Por um Sentido na Vida,
de Miguel Arieta

The good girl, EUA, 2002


O início de Por um Sentido na Vida, de Miguel Arteta, nos põe em terreno familiar. Está na premissa de vários filmes sobre figuras interioranas com energia em excesso para viver um cotidiano de acontecimentos exclusivamente ordinários. Jennifer Aniston interpreta uma funcionária de supermercado, Justine Last, entediada com a modorrenta rotina de sua vida em uma cidadezinha texana. Ela não suporta a colega feliz da vida, o segurança com a bíblia enfurnada na cabeça, o marido maconheiro e a falta de dias melhores em sua existência. A pobrezinha se acha superior aos matutos. Sente-se deslocada em lugar tão chucro. Nada a agrada por ali. Justine até entende porque, de tempos em tempos, alguém passa fogo nas pessoas. Sonho americano, quando sonhado pelas beiradas, dá bocejos. Ou ataques de revolta. O despertar da letargia inconformada, mas importente, dá-se por meio de um novo funcionário. Com os olhos nunca tirados de O Apanhador no Campo de Centeio, de JD Salinger, o rapaz (Jake Gyllenhall), cujo tédio é superior ao dela, acha-se o próprio protagonista do livro, Holden Caulfield, e tem a ilusão se tornar um escritor tão famoso e recluso quanto Salinger.

Esse sopro de novidade faz o coração da mocinha infeliz dar uma acelerada. Mas não por muito tempo. Mesmo o romântico candidato a romancista, de quem se torma amante, faz o gesto libertário tornar-se uma prisão. Ele é visto por ela como um lunático a ser tirado do caminho. Dividida entre o desejo de cortar as amarras e a necessidade de manter certa ordem para si, Justine envolve-se em circunstâncias espinhosas diante das quais se preocupa apenas em tirar o seu da reta. Quanto aos outros, prejudicados por seus gestos, bem, os outros são inferiores. Por se achar superior, a heroína pode tudo. Inclusive ferir em graus variados, alguns graves, aquela gente satisfeita com a mediocridade. Desprovida de crise de consciência, vacinada contra arrependimentos e pragmática sem limites morais, Justine parece inabalável. Não se afeta nem quando o amigo do marido lhe faz uma chantagem sexual.

Roteiro e direção retratam a personagem sem nenhum viés crítico. Pelo contrário. Colocam o espectador em posição de entender as razões das atitudes da mesma e o convida a rir distanciadamente dos personagens tratados como figuras desprezíveis. Esse tipo de enfoque sobre seres com a síndrome do "posso tudo", parentes distantes e filosoficamente alienados do Raskolnikoff de Crime e Castigo, de Fiodor Dostoiveski, é cada vez mais comum no cinema americano contemporâneo. Em filmes como Cálculo Mortal, de Barbet Schroeder, banal refilmagem de Festim e Diabólico, de Alfred Hitchcock, ou em O Buraco, de Nick Hamm, os dois protagonizados por adolescentes selvagens e perversos, também se mostra a morte dos parâmetros éticos. Por alguma razão qualquer, vaidade ou amor, tudo torna-se permitido. Em uma sociedade mediada apenas pelo consumo e pelo prazer, com enorme desprezo pelo sentido de comunidade e acometida frequentemente por assassiantos em massa, alguns protagonizados por moleques sem limites, a liberdade irresponsável gera comportamentos degenerados.

Friedrich Nietzsche espalhou a idéia, um dos pilares da modernidade, de que devemos ir além do bem e do mal. Doistoievsky já havia transformado esse conceito em literatura com Crime e Castigo. Na gênese desses heróis modernos, está o narrador de Notas do Subterrâneo, livro imediatamente anterior de Dostoievsky: "Estou firmemente convicto de que boa parte da consciência, qualquer que seja, na verdade é uma doença". Ao escrever isso, porém, ele revela consciência. É um doente consciente de sua enfermidade. Um anti-herói moderno cuja natureza distorcida é creditada às distorções de sua época e sociedade. Degrada-se a si e aos outros, mas é incapaz de sofrer. "O tédio me esmaga", confessa. E também o move e o imbobiliza.

Já o descendente desse homem-subterrâneo, como o descrevia Dostoievsky, é um super-homem arrogante. Nas palavras de Malcolm Bradbury, autor dos ensaios de O Mundo Moderno, esse novo herói acha-se um ser excepcional, com o direito de cometer qualquer ato livre, em nome da auto-libertação. Exatamente como faz Justine, embora não de forma premeditada, conceitual, mas agindo conforme a circunstância, na base do improviso. Ou seja: uma heróina moderna alienada da natureza de suas ações.

Remeter a fontes tão nobres não seria gastar muita munição com um filminho de fachada aparentemente sem grandes pretensões? Talvez. Mas é inegável que, conscientemente ou não, o filminho é uma derivação, digamos, de modelos do século XIX, fundadores do pensamento moderno. Mesmo sendo uma derivação sem consciência disso. Típico sintoma de um cinema que, incapaz de detectar a origem do mal estar de sua época e cultura, opta por emitir risinhos que, a bem da verdade, apenas ajudam a ampliar esse mal estar.

Cléber Eduardo