Arca
Russa,
de Alexandr Sokurov
Ruski
kovcheg, Rússia, 2002
O vagar do personagem começa após um "acidente não
especificado" - uma ruptura histórica? - que esvazia parte
de sua identidade e de sua memória. Ele é apenas uma voz
sussurante e sem imagem, como a dos narradores fantasmagóricos
de Aleksandr Sukúrov, sempre no limbo entre o "ter sido"
e o "continuar sendo", sem noção de seus lugares
no mundo, sem consciência de si próprios e de seus contextos,
perdidos em uma existência sem sentido. Assim começa Arca
Russa. Com um personagem perdido, em estado de confusão, sem
classe definida, sem ideologia aparente, apenas um ser sem imagem.
"Abro os olhos
e não vejo nada", diz o narrador, cujo ponto de vista será
sempre o da câmera. "Onde estou?", pergunta-se. Pela roupa
dos oficiais, crê estar no século XIX. Ela vaga pelos corredores
do Museu L´Hermitage, em São Petersburgo, e se perde nos s labirintos
da História, em uma memória coletiva criada pela classe
dominante, a czarista, na qual não sabe qual é seu papel
naquela encenação. História como um teatro, representação/recorte
da realidade. O narrador interage com os quadros ali expostos, como se
fossem seres vivos (não são?), de modo a construir, pela
soma dos fragmentos pictóricos, um processo artístico-histórico,
ensaiado, em registro mais metafísico, em Elegia de Uma Viagem.
Entremos logo na questão
do uso do plano-sequência de mais de hora e meia de duração,
viabilizado por uma tecnologia digital especialmente elaborada para isso.
São mais de 300 anos de História e de Arte – sem fronteiras
entre uma coisa e outra - sintetizada em 30 e tantas salas do L´Hermitage.
O museu torna-se um divã de um país. Todos os tempos convivem
em único espaço, no qual o passado faz parte do presente,
pois eternizado pela Arte e pela História, mais uma vez sem fronteiras
entre uma e outra. Daí a opção pelo plano-sequência,
pela imagem sem cortes, pelo fluxo contínuo, pois, por trás
do impressionante e bem executado desafio técnico, existe uma pertinência
estética, em sintonia com um conceito anterior à forma:
a da convivência dos tempos em todos os tempos.
Há quem veja
nesse procedimento algo de reacionário e manipulador. Planos sem
cortes revelariam apenas um ponto de vista. Mas o corte é menos
manipulador e tendencioso? Para além do conceito, a prática,
tecnicamente, resulta primorosa. A iluminação varia de acordo
com o ambiente. As imagens alteram a percepção de profundidade
e perspectiva, ora aproximando o fundo da cena, ora distanciando-o do
nosso olhar. Muito se questiona se não é mesmo um único
plano-sequência, se quando a câmera fecha em uma luva, ou
passa por trás de uma pilastra, não haveria um corte. Importa
mesmo? Não é o efeito que vale ser avaliado? Pois a fotografia
de Tillman Butner, com ou sem corte, gera efeitos interessantíssimos.
E em sintonia com a proposta.
Arca Russa
é coerentíssimo na obra de Sukúrov. A eternização
do passado pode ser identificada, em uma chave mais espiritual e menos
político-factual, também em vários outros momentos
sokurovianos. A morte permanece vida, na lembrança e na dor dos
que permanecem vivos, em Dolce e Mãe e Filho. Em
Elegia Oriental, filma-se a morte, por meio de uma alma desgovernada
(como todo narrador típico do cineasta), mas se especula, essencialmente,
sobre o sentido da vida. Tudo é vida em Sokurov. Dos museus aos
fantasmas. Seu conceito de História - e não custa lembrar
que o diretor era professor da disciplina - é banhado na metafísica.
Não parece
ser casual que, com sua formação e a paixão pela
literatura, optou por se expressar no cinema. Em vez de apenas dizer,
ou analisar, ou concluir, como nos livros (históricos ou de ficção),
deixa questões em aberto. Exibe pelo que está fora do quadro,
fala pelo silêncio, revela pela omissão e conclui com ausência
de conclusão. O cinema é sim a arte da superfície,
mas também pode, ao passar pela superfície da imagem, vislumbrar
o invisível e o indizível. Até porque, em vez de
explicar, Sukurov especula. Sua opção é pela sombra,
não pela luz. Isso talvez explique a prática habitual de
recolher as cores – em vídeo ou película – para acentuar
o que está por trás delas.
E a plasticidade é
algo muito comentado quando se fala de Sokurov. Seu fascínio pela
pintura, às vezes, rende certa confusão. Tende-se a vê-lo
como cineasta pictórico. Não. Sokurov não transforma
o cinema em pintura, como algumas retrógadas experiências
estéticas, mas sim a pintura em cinema. Há uma larga diferença
nisso. A pintura é fragmento de vida para o diretor. É História.
Eternização de um momento, síntese de um mundo. Algo
vivo, a ser questionado, com o que se dialoga. No cinema, ela se move.
Faz o tempo se tornar personagem, fala e indaga sobre qual a razão
de tudo. Sem respostas
Voltemos à
Arca Russa. Apenas um homem enxerga o narrador e vem conversar
com ele. Fala russo, mas é francês, aparentemente. Esse personagem
ataca a mitificação dos tiranos russos, em especial Pedro,
O Grande, mas também é fascinado por essa tirania. O russo-francês
será um guia pela excursão pela Rússia pelo L´ Hermitage.
Sua binacionalidade é metafórica. Ele representa o conflito
de identidade da aristocracia e da arte russa, com um pé na tradição
local e outro nos ventos soprados da Europa. Essa obsessão por
fazer parte do universo europeu, sem deixar de lado a xenofobia, é
um traço russo muito abordado pela literatura do país, principalmente
por Turgueniev, com sua investigação sobre o caráter
nacional, a tal russalidade. O guia insiste: "os russos estão
sempre a copiar, não têm idéias próprias".
A russalidade aristocrática seria um híbrido esquisofrênico,
que busca sua identidade nas identidades dos outros. Pois intereressa-lhe
pertencer ao universo aristocrático, não aos limites culturais
de um país à margem do centro civilizado.
Mas este é
um filme que cultiva as dúvidas. A História é turva.
Vê-la com nitidez seria manipulação e reducionismo.
A câmera subjetiva assume a condição de um ponto de
vista, de uma verdade subjetiva, anti-platônica, quase nietzschiana,
que busca uma perspectiva, não um núcleo de verdades absolutas
que faz tudo caber em um molde. O tom de lamento ao se olhar para a pompa
czarista perdida talvez diga menos de um espírito saudoso e mais
de uma reação ao cenário cinzento do momento atual
e aos anos pouco coloridos do sistema soviético. Não é
um filme profundo, no sentido de seu mergulho vertical, mas tem longo
alcance horizontal, abarcando uma série de campos. Arca Russa
abre portas em vez de fechá-las. "Estamos condenados a navegar
sempre", conclui o narrador ao final. Como em boa parte do cinema
sokuroviano, fala de um navegar sem ter bússola como parâmetro,
pois o passado, induz o diretor, não é necessariamente farol
para o futuro.
Cléber Eduardo
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