os operários, bêbados, cantam e choram. O impacto é imediato, as sensações, confitantes. Talvez uma tematização tão cara-a-cara do desespero humano possibilite e peça aproximações (e apropriações) do abjeto, talvez não. Em todo caso, a força que se depreende dessas imagens é vigorosa, decididamente.

Filmado num scope em 16mm, o filme ganha uma granulação e uma palheta de cores inacreditável, totalmente a serviço do filme: a claridade e todos os verdes aguados, assim como um certo ar alien da coloração geral nos fazer imergir num mundo opaco, a mesma dimensão de opacidade que tem o protagonista. Entre a incapacidade de se matar, a maior incapacidade de cometer o crime abjeto (fornicar com a velha para satisfazer um prazer perverso) e a total impossibilidade de voltar a viver, o homem pára, preso no topo de um morro.

O último plano do filme, virtuoso e pretensioso, tenta resumir num único take, todo o percurso humano. Um trilho de trem, uma câmera em cima de um carrinho que o percorre. Diversas voltas de 360º ziguezagueiam fogo, sangue e diversos corpos mortos, os dos operários que saíam da casa de Ascen. A música ainda é sacra: o Cantus in memoriam Benjamin Britten de Arvo Pärt. Depois de girar inúmeras vezes, a câmera desce e observa o chão. Nasce um ritmo, onde as pedras no topo da tela se transformam em águas fluidas logo abaixo. O carro freia, e a câmera pára no rosto morto de Ascen, vestida com o casaco do homem. Percurso da vida, relato entre a salvação e a impossibilidade de outra vida a não ser a entrega cega ao mundano (a morte no fim das contas), esse último plano sintetiza à maravilha todas as tensões e as maravilhas de Japón: um filme tortuoso, torturador até, nem sempre com as melhores intenções ou o coração mais aberto, mas desde já uma das experiências de cinema mais fortes, vigorosas e sinceras realizadas nessa arte. Se a beleza justifica e supera o abjeto, está a cada espectador responder. A pergunta é feita com toda a gana por Japón.

Ruy Gardnier