Códigos
de Guerra, de John Woo
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Windtalkers, EUA, 2002
Aos que acreditavam que o cinema de John Woo havia se pasteurizado com
Missão: Impossível 2 ele responde com este belíssimo
Códigos de Guerra, seu último filme que, ao lado
de A Outra Face, se apresenta como o mais intimista de seu período
norte-americano.
Os
que exigem que o cinema esteja sempre inventando a roda (invenção
quase invariavelmente arcaica, diga-se de passagem) podem censurar certas
convencionalidades do roteiro, mas vale notar que, sendo Woo um cineasta
cujos melhores momentos sempre estiveram relacionados a uma ligação
íntima com o melodrama de um Sirk ou Minnelli ou com a ferocidade
de um Peckinpah ou um Aldrich - ou seja, com uma extensa tradição
do melhor que o cinema norte-americano de estúdio já produziu
-, as tais convenções encontram-se de acordo com
a proposta de releitura de um gênero. E que o trabalho de Woo aqui,
como em todo a sua obra, é de dar prosseguimento a uma tradição
que é sua própria profissão de fé.
Um
momento destaca o dominio que o diretor tem sobre este material: um soldado
americano vê uma criança japonesa chorando e oferece a ela
uma barra de chocolate. Todo um repertório de filmes de guerra
faz o cinéfilo esperar pelo óbvio, que a criança
se acalme ou simplesmente recuse o gesto do soldado; mas não com
Woo, onde a criança simplesmente aceita o chocolate e segue chorando.
É assim que, no cinema de Woo, o usual dá lugar à
sua própria subversão, e desta maneira respeitar uma série
de códigos e determinações de uma história
de cinema não necessariamente significa seguir à risca um
repertório; é preciso personalizar e problematizar o gosto
pelo clássico, enfim.
John
Woo já tinha filmado a guerra em Bala na Cabeça,
um de seus filmes mais incisivos e menos populares, e em Códigos
de Guerra novamente a violência não ganha o encanto de
seus outros trabalhos (apesar de haver muito o que se admirar na precisão
com que o diretor coreografa complicadas cenas de combate). Há
pois algo de essencialmente "fulleriano" nesta atitude e que
reflete uma honestidade do diretor que em outros filmes, por conta justamente
do trabalho de estilização da ação filmada,
é ocultada pelas freqüentes seqüências em slow
motion e pela genialidade que o diretor confere a estas seqüências.
Pois os soldados de John Woo, como o próprio diretor no curso de
carreira, são apenas homens que receberam um trabalho a fazer e
tentam se virar como podem para cumprí-lo. Este trabalho inclui
matar outros soldados e em alguns casos o próprio companheiro e,
cedo ou tarde, cada um será obrigado a se confrontar com as conseqüências
éticas dele.
"Eu
só estava cumprindo ordens" repete incessantemente para si
mesmo o sargento Joe Enders (Nicolas Cage). A sua última ordem
consiste em proteger um soldado navajo (Adam Beach) responsável
por decifrar um código de comunicação. A ordem inclui
também matá-lo caso se torne uma impossibilidade impedir
que ele caia nas mãos do inimigo.
Estabelecida
a situação, o filme se tornará uma crônica
da relação entre os dois homens, não muito distante
de outros filmes de Woo. A diferença aqui é que há
uma distinção no investimento do cineasta nos seus protagonistas,
por conta em grande parte de um apreço dirigido muito mais aos
personagens que na relação entre eles (como ocorre em Alvo
Duplo, A Outra Face, etc). Esta identificação
é especialmente verdadeira para com Yazhee, o navajo, um estrangeiro
em meio aos fuzileiros americanos. Em uma cena brilhantemente executada,
ele chega realmente a vestir o uniforme japonês para enganar o inimigo.
À primeira vista o navajo e o japonês são iguais;
as aparências, como sempre em Woo, enganam.
Os
navajos entre os fuzileiros são constantemente descriminados, e
mesmo Enders não consegue deixar de ver com certa desconfiança
elementos de uma cultura que ele não entende. Yazhee, por sua vez,
parece estar sempre buscando uma aceitação: ele aprende
a fumar, jogar pôquer, seu filho se chama George Washington, etc.
Quando esta vem é muito mais pela personalidade de Yahzee do que
por ele ter se mostrado um bravo guerreiro (como na maioria dos filmes
de guerra). Estamos, de certa forma, passando sim por um filme que dialoga
bastante com o hoje: à certa altura um soldado racista se lembra
de quando seu avô falava em caçar índios como alguém
pensava em caçar coelhos, concluindo num "quem sabe em 50
anos nós estaremos sentados à mesa com os japoneses, comendo
as comidas deles, bebendo saquê e pensando em como caçar
outra raça".
É
numa situação similar às de Enders e Yahzee, quando
vemos dois soldados tocando flauta (um navajo) e outro tocando uma gaita
(um branco), que Woo aponta a necessidade de conjulgar nossas tradições.
É deste empenho que surge toda a beleza de Códigos de
Guerra.
Filipe
Furtado
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