Tiros em Columbine,
de Michael Moore

Bowling for Columbine, EUA, 2002


Vamos tirar logo do caminho uma série de questões, então: o que Bowling for Columbine faz de francamente errado? Primeiro, ele possui um grave problema: para um filme de "tese", este não parece ter muita certeza de qual é a sua. A argumentação palavrória, excessiva e frenética de Michael Moore muitas vezes parece estar tentando jogar uma nuvem de fumaça na frente deste simples fato: ele não tem muita certeza do que está tentando dizer. Por causa disso mesmo, tantas vezes ele parece estar chegando a uma conclusão (ou a uma pergunta, o que sempre pode ser mais interessante), e de repente, como o cachorro com seu próprio rabo, ele simplesmente parece perder o foco de atenção, e corre para outro ponto, talvez mais brilhoso ou que faça um som atraente, mas certamente que não é aquele que ele parecia estar perseguindo.

Este é, disparado, o principal "problema" (se vemos a análise cinematográfica por este enfoque) do filme. Mas não é o único. O egocentrismo de Moore também aparece como questão. Sua disposição em tomar a frente de seu próprio filme certamente possui um quê de corajosa, e de francamente confrontadora (pensamos por exemplo, no recente filme de Vladimir Carvalho, Barra 68, onde o diretor não teve a capacidade de confrontar seu "antagonista" pessoalmente, e usou a narração em off para isso), mas também possui um orgulho excessivo que seguidamente o coloca "acima" de quem ele entrevista, o que incomoda sempre. Ou, poderia se falar ainda da tendência a institucionalizar os seus entrevistados, quando assim se deseja. É no mínimo conflituoso querer "desestigmatizar" Marilyn Manson, dando uma face humana a um "roqueiro gótico", e ao mesmo tempo tratar um policial ou um RP de uma empresa como títeres de um sistema, desumanizando-os. Ou ainda levar questões com as contra Charlton Heston e K-Mart ao ponto de um certo "heroísmo" (embora, de tão escancaradamente picareta, não deixe de ser atraente).

Ou seja, Bowling for Columbine é um filme cheio de defeitos graves, devendo ser ignorado, certo? De forma nenhuma. Porque, cheio de contradições como é, os seus pontos de interesse parecem ganhar ainda mais força. Uma acima de todas: é um filme que precisava ser feito, e o que mais se deve pedir de um filme do que isso? Numa sociedade como a norte-americana, onde as vozes dissonantes são abafadas por uma espécie de "contrato social" democrático e uma crença na sua própria superioridade indiscutível enquanto nação (ao invés de uma ditadura opressora, que automaticamente leva a um aparato de rebelião tão institucionalizado quanto o de repressão), que se eleve um "grito" como o de Moore é essencial. E que seja um grito tão caótico, exagerado e muitas vezes equivocado, parece central. Porque a primeira coisa que se precisa é chamar a atenção, fazer ver com que entre os dois pontos de vista (o dominante e esta "oposição") precisa haver um meio termo possível. Não é tempo de ser ponderado e razoável em sua aproximação, porque não é assim que o "adversário" (sendo o cinema de Moore tão confrontacional, falemos nestes termos, e pensemos no rosto de George W. Bush como encarnação deste conceito) se coloca. Qualquer argumento menos "barulhento" se perderá frente aos gritos deste outro lado. Há momentos de ser ponderado, e este não é um deles.

Outra questão essencial do filme de Moore é ainda mais simples: ele é divertido. Tornar um documentário uma obra "popular" (vamos já usar o conceito ao mesmo tempo que avisamos quão complicado ele é) é extremamente louvável hoje. Chamar a atenção de platéias para a discussão de idéias e da realidade, e fazer com que isso aconteça quase imperceptivelmente enquanto se diverte o espectador, mais ainda. O filme de Moore consegue ter 120 minutos de argumentação pesada, e ainda descer extremamente fácil. Claro, esta facilidade é parte da prova de que seus argumentos de fato não se completam "teoricamente", mas se assim o fizesse também é fato de que ele estaria passando para platéias ínfimas na TV Educativa, e aí cumprindo qual função exatamente?

E o que não se pode negar nunca é que há sequências simplesmente geniais no filme de Moore. O desenho animado que resume a História dos EUA dentro da idéia do medo, por exemplo. Algumas inserções cômicas funcionam perfeitamente (como a menção ao programa de TV "Cops" ou a invasão das casas no Canadá) e algumas entrevistas levantam idéias efetivamente relevantes (como a com Marylin Manson, ou aquela com um procurador americano). Por tantas vezes quanto o filme parece perder o foco, quando ele o encontra suas idéias são instigantes. A questão da cultura do medo nos EUA como forma de dominação social, a fascinação pelas armas e seus reflexos sociais, a leitura do macro (atuação política no mundo) como reflexo do micro (a crueldade das pequenas violências).

Em suma, Michael Moore fez um filme que não se deve ignorar. Que se deve discutir, criticar, defender. Mas, quanto ao qual devemos nos posicionar. Não se pode falar isso de muitos filmes hoje em dia.

Eduardo Valente