Agora
ou Nunca,
de Mike Leigh
All
or nothing, Inglaterra, 2002
Não há dúvidas, estamos num filme de Mike Leigh:
uma série de personagens das classes menos favorecidas passeiam
pela tela vivendo seus pequenos dramas cotidianos, a partir de encenações
que buscam o naturalismo. No entanto, estamos num mau filme de Mike Leigh,
como a trilha sonora irritantemente onipresente não nos permite
esquecer. Leigh joga fora o que havia no seu cinema de sutil em troca
de um retrato de uma vida mais do que triste, trágica. Disfarça
de naturalismo e improviso o que é de fato um ponto de partida
engessado e monocórdio: viver é duro. Tudo bem, Mike, disso
nós sabemos. Mas o que ganhamos por exemplo, ao ver isso estampado
em 3 famílias, quando duas delas são artifícios de
roteiro grotescos para aumentar o efeito de choque e depressão
da primeira?
Seu personagens coadjuvantes
não são pessoas, como Leigh gostava de filmar, e sim títeres
de roteiro de uma nota só (a bêbada, a putinha, a compreensiva,
o velho tarado, etc). Neste contexto, mesmo os atores principais se prendem
a tiques e repetições absolutamente óbvios e equivocados
(se Timothy Spall passasse a mão pelo cabelo mais uma vez, eu acho
que não aguentava), tornando seus personagens figuras chapadas,
nem um pouco "vivas". Presos num círculo de acomodação
e depressão sem saída, e beirando o absurdo, pois construído
para parecer inevitável, quando é tudo menos isso.
O filme passa uma
hora e quarenta batendo na mesma tecla (não só narrativamente,
mas auditivamente, como mencionado sobre a trilha): a vida é dura,
mas pode sempre piorar, e vai. Queremos negar aqui a "verdade universal"
desta frase? Não exatamente, embora ela seja sim discutível.
Mas, peguemos como exemplo o cinema dos irmãos Dardenne: a vida
de seus personagens é absurdamente dura, sempre. Mas o cineasta
não precisa manipular o espectador ao extremo da piedade pelos
pobres personagens para afirmar isso. E nem precisa criar um pacto sádico
com quem assiste de chafurdar no patético destas vidas. Porque
nenhuma vida, até prova em contrário, é apenas patética.
E nenhum ser humano é apenas uma coisa ("a bêbada", por exemplo).
Como está, Mike Leigh faz uma versão light do filme de Ulrich
Seidl, Dias de cão, possivelmente o mais grotesco exemplar
de cinema lançado em 2001.
Quer dizer, há
uma diferença: como que por milagre Leigh resolve em sua meia hora
final mudar tudo o que afirmava. Trata-se de um golpe ainda mais covarde
talvez (a redenção pelo limite do sofrimento), mas pelo
menos indica algum carinho pelo ser humano. E, não custa notar,
nessa meia hora até mesmo estilisticamente ele renega o filme que
fazia até ali: não há trilha sonora, não há
a presença dos coadjuvantes, as cenas e personagens mudam o tom
de sua encenação para algo bem mais próximo do improviso
de Segredos e Mentiras (este sim um grande filme). Em suma, é
como se Leigh nos desse a mais óbvia conclusão humanista
possível ("a vida é dura sim, por isso precisamos apoiar
uns aos outros"). Mas antes esta conclusão óbvia do que
o cinema de Seidl onde a vida é um nojo e não tem jeito.
Trata-se de um filme
mais do que apenas óbvio e desnecessário: é realmente
preocupante. Leigh parece acomodado numa fórmula, sendo que esta
fórmula torna-se simplesmente estética, e servindo a uma
ética das mais complicadas. Que nos seus próximos filmes
ele possa nos dar só o que vemos aqui nos 20 minutos finais, porque
o resto é muito, muito fraco.
Eduardo Valente
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