O Padre e a Moça



Helena Ignez e Paulo José em cena célebre de O Padre e a Moça

Joaquim Pedro de Andrade: O PADRE E A MOÇA; ex-NEGRO AMOR DE RENDAS BRANCAS. 25 milhões em duas semanas no Rio e mais violentos bate-bocas: "absoluto fracasso", "besteirada hermética", "chateação" e ainda, "lindo", "cem vezes superior a Antonioni!", "melhor do que o poema de Drumond" (que inspirou Joaquim). De imediato, esclareço: como O DESAFIO & A FALECIDA, O PADRE E A MOÇA não escapa das sabotagens da crítica oficial e queimações da turminha de avant-premières. Sei porque assisti a duas no Rio e já percebo as reações em São Paulo. Fugindo destes bitolamentos todos, pergunto: o que há mesmo com a fita que vai a Veneza e já garantiu colocação comercial na França e Alemanha?

É muito fácil chegar e dizer que a música de Carlos Lyra é ótima, que Helena Ignez e Paulo José são dois atores surpreendentes e que a fotografia requintada, em estilo de gravura, só poderia ser de Mário Carneiro. Precisamos, aqui no Brasil, pensar e escrever em termos de cinema; o resto não passa de acidentes exteriores à criação. Este equívoco também acontece com O DESAFIO. Os filmes foram logo dados como "malditos" porque não desenvolvem dramas como se esperava - ou como gostaríamos. Porque são obras tremendamente contidas & despojadas. E porque são exato cinema-de-autor; O PADRE E A MOÇA é a longametragem que o cinema novo vem esperando desesperadamente há 4 ou 5 anos. Como Godard, Joaquim é um "cineasta difícil" para os que estão por fora das novas jogadas cinematográficas e para os que querem ver na tela suas obsessões literárias. É preciso acabar com este mito, aliás, de "cinema maldito". As platéias mais intelectualizadas - tanto da direita como da esquerda - não aprenderam ainda (1966) a ver um filme como fenômeno cinematográfico; ao invés, detêm-se na literatura, na falsa beleza das cenas, nos diálogos imaginosos, e nas espúrias misturas de passado com presente. (Fellini & Zurlini & Cacoyannis - ZORBA, ELECTRA - e na gagazice, por exemplo, de Bergman em O SILÊNCIO). Nada disso tem em O PADRE E A MOÇA, bem entendido. Tentando ser sincero consigo próprio, Joaquim Pedro seguiu o caminho corajoso e marginal de Paulo Cézar, cineasta igualmente tachado de "hermético": ainda não perdemos como se vê, aqui no Brasil, a mania de bolar slogans imediatistas.

AUTODESTRUIÇÃO

Antes de mais nada, eis um filme irrealizado e inibido como o amor de Paulo José e da moça Helena Ignez. E igualmente incompreendido e combatido. É preciso dizer logo. O 2o. longa de J. Pedro é uma empresa autodestrutiva para não dizer suicida. São duas coisas irrealizadas, mas abertas e dirigidas à liberdade total: o amor e o filme. E é a mise en scène que ganha com isso.

Porque ela nasce tão dificultosamente, tão dramaticamente como o namoro fatal. O que interessa não é tanto a descrição do caso amoroso mas comprometer a mise en scène com ele. Nada mais Joaquim Pedro do que este filme estranho. Absolutamente comprometido com o homem e o "décor", o cineasta passa à tela todo o seu famoso acanhamento mineiro.

O TERRA-A-TERRA

Nada de suspense ou emoção diante de uma estória romântica. Somente dolorosa reflexão sobre a velha estória de amor impossível. O autor retira toda possibilidade de identificação com os personagens. Não só com os personagens, mas com este "tipo" de cinema: sabemos de antemão o que vai acontecer em cada cena. O espectador se desespera porque Joaquim filma o cotidiano terrível de uma cidade do interior de Minas. Tudo que a gente não gosta de ver na tela: o filme é impiedoso e caracteriza-se por um sábio distanciamento diante do mundo.

Por exemplo: já sabemos qual o próximo gesto de Paulo José depois de tal diálogo; a resposta curta de Helena; uma leve caminhada à esquerda; a resposta seca do padre; Helena que levanta o rosto, fala e sai; o olhar do padre. Sabemos o possível e o impossível de um amor nascido naquelas condições; desde os primeiros minutos percebemos que o padre não vai poder se conter. Que a população vai revoltar-se contra aquele amor. Que no final eles se unem e vão ter que morrer.

Todo o conflito de O PADRE E A MOÇA não nasce da estória nem dos personagens (estes, psicologicamente mal delineados). Seria simples e fácil demais. Penso que os conflitos vêm da narrativa arrastada, caótica, sofredora, da mise en scène. Do tempo, da duração concreta. É o próprio filme, assim, (e o espectador, diriam as más línguas) que sofre. QUE CORRE O RISCO. Por certo, a obra só pode ser analisada sob este nível: as perspectivas abertas pela fita são tão amplas como as de DEUS E O DIABO & DESAFIO & VIDAS SECAS.

CINEMA BARROCO

Também é preciso dizer que O PADRE E A MOÇA está inteiramente mergulhado na tradição da arte mineira. Isto é, barroca. Não só pelas ligações com o poema de Drummond. Mas por tudo; a lentidão, uma obcecada descrição dos ambientes, a atitude contemplativista do autor diante de um mundo decadente. Por uma clareza do estilo que leva ao mistério e principalmente por certa incompreensibilidade. Há umas cenas entre Helena Ignez e Fauzi Arap, por exemplo, que ninguém entende ou sabe que fazem parte de um flash-back, se não for avisado pelos autores.

UM BRESSON DAS GERAIS

Ao lado de sua formação mineira, Joaquim Pedro é o próprio cineasta mineiro. Portanto: melancólico, erótico, barroco. Barroco, - mas por uma contradição genial, - clássico, depurado, limpo. Não sei se estou sendo claro, mas a verdade é que o filme tem muito de cinema raciniano francês, de Bresson & outros. Tudo pensado, trabalhado: as longas tomadas, a falta de ação, os silêncios intermináveis, enfim, a fossa que corrói toda a obra, combinam-se perfeitamente "numa grandeza artística que nasce da humildade", conforme disse Glauber Rocha num excelente artigo em O JORNAL DO BRASIL. Que continua: "mpõe-se o ato de revê-lo e repensá-lo: ali a tristeza brasileira, o esquecimento (...) tudo isso criado não pelo discurso moralizante mas pela dialética do homem contra décor; aqui, movimentando dois excelentes atores contra o testemunho histórico da decadência (a cidade e as serras), Joaquim Pedro aciona um canto livre do amor, um amor que se faz da tortura e da impotência, da negação e do silêncio". Nesta dialética, a fragilidade & acanhamento vão dar na mesma grandeza de DEUS E O DIABO & O DESAFIO, repito.

Porque, e isto sou eu quem digo, se há os que fazem matéria cinematográfica como respiram, espontaneamente (Walter Lima Jr: MENINO DE ENGENHO; o próprio Glauber; Nelson Pereira dos Santos; Humberto Mauro) há, por outro lado, os que criam a partir da dificuldade, de uma reflexão torturada sobre o ato-de-criação. É o cinema que não se afirma diante do mundo. Que fica num gesto indeciso, entre o apossar-se e o fugir do real, e é este o cinema de Joaquim Pedro, Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl (que formam inclusive, no Rio, um bolinho bem diferente do anterior). O PADRE E A MOÇA: um filme distante e ao mesmo tempo íntimo. Por isto, misterioso. Essa é a mesma força de PORTO DAS CAIXAS, primeira longa de Saraceni e de EM BUSCA DO OURO, documentário sobre Ouro Preto que Gustavo Dahl terminou há pouco tempo.

AGORA É MINAS

Fundamental: O PADRE E A MOÇA é um dos maiores resultados do moderno cinema barroco brasileiro - mineiro ou baiano, principalmente - que vem de Humberto Mauro e vai dar diretamente em Carlos Diegues, Glauber Rocha, Saraceni, Gustavo Dahl, David Neves (que monta uma médiametragem sobre o velho Mauro) e que, num segundo estágio, irá dar em Eduardo Escorel, Carlos Prates Correa, Geraldo Veloso, Antônio Lima, Maurício Gomes Leite (que pensa uma curta passada em ambientes jornalísticos, com muitas bossas e quase só falada em inglês), Geraldo Mairink, Shubert Magalhães e Marcos Antônio Rocha, de Belo Horizonte. Falo barroco mas de barroco moderno, - concreto, objetivo, claro e sem ilusões. Estamos longe, pois, da adjetivação gagá de VIAGEM AOS SEIOS DE DUÍLIA, NOITE VAZIA, O BEIJO por exemplo. Será preciso voltar ao assunto com EM BUSCA DO OURO, de Gustavo Dahl, um dos maiores momentos do cinema brasileiro, que vem definir o itinerário do cinema novo: depois de arrasar com o velho cinema de São Paulo, ir à Bahia e depois voltar ao Rio, o CN vai se instalando e começando uma nova fase em Minas Gerais.

Rogério Sganzerla
(São Paulo, março-abril 1966 - Artes)