A
Viagem de Chihiro,
de Hayao Miyazaki
Sen
to Chihiro no kamikakushi, Japão, 2002
Miyazaki mereceu um Foco na seção dvd/vhs aqui na Contracampo
há algumas edições, quando acabara de ganhar o Urso
de Ouro em Berlim. Era a primeira vez que, no Ocidente, um prêmio
de tal grandeza era dado a uma animação: no caso, justamente
este A Viagem de Chihiro cuja trajetória de sucesso o torna
o primeiro Miyazaki a ser exibido em cinema no Brasil. Para um Festival
que não costuma passar filmes de animação, a escolha,
ainda que fácil, foi muito acertada. A Viagem... é
um filme belíssimo, no melhor estilo de seu realizador.
Chihiro é uma
menina de 10 anos, em viagem com seus pais para uma nova cidade; no caminho,
porém, eles se perdem – esta ainda não é a viagem
de Chihiro – e acabam chegando a um lugar que parece um parque temático.
A aparência de abandono desaparece quando os pais da menina, guiados
por um cheiro delicioso, encontram em uma das dezenas de lojas que cercam
o lugar, praticamente transformando-o em um labirinto, iguarias apetitosas.
Eles então, mesmo sem saber a quem pertence a loja, começam
a devorar tudo; Chihiro, assustada, não come nada e observa seus
pais se transformando em porcos, porcos nojentos e vorazes: aquela comida
havia sido preparada para deuses, sendo absolutamente vedada para humanos,
é o que lhe explica um menino um pouco mais velho que ela. Aí
começa a tal viagem, uma viagem fundamental, primordial: a menina
está sem seus pais e precisará, em um lugar estranho, conquistar
a passagem de volta, aprender e conseguir voltar para eles. Ela precisa
crescer. O lugar em que está aprisionada é uma casa de banhos
freqüentada por deuses e administrada por uma velhota assustadora,
Yu-baaba, que rouba de cada um de seus empregados aquilo que lhe é
mais próprio, de modo que esses fiquem ali, escravos dela. Ela
lhes rouba seu nome; é aí que Chihiro, um ideograma a menos,
vira Sen. Seu amigo, o menino que na verdade também é uma
figura desse estranho mundo, Haku, diz a Chihiro que sua única
possibilidade de salvação é não esquecer jamais
seu nome. E é aí, entre altos e baixos, tendo que trabalhar
duro para Yu-baaba, que Sen/Chihiro, tem que aprender a viver.
A Viagem...,
disse Miyazaki, é um filme para meninas de 10 anos; nele, elas
podem ser Chihiro, surpreendida em um mundo onde bem e mal, ao contrário
de outros tipos de filmes infantis, não existem em separado. Um
mundo, aliás, onde não se pode apontar bem e mal, mas ações
e interesses. É nele que a menina mimada – as cenas iniciais dela
no carro dos pais indicam isso – precisa aprender a se virar; no final
(feliz), quando ela finalmente consegue voltar para seu mundo e sua família,
foi ela que mudou, não o mundo. A casa de banhos de Yu-baaba continua
no mesmo lugar. Yu-baaba, aliás, mesmo sendo antagonista, não
é uma vilã no sentido exato do termo. Chihiro então
cresce, aprende que vida não é estar debaixo da saia de
sua mãe e o mais importante, talvez: passa por tudo isso e continua
Chihiro, não se torna Sen.
O mais impressionante
de tudo, porém, é o mosaico de cores e formas que Miyazaki
criou, que transformam A Viagem de Chihiro em uma experiência
singular. Em seu cinema sempre se foi possível observar um certo
uso da técnica de animação que talvez a justifique
em si, isto é, um uso que a leva até seus limites, até
suas últimas conseqüências. A casa de banhos em que
Chihiro trabalha e as figuras que passam lá são de uma riqueza
visual única, uma riqueza que não compromete delicadeza
ou beleza. Em cada plano de seu filme Miyazaki extrai da animação
toda a sua potencialidade, faz uso com todo o seu poder de fascinação
que cria mundos e seres inimagináveis, terríveis, lindos.
A preocupação
com o silêncio existente entre as pessoas e o mundo também
está lá; um dos deuses que se vai banhar na casa de Yu-baaba
é, na, verdade, um rio poluído. Haku, o sempre amigo de
Chihiro também é espírito de um rio, este drenado
para a construção de edifícios. Nada disso, porém,
como é marca de Miyazaki, os transforma em coitadinhos ou em vilões
os seres humanos. Em Miyazaki, sempre, o que vale é ser o que se
é, é aceitar isso e obter a partir daí o máximo.
No final, é Haku a grande conquista de Chihiro, e a conquista de
sua amizade a traz de volta; é importante lembrar que é
ele quem diz à menina, lá no começo, que crucial
era que ela não se esquecesse jamais de quem ela era, que não
se esquecesse jamais de seu nome.
Juliana Fausto
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