Dívida de Sangue,
de Clint Eastwood


Blood work, EUA, 2002


O que notamos já nas primeiras imagens de Dívida de Sangue é que Clint Eastwood parece ter aproveitado uma oportunidade para relaxar. Antes de qualquer outra coisa, trata-se aqui de uma série de pequenas variações em cima de elementos que o cineasta já trabalhou em outros filmes, o que não significa que seu trabalho seja desleixado ou sem vigor; porém, certamente não estamos diante de uma obra prima como Os Imperdoáveis ou Um Mundo Perfeito. Se o cineasta não avança em relação ao seu projeto cinematográfico, ainda assim somos brindados com alguns belíssimos momentos e uma mise en scène de rara precisão.

Chama especialmente a atenção o conjunto de personagens que circulam ao redor de Terry McCaleb (Eastwood). Tem-se a impressão que o diretor decidiu mostrar uma face da população norte-americana que o cinema por lá tende a excluir (ou relegar a uma espécie de "cinema étnico"): ele é contratado por uma latina, a policial responsável é uma negra, seu vizinho é um auto-proclamado perdedor. O próprio McCaleb é um velho safenado muito distante do glamour de outros heróis interpretados por Eastwood. Mais importante, Dívida de Sangue se propõe a apresentar estes personagens num contexto comunitário, e o filme se torna maior justamente nos momentos em que este aspecto sobressai.

Os problemas do filme começam justamente quando a trama de caça ao serial killer se desenvolve. Se por um lado a direção segura de Eastwood nunca deixa de atrair o interesse, de outro algumas das cenas mais ligadas à trama parecem estar lá só para bater ponto, ganhando força só quando ajudam a realçar alguma idéia do diretor (as cenas com o vídeo dos assassinatos, por exemplo). Ainda assim há boas idéias, como a perseguição que termina com Terry tendo seu ataque cardíaco logo no início do filme, ou a forma com que a relação entre ele e o assassino se desenha, onde o policial é obrigado a se confrontar com o fato de só estar vivo porque o assassino matou duas pessoas.

O que fica, porém, são os pequenos momentos e gestos que pontuam todo o filme: à certa altura uma criança confrontada com uma série de nove números - que o assassino vinha deixando para a polícia há anos sem que nenhum especialista conseguisse decifrá-la - nota que está faltando o número 1. O grande mistério de Dívida de Sangue é de tamanha simplicidade e evidência que somente um "olhar inocente" poderia localizá-lo. Da mesma forma, são nas coisas mais simples que reside a força do filme, na precisão de alguns enquadramentos, numa rápida troca de olhares ternos entre Terry e a policial, em sua falta de jeito ao conversar com uma viúva ou na preocupação de sua médica. Um Eastwood menos impressionante que a maioria dos seus filmes recentes, com certeza, mas ainda assim de um frescor cada vez mais raro no cinema contemporâneo.

Filipe Furtado