Antes de falar do filme, a gente queria falar um pouco da sua carreira artística, como compositor também, como ator... Como foi que você começou, como ator ou compositor? Eu comecei como autor de teatro de revista, escrevendo teatro musicado para o Teatro Recreio, que foi o primeiro teatro que entrei. Fazendo texto, aí é que fui me enfronhando com o negócio de música. Por exemplo, revista tem várias músicas pra fazer, as letras e tal... E naquela época o teatro era um grande apresentador, lançador de música, vinham os compositores pra colocar as músicas deles. Aí eu fui me enfronhando, e comecei. Aí apareceu Custódio Mesquita, fiz uma música com ele, de repente fizemos duas... Isso em ‘33, que eu comecei e só em ‘42 é que eu me improvisei de ator. E com o Custódio fez um sucesso imenso como Nada Além. É, meu primeiro sucesso foi Nada além, ‘38. Aí você entrou em contato com o pessoal da Lapa, nessa época? Eu já freqüentava a Lapa. A Lapa não foi conseqüência, não. A Lapa foi ponto de partida. Porque eu morava perto. Eu com 16 anos já estava freqüentando a Lapa... E protegido por um malandro cuja vida tinha sido salva por meu pai, então ele me protegia, o Felipe Bonitinho. Então ele me protegia porque papai salvou a vida dele. Papai era diretor da Orquestra do Clube do Joá, que ficava em cima, na esquina, e ouviu dois caras combinando que iam fechar Felipe Bonitinho. Quando Felipe Bonitinho chegou, papai saiu do palanque e foi falar com ele: "Vai embora, porque tão querendo matar você". Eu comecei a freqüentar a Lapa, aí eu tava na bilheteria conversando com o pessoal: "Mário Lago, Mário Lago...", e um cara olhando pra mim, eu já tava invocado... Eu quase mandei ele pastar, eu já tava invocado... Aí saiu todo mundo, ele chegou e disse: "Posso sentar aí", perguntou, "Você é parente do maestro Lago?". Eu digo: "sou filho". "Sabe que seu pai salvou minha vida?". E contou a história. E o mais engraçado é que, quando contei isso a papai, ele disse: "não me lembro"... Foi depois daí que eu comecei a freqüentar a Lapa, porque eu era estudante, no Pedro II. Eu conheci então a grande palavra do estudante, que é gazeta, né?... Até fui reprovado por isso. Eu queria mais ficar ali do que no Pedro II. Comecei ali... Papai era de teatro, maestro... Quer dizer, minha vivência em casa era sempre de música, de maestro e tal... E em ‘33, entrei como autor teatral. De autor pra ator foi um passo, ou foi por acaso? Foi por acaso. O Juraci Camargo tinha uma Companhia e eu era muito amigo de Juraci. E eu assistia aos ensaios, que ele ia pro Nordeste e eu assistindo os ensaios. Ele foi, passou dez meses fora e voltou reorganizando a Companhia, e eu assistindo os ensaios. Ele tinha contratado um galã que era bom ator, mas era um galã rústico. E aquele repertório do Juraci, tinha sempre um galã elegante. Ele virou pra mim: "Mário, quer ser ator na minha companhia?" O Ramos Júlio, que era o ensaiador: "inflexão ele tem, porque a gente já dirigiu uma peça dele." E, naquele tempo, o autor lia a peça, foi a minha primeira comédia. "Ele inflexiona muito bem, o resto deixa comigo". E foi assim, sem querer. Eu não procurei ser ator, me chamaram pra ser. Agora, era aquele teatro antigo, né?... E como autor de teatro é que eu entrei no negócio da música. E entrei no relacionamento com compositores que iam lá: "olha tem esse samba, dá pra encaixar?"... Daqui a pouco, estava fazendo uma parceria com Roberto Martins, com Ataulfo Alves. Depois fiquei escrevendo peças com o Custódio Mesquita. E aí foi embora... Custódio era um músico muito sofisticado ... O Custódio era uma pessoa difícil, né?... E, como músico mesmo, era sofisticado. Eu, por exemplo, assisti o Custódio no piano, em 1937, Noturno, que era uma música moderníssima. É moderníssima hoje. Ele disse: "Mário, bota uma letra aqui...". Eu disse: "não, isso é uma peça, uma suite sinfônica, uma melodia muito bonita, pra você gastar com letra, faz um arranjo aí, aproveita isso como um tema de uma pequena sinfonia..." Depois Evaldo Rui botou a letra e eu esculachei ele. Ele cometeu um crime, não era pra botar letra... Mas aí embalei. Eu era ao mesmo tempo escritor e funcionário público, era redator chefe do Departamento de Estatística e publicidade do Estado do Rio. Então eu tinha uma garantia, o direito autoral era... Até que Roberto Martins disse: "larga com isso de ser funcionário público, você acorda todo dia cedo, você vai à Niterói, não sabe nadar, se a barca afundar, você vai morrer afogado...". Mas eu disse, "pelo menos tem uma garantia". Ele perguntou: "Quanto você ganha?", "Eu ganho 600 000 réis". "Então, se você não alcançar 600000 reis com direito autoral, eu completo. Larga esse negócio". Eu, que sempre adorei dormir no mínimo às quatro horas da manhã, eu dormia na barca de Niterói... Aí me larguei mesmo. Depois fui me tornar ator, aí mesmo que eu nunca mais pensei em ser funcionário público. Seu orçamento nunca mais teve problemas? Foi. Quer dizer, não, depois de 64 tive, que eu fiquei dois anos que não me davam emprego, né?... Tinha sido demitido da Rádio Nacional. Procurador de sindicato, tinha feito três greves, participante da PUA, Pacto de Unidade de Ação, comunista fichado desde ‘32, fiquei dois anos sem que me dessem emprego... O negócio foi duro, casado, cinco filhos, mulher sem ter vocação pra bater bolsinha na calçada... Aí foi duro. Fiquei endividado e levei depois cinco anos pagando dívidas. Por sorte encontrei quem acreditasse em mim, que me deixou levantar. Aproveitando agora que você falou da política, a gente queria saber como foi que começou o seu envolvimento? O meu envolvimento com o Partido foi a partir de ‘30. Porque eu nunca fui sossegado... Porque eu vivi no tempo do Bernardes... O mandato inteiro sob estado de sítio, né? É... eu morava em frente à polícia. Eu vi o Conrado Niemeyer ser atirado da janela, era a 4ª Delegacia de Polícia, não era o DOPS. Mas eu vi quando atiraram, eu era estudante ainda. Na época, em ‘26, tinha o negócio da Coluna Prestes. E meu avô, que era meu companheiro de quarto, maçom, libertário, fazia grandes comícios contra o governo na hora da gente dormir... Havia um caldo de cultura. "Abaixo o regime". O governo era contra sempre. E quando entrei para a Faculdade de Direito em 1930, na luta do CACO, era eleição, eu já me prometi e o programa do pessoal de esquerda era que me interessava mais. Até era militante o Francisco Mangabeira, avô desse político do PDT, qual é o nome dele?... Mangabeira Unger? Isso. O Francisco Mangabeira era do Partido. O Francisco Mangabeira, Letelman... E eu comecei a ler marxismo. Comecei militando no Socorro Vermelho, que era a ante sala. Depois fui para a Juventude Comunista. E nunca fui do Partido, nunca assinei ficha do Partido. Fui do Partido a vida toda como sou PT sem ser do PT. Você chegou a participar de atos do Partido ... De reuniões, de aparelhos, o diabo a quatro, fui preso várias vezes. Sempre fui tratado como se fosse do Partido. Sempre foi considerado um comunista histórico. É, comunista histórico sou, mas não do Partido Comunista Histórico. Eu ainda fui do tempo do PCdoB, Partido Comunista do Brasil. Depois teve PCB. Agora é rachado, já não existe PCB. E agora, tem essa frescura do PPS, do Roberto Freire. E tem o PCDdoB, do Amazonas, que retomou a antiga sigla. Escuta, toma café, rapaz!... (Todos tomam café) Mas isso é uma outra história. Vamos falar do filme? O que interessa é o filme. Como foram seus primeiros contatos com Joaquim Pedro? Olha, o Joaquim Pedro, você trabalhar com ele é um presente do céu, como se costuma dizer. Um cara delicadíssimo. E com aquela sinceridade de dizer: "olha, é a primeira vez que eu vou dirigir atores. Eu ainda não tenho uma noção exata do clima do filme, vamos encontrar juntos". Ficamos vinte e um dias em Diamantina, porque tava consertando uma ponte que havia lá pra transportar os geradores, porque não tinha eletricidade em São Gonçalo do Rio das Pedras. Então, a nossa distração era trabalhar o filme. Uma cena do Fauzi Arap com a Helena Ignez, não sei se ela contou, eles levaram cinco dias. No meio da coisa, eles choravam, o diabo a quatro. Não agüentavam mais. Mas isso, eu achei genial do Joaquim Pedro, "eu não tenho uma certeza sobre o clima do filme, vamos encontrar juntos". E esses vinte e um dias naquilo. Fora que, não é porque eu tenha participado, o nível de interpretação é maravilhoso, porque as cenas eram muito discutidas... Quando fomos para São Gonçalo, que estava pronta a ponte, o filme já estava na cabeça de todo mundo, tava todo mundo pronto, o único que tinha medo era o Joaquim Pedro... Como ele tinha a certeza que era a primeira vez que estava dirigindo atores, ele ensaiava, ensaiava, "vamos filmar". Chegava a hora de dizer ação: "Vamos ensaiar outra vez". Mário Carneiro era o diretor de fotografia, um sujeito maravilhoso aliás, um bom humor incrível. Ele sempre dizia brincando: "Joaquim Pedro tem medo de filmar, porque na hora de dizer Ação, ele diz ‘vamos ensaiar outra vez?’...". Um clima maravilhoso. Trabalhar com Helena Ignez, Paulo José, Fauzi Arap... Fauzi Arap é que era meio encucado, porque é... ator de teatro, né? Aquele negócio de teatro, que a peça tá muito tempo em cena, então você vai modificando, cria coisas para o papel. E Fauzi Arap chegava: "Joaquim, eu pensei nisso...", era o terror do Joaquim!... Já tinha sido encontrado o clima da cena. E ele chegava na hora de filmar com mais elementos e dizia: "Joaquim Pedro, eu criei mais isso". Aí ele criou um negócio que Joaquim Pedro não gostava mesmo. E ele era meu companheiro de quarto, o Fauzi Arap. Escuro total, aquele breu, janela de madeira, a coisa toda... E no meio da noite eu sentia aquele dedo me cutucando. E eu fingia que estava dormindo, já sabia o que aquilo queria dizer... "Mário, Mário, Joaquim Pedro não gosta de mim. Joaquim Pedro me acha uma merda..." E lá pelas tantas eu era obrigado a dialogar: "não rapaz, você vê tudo que eu levo, você é testemunha, ele recusa". Cansei de dizer pra ele: "É a primeira vez que ele está dirigindo atores, por isso ele tá assim, assado..." Não adiantava... Filmava no dia seguinte, e no meio da noite eu já sabia que vinha: "Mário, Joaquim Pedro não gosta de mim". Era engraçadíssimo... Porque o Fauzi Arap é ingênuo. Aliás era um clima que eu nunca vi igual. Filmei várias vezes com outros, mas... A começar pelo Joaquim Pedro, Mário Carneiro... Vocês têm que entrevistar ele. A gente já entrevistou por duas horas e meia... Ah, o Mário adora um papo. Ele não contou essa pra vocês? Na hora de dizer ação, que o Joaquim já tinha ensaiado oitenta vezes, e ele queria ensaiar de novo... O Mário era uma beleza de pessoa, era o grande conversador da turma. Muito inteligente, contando toda a história do Cinema Novo, as loucuras dos filmes do Glauber Rocha... E ele contando é cenográfico. Quer dizer, havia um clima de trabalho muito bom. De forma, que a gente não sentia que aquele tempo estava, como dizer assim, perdido. Tinha uma compensação. Foi uma experiência de ator muito boa, eu vinha de teatro antigo, não tinha ensaio de mesa, nada disso. Eu nunca tinha experimentado a palavra improvisação. Eu nunca tinha experimentado essa palavra. De repente chega o Joaquim Pedro, numa cena em que o Paulo José chegava na minha casa. Joaquim Pedro falou: "vamos fazer uma improvisação aí". Eu tremi na base. "O clima que existirá entre vocês". Era o negócio do clima. E nós começamos a improvisar. E ficamos uma hora fazendo improvisação. No dia seguinte, pegamos o texto, o pessoal falou: "as improvisações estavam melhores que o texto". Nós fomos procurando mais coisas. E eu fui no embalo do Paulo José. Foi uma experiência que eu nunca tinha tido. Eu nunca tinha visto geladeira de querosene, nem lâmpada de pilha, nem moinho de água. Tudo isso eu fui conhecer lá. Com cenas incríveis. Eu era um comprador de pedras no filme. Que é uma exploração incrível... E havia uma cena em que eu comprava uma pedra. O Joaquim Pedro, depois de estar tudo pronto, ele disse: "esse diálogo está muito literário, vamos esperar...". Nós íamos sempre na venda do Geraldinho, vendia umas rapaduras em forma de coração, que eram feitas por uma prostituta do local, e todo mundo comia, com absoluta confiança. E um dia chega um garimpeiro, que aparece no filme, pra vender uma pedra. Fomos nos aproximar pra ver realmente como era, que é a coisa mais fria do mundo....O garimpeiro não sabe o valor do ponto, não sabe quantos pontos tem a pedra. E o garimpeiro está preso ali na venda, devendo sempre, ele compra ali óleo, feijão, compra tudo. Então era aquilo: "Tem tantos pontos...Vale tanto, você estava devendo tanto, passa a dever tanto... quer levar mais alguma coisa?" O interesse dele é que o garimpeiro sempre fique preso a ele. Eu nunca tinha visto isso. Eu conhecia de ler... A nossa recepção foi genial, quando nós estávamos chegando na casa em que íamos ficar, saltamos e uma mulher disse: "Não se aproxime ela é venenosa", ela estava matando uma cobra. Tomei local naquele momento... O Raimundo Higino, que era diretor de produção fez um conforto pra nós sensacional. Tinha até banheiro. O banheiro era fora da casa. De noite, você sentia qualquer coisa e tinha que sair da casa... Mas tinha água quente, tinha tudo... Grande diretor de produção, o Raimundo... A alimentação era genial. Uma cozinheira, que depois, aquela mulher, aquela francesa de Ouro Preto, da Pousada de Chico Rei, pegou pra cozinhar. Não sei se ela ainda está viva... Era legal o negócio, os garimpeiros comiam lá em casa. Então, eles não queriam saber de negócio de ficar trabalhando pra Geraldinho. Dane-se o Geraldinho. Eles recebiam dinheiro pra ser figurantes. Não tinha negócio de ficar devendo, recebia dinheiro. No sábado, quando nós íamos pra Diamantina, eles iam junto. Quer dizer, às 6 horas da tarde já estavam todos eles de porre, sentados na porta do hotel, esperando a volta do dia seguinte. Mas foi realmente um trabalho muito agradável de fazer, eu conheci coisas novas como ator e coisas que eu nunca tinha visto... Tinha um garimpeiro chamado Borba Gato. Tomava uns pileques, sumia, de repente aparecia o Borba de madrugada, de pileque, cantando... Era uma gente completamente diferente, o papo deles era difícil.. No interior de Minas se fala assim, fala pra baixo, eles se entendem. Só da boca pra baixo, não se projeta. A gente acabava se entendendo. Inclusive esse Borba Gato fazia um macarrão que era uma beleza, nós íamos pro barraco dele. Essas coisas que eu nunca tinha visto, urbano, né?.. Morava até na Barata Ribeiro nessa época. Nunca pisei chão, nunca andei descalço, porque a minha mãe não gostava. Cheguei ali, tinha que usar bota pra não pisar bosta de cavalo, nem de boi. Passeava de bota o dia inteiro. Andando naquelas ruas escuras com lâmpadas ... Pra mim foi uma experiência sensacional. E trabalhar com um homem feito Joaquim Pedro, que é um cavalheiro, uma gracinha. Você pode errar trezentas vezes, ele diz: "Vamos outra vez. Você pode fazer melhor". Você fazia uma besteira imensa e ele falava "você pode fazer melhor"... De forma que eu briguei uma vez com ele: "posso fazer uma merda ainda maior?"... Foi realmente uma coisa muito gostosa de fazer. Você já conhecia alguém da equipe antes? Não, não conhecia. Conhecia, de ver, uma vez, eu vi o Paulo José, quando fui a São Paulo ver Arena conta Zumbi, e a Dina Sfat trabalhava , e o Paulo José fazendo outra coisa, estava lá fora e aí conheci ele. Foi justamente quando fui ao teatro. Conheci o Lima Duarte e o Paulo José, e só. A Helena Ignez, eu conhecia de nome, o Fauzi Arap idem. O sangue ligou que era uma maravilha. Não sei se é porque éramos poucos, estávamos fechados ali, não podia sair. Mas eu sei que nunca teve um destempero, nenhum... O Mário Carneiro deve ter dito isso pra vocês. Nunca teve um destempero. E estavam três estagiários da Escola de Minas trabalhando com a gente, o Prates, o Werneck, não me lembro do nome do outro. Realmente se criou um clima muito bom, havia debates, conferências com Mário Carneiro sobre Cinema Novo para aqueles novos ali. Nunca estávamos parados. É isso que nos interessa também, ser um filme especial com essa convivência de vocês, nesse lugar onde não tinha nem telefone. Só havia telefone quando íamos à Diamantina. A primeira experiência de isolamento que eu tive foi em cadeia. Mas assim na terra, não. Realmente muito gostoso, quando havia luar era um negócio sensacional. Você andar por aquelas vielas, algumas delas tapadas com teia de aranha, porque ali teve uma incidência de barbeiro... Só que a população foi saindo. Quando nós fomos filmar lá, tinha umas cem pessoas, no máximo, espalhadas pelo município. Município, que era uma coisa terrível, nunca tinha nada. Tinha um edifício da Prefeitura, mas nunca vimos o prefeito. De noite, por exemplo, quando tinha filmagem de noite, vinha gente do Serro, porque é perto do Serro. E traziam chocolate, traziam bolo e cadeiras. Me lembrei do negócio de quando foi o incêndio de Chicago, em ...E o Tempo Levou (sic), foi assistido por uma grã-finada, a Metro Goldwin Mayer convidou os caras. E nós tínhamos platéia também. O pessoal do Serro, que trazia bolo pra gente, chocolate, um carinho incrível com a gente. Foi quando eu meti a cara na lama e depois eu disse "eu não fui!". Só que não era lama, era chocolate. E eu não queria sair. "Acabou" e eu, chocolate. Mas era muito gostoso... Você estava falando das beatas... As beatas eram senhoras de vida airada, prostitutas, eram três prostitutas... O vilarejo tinha três prostitutas, que durante o dia trabalhavam nas casas das pessoas, como arrumadeira, lavadeira... E uma delas, uma senhora, uma vez, conversando, Dona Jurema, era uma mulher muito direita! Muito direita, eu confio nela inteiramente. Essas beatas, de noite, só atendiam aos garimpeiros. Eram umas mulheres da terra. Algumas delas tinham bócio... Era falta de iodo. O filme foi muito mal-visto na época pelo pessoal do CPC, o Vianinha brigou com o Mário pela visão do povo... Em Minas, a igreja se colocou contra o filme, né?... E tinha o Geraldinho, que era eu no filme, que era quem comprava pedra. Ele era o cão... Ele tinha uma caminhonete. Se o garimpeiro quisesse ir a Diamantina, ele cobrava. E nós estávamos com dois tanques da Polícia Militar, que o governo favorecia quem fosse filmar em Minas. Então eles desciam conosco. Tinha gente lá que... A dona da casa onde estávamos, fazia mais de trinta anos que não via a filha. Quer dizer, no sábado e domingo, pegava aquela gente toda e levava pra Diamantina. E ele só dizia: "Deixa acabar o cinema que vocês vão ver...". Ele era o cão, explorava. Matava um boi por semana, quer dizer, todo mundo via matando mas ninguém comia a carne. Levava tudo pra Diamantina. E o Joaquim Pedro disse pro Raimundo: "não compra carne do açougue pro qual ele vende, que isso é uma safadeza, não compra não". Daí nós não comprávamos carne dele. Uma vez ele quis vender e Joaquim Pedro disse: "Não senhor". E a inspiração para o seu personagem foi direta no Geraldinho? Não, trabalhou-se também, né? Você chegou a ensaiar com a Helena Ignez? Sim, uma cena em que eu estou deitado... A única cena que eu tenho com a Helena Ignez... Não, não, é porque ela contou pra gente que ela ensaiou muito tempo com Joaquim e o Luiz Jasmim na casa da Nascimento Silva. E o Jasmim, que devia fazer o Padre. Mas foi o Paulo José que acabou fazendo, o que foi muito melhor... Paulo José é um Ator, com ‘a’ grande e todas as letras maiúsculas. O contato com a Ignez foi lá, eu não ensaiei separado com ela não, fomos ensaiar em Diamantina. Eu conhecia a Ignez de nome... E nos entrosamos muito bem. Passamos uma noite inteira ensaiando aquela cena. Joaquim Pedro disse : "vamos ensaiar outra vez"... Era aquela passada dela em volta da cama, até acertar aquilo... Meu Deus!... Mas o Joaquim Pedro dizia um "vamos repetir" com tanta doçura que a gente repetia o que fosse preciso, a gente ficaria um ano repetindo. Mas era antes de filmar. "Vamos ensaiar, vai rodar, vamos ensaiar outra vez? Vamos ensaiar outra vez?" Outra coisa: Você chegou a ler o roteiro antes de ir pra lá? Sim, li o roteiro. E o que você achou da adaptação do poema? Não tem muito a ver, né? Como se diria, é uma outra leitura, outra coisa, porque tem que lidar com imagem, né?... Porque nas adaptações sempre faltam os comentários do autor, as apreciações que os autores fazem. Quando se filma Machado de Assis, por exemplo, o mais delicioso do Machado de Assis não são as imagens, mas as observações que ele faz. Por exemplo, em Brás Cubas, tem uma coisa que eu adoro, que ele diz assim: "É o Souza", é como ele definia o personagem, é o Souza... Essas coisas que não aparecem em filme e nem em nenhuma adaptação. Isso é que é realmente gostoso, de forma que o poema, é o poema, o filme é o filme. Foi seu primeiro trabalho em cinema? Não, eu já tinha feito filme até para a Atlântida, rapaz... Mas eu não gosto de fazer cinema, eu sou endocrinologicamente ansioso. É um trabalho muito lento. Eu não gosto de fazer cinema, eu rejeito sempre. Mas foi na fase em que não me davam emprego, depois de ’64... Eu Fiz o Padre e a Moça, O bravo guerreiro, Os Herdeiros, quer dizer ... Só o pessoal do Cinema Novo. E com um risco enorme, porque o pessoal de cinema não gosta de pagar. Depois fiz São Bernardo... Mas aí já tava em pé. Quando fiz São Bernardo, eu já tava em pé.
Mário, quando é que você viu o filme? Quando foi lançado aqui. Porque eu nunca vi copião do filme. Eles iam ver em Diamantina, arranjaram um cinema lá pra ver. Mas não podia levar todo mundo. E, se você vir o copião, você fica horrorizado, não há nada pior que um copião. E depois, eu sou muito crítico: "isso tá uma merda, por que ele deixou?" E aí você vai perdendo o pique, passa, sem querer, a não acreditar no diretor. O melhor é você não ver copião. Na TV, tem uma turma que acaba a cena sai correndo pra ver. Se eu vejo, eu penso: "ficou ruim essa fala e o burro do diretor não ouviu?"... Então é melhor não ver . Foi o conselho que o Jorge Amado deu para João Ubaldo: "escuta, não vá assistir a filme de romance seu, que você vai ter uma decepção muito grande. Eu nem vejo, recebo o dinheiro mas não vejo...". Porque você pensou uma coisa, o que o diretor pensou é outra. E você por acaso sabe qual foi a opinião do Drummond sobre o filme? Não sei, e nem agora você vai poder saber. E não adianta nem perguntar de viúva dele, porque ele pouco conversava com a mulher. Essa coisa de adaptação, isso muda muito... Nelson Pereira, quando foi fazer ‘Tenda dos Milagres’, mudou toda a história do livro e criou uma biografia para o Pedro Arcanjo... Pois é, tem uma cena inteira do Tenda dos Milagres, na TV, que não era igual ao filme, e também não era muito romance... são linguagens diferentes. Uma vez veio uma turma de metaleiros aqui com uma nova versão de Amélia, eles gravaram Amélia em metaleiro, e perguntaram: "o que o senhor acha?". Eu disse : "é uma outra leitura!", você escapa por aí... O negócio é esse, o Padre e a Moça, me marcou por isso, enriquecimento existencial, pelos ambientes que eu não conhecia. E artisticamente pra mim foi bom , eu trabalhei num outro sistema, que eu nunca tinha trabalhado. De forma que pra mim foi ótimo. E não tinha nada a ver com a maneira de fazer cinema da Atlântida? É, fiz filme na Atlântida. A diferença é o trabalho de ator. No teatro moderno tem, no ensaio de mesa, você fica um mês lendo a peça, vai encontrando a coisa... Eu vinha daquele teatro que você tinha uma peça por semana. "Vamos lá, não pode deixar cair a peteca", TV também não pode deixar cair a peteca.. E chegou lá com aquele negócio de vamos fazer uma improvisação, eu nunca tinha feito uma improvisação. Mas saiu!... Fui buscar a forma de fazer. E fizemos uma improvisação, Paulo José e eu, inclusive a gente movimentava pela sala... Era aquela cena em que eu queria saber por quê que ele, ainda tão moço, ele veio ali, e tal... Inclusive, a nossa improvisação mudou um pouquinho o texto, umas frases que nós dizíamos... Isso é gostoso!... Nunca tinha feito e nunca voltei a fazer porque não tenho mais paciência pra fazer teatro, pra ir toda noite... Já estou muito velho pra fazer teatro. Sou mais rabugento que o Jamelão e mais preguiçoso do que Dorival Caymmi, de forma que não dá pé... Mas aquilo ficou pra mim, um momento muito gostoso da carreira. E quando você viu o filme, você gostou? O filme é pesado, hermético, tem aquela tônica lenta do Cinema Novo. Não posso me esquecer de quando nós estávamos gravando O Bravo Guerreiro, do Gustavo Dahl, nós estávamos dublando o filme. Fomos almoçar, e depois de uma hora estávamos voltando. "Gustavo, vamos lá?", e ele acenava que não. "O que foi, homem?", e ele disse : "eu preciso ficar no mínimo três horas aqui...". "Por quê?", e ele: "Esse filme tá chato!...", e era o diretor falando isso... E eu estava vendo o público que saía do cinema, não ficava até o fim... Porque é a tônica do Cinema Novo, quase todos os filmes são... chatos, é?... Aquele delírio, um negócio que não falava brasileiro... Os Herdeiros, do Cacá Diegues é um bom filme, embora seja Cinema Novo. É mais compreensível... É isso , se vocês não gostaram ... Eu gosto muito do filme. Mário, a gente trouxe uma fotos, você quer ver? Quero, quero sim... (ele vê algumas fotos still do filme). Agora, o Joaquim Pedro era muito encucado. Havia momentos em que você não podia falar com ele, ele ficava assim (faz um movimento com as mãos, se fechando para dentro). E o Mário Carneiro dizia: "deixa, deixa...". A Helena Ignez contou que ele foi o único diretor que pediu o nada pra ela... Ele e o Bressane no ‘São Jerônimo’, os dois pediram isso, expressão nenhuma... Foi isso, outro tipo de trabalho meu, outra experiência. Você tem que buscar a intenções no limiar, o cinema sem inflexões, e pode ficar monótono... Hoje em dia, é comum você ver no cinema brasileiro as falas dos filmes num tom empostado... Mas você, conversando, você inflexiona. E o negócio do Cinema Novo era não- inflexão. Eu me lembro desse gesto de Joaquim...(faz um gesto de linha reta, estática) Por que isso, na sua opinião? Modismo! Era um modismo... Porque você falando, você inflexiona. Eu que sou neto de calabreses então, é mão, é tudo junto (gesticula, para exemplificar). Mas você fez muito bem. Vocês é que estão dizendo... E você reencontrou o Joaquim depois? Reencontrei, quando fui ver a estréia de Tiradentes, quer dizer, Os Inconfidentes. Mas os garimpeiros nos adoravam... Todo fim de semana, eles recebiam dinheiro e iam pra Diamantina. Mudou a vida da cidade... Completamente. As senhoras da vida airada lavavam a roupa para nós, já ganhavam um suplemento, né?... E o Geraldinho, apesar de tudo, nos adorava, porque nós íamos sempre tomar coisas no armazém dele, sempre comprando umas coisas, porque não dava pra deixar de comprar... A Helena Ignez contou pra vocês o negócio do ex-voto? Não. Nós achamos uma igreja que já estava desativada. E Paulo José me roubou um ex-voto, porque eu peguei um ex-voto que depois ele me roubou... A Helena Ignez resolveu pegar nada mais, nada menos do que um candelabro e foi no rio da cidade lavar! E nós fomos quase expulsos da cidade. "Eu sou uma débil mental. Eu sou uma débil mental..". Mas é uma figura excelente, sabe disso? Ela nos contou de uma vez em que ela foi tomar banho no rio da cidade e que foi um bêbado atrás dela. E ele começou a xingar e ela nunca ouviu tanto palavrão na vida dela... Ela não explicou muito bem o que aconteceu, mas tudo bem... Em Diamantina, por exemplo, tinha um clube onde tinha uma piscina em que toda a cidade ia. Ela atravessou a cidade toda de short! Escândalo, quase um babydoll. Quase um fio mental, como é que é?... Fio dental. E todo homem parava e olhava: "Artista é isso mesmo...". Muito tempo que eu não vejo a Helena Ignez... E o fato de você ser uma das pessoas mais velhas do grupo? Todo mundo era muito novo... mas você confiou plenamente neles. É, todo mundo muito novo. Mas ou você vai de cabeça ou você não vai. Tem que se jogar de cabeça no projeto, e aí vamos ver o que vai dar, o quê que acontece... O Escorel contou que, por você ser um pouco mais velho que os outros, ajudava no clima entre a equipe do filme. Eles eram muito novinhos. Eu já vinha com prática de cadeia, né?... Porque na cadeia você tem que criar um clima, manter um espírito coletivo. Experiência de seis cadeias já, então mim era mole. Porque você em cadeia lida com tudo quanto é tipo de gente, os deprimidos, os revoltados... e você tem que manter um clima. Mas aquela garotada não deu trabalho nenhum! Porque tava todo mundo embarcado no projeto, todo mundo mergulhou de cabeça. Você reviu o filme recentemente? Não, vi quando estreou aqui e depois não vi mais. Porque, confesso, achei o filme pesado. E foi muita coisa que não foi....por exemplo, aquela cena quando o padre foge, pô, aquilo deu um trabalho pra filmar!... Porque tinha que correr, o padre corre, eu tô perseguindo... Corremos a cidade inteira! E eu já estava com o meu enfisema. Quando acabava, eu: "Peraí um instante, Joaquim, eu preciso tomar fôlego...". E depois acabou cortando tudo aquilo ali, porque o Fauzi Arap atrapalhou a cena... O Fauzi Arap fazia um monte de coisas. E o Joaquim falava: "Só espia, Fauzi, não precisa fazer nada...". Cortou toda a perseguição. E o Fauzi: "Mário, Joaquim Pedro não gosta de mim, me acha uma merda...". Vocês conhecem o Fauzi? Vocês vão entrevistar ele? Pretendemos entrevistar. Vocês vão ver, ele é plácido. Aquele negócio das margens plácidas do Ipiranga foi inspirado nele, adivinharam que ele ia nascer. É plácido... Mas encuca que é uma beleza. Mas não dava trabalho nenhum também. Só ficava encucado, ali... "Não, Fauzi, não é nada disso...". Ele ficava: "Ele não gosta de mim."... Eu tive a pior sensação nessa filmagem. O quarto tinha janelas de madeira. Antes de deitar a gente olhava de baixo da cama pra ver se não tinha cobra e fechava a janela. Eu tinha uma lanterna sempre comigo. De repente eu acordei no meio da noite, breu absoluto. "Eu tô cego", eu digo, "eu tô cego". E comecei a projetar: "eu vou chegar no Rio cego, estou sem emprego, como é que vai ser pra sustentar a família?". Eu não sei, deve ter durado um século essa parlamentação comigo. De repente, eu parei: "mas eu sou uma besta, eu tenho um maço de cigarro aqui, tenho uma lanterna". Porque eu deitava lendo, botava a lanterna aqui, eu tenho mania de ler. Eu digo, "eu sou uma besta...". Ah, quando eu acendi um fósforo foi uma alegria tão grande... "Eu não estou cego!" Foi uma alegria grande, até acordei o Fauzi. "Eu não estou cego!", e o Fauzi: "Que foi Mário?", "nada, acho que foi pesadelo meu...". Tínhamos que examinar as camas, debaixo da cama. O negócio ficava aberto e de repente... Ainda mais que nós tínhamos assistido a mulher matando uma cobra. "Não chega aqui perto que ela ainda não acabou de morrer". Foi o cartão de entrada. O Luiz Jasmim quase desmaiou. Um dia ele pegou uma hepatite, não sei o quê que foi, deu uma febre nele. Eu acho que foi medo. Medo de fazer o papel. Ele ficou uns dois ou três dias lá só. Em São Gonçalo de Rio das Pedras... São Gonçalo do Rio das Pedras... Você chegou a voltar lá? Não. Não era besta de voltar lá. Já basta aquele mês que eu passei lá. Porque eu só fiquei um mês, depois eles acabaram de filmar em Sete Lagoas. Eu estava de barba e tal, e quando vim embora, o Pedro disse: "Mário, fica quinze dias no mínimo com essa barba!", que eles ainda iam ver os copiões, eu pensei: "será que eu vou ter que voltar lá?". Uma vez, numa filmagem na beira do rio, eu estou sentado e chega uma aranha... E eu pensando: "eu não tinha nada que fazer aqui, essa aranha em cima de mim...". E eu tinha que ficar rigorosamente estático, e eu estou vendo a aranha, ia pra lá, ia pra cá... Daqui a pouco ela veio no meu pé. Levou quarenta minutos. Porque eles tavam filmando do outro lado do rio, e nem ouviriam se eu dissesse... Porque o Mário Carneiro disse "você senta aí e vai fica quieto, porque eu não sei quando é que eu vou começar a filmar". Eu não tenho nada pra fazer mesmo. E de repente surge aquela aranha de mar, de rio, que anda assim (imita com a mão). Tinha aranha pra burro naquela região. E eu ali, com a mão nos joelhos... Tudo isso conta, tudo isso foi uma experiência maravilhosa. Eu gostei, não é masoquismo, não. Porque era duro. Uma vez me deu vontade de ir ao banheiro, o banheiro era fora da casa. Antes de mais nada, você sai da casa e e tem que olhar o chão. Eu desci a escada, quando abri a porta, vem a cabeça de um boi. Porque do lado de lá de dentro tinha uma cerca quebrada, tinha uma plantação e os bois iam comendo ali. E tava aquela cabeça do boi... Tudo isso era uma vida que eu nunca tinha levado. Durante um mês vi mais ou menos o que era um homem do interior. Que eu já tinha mais ou menos visto em ‘64, quando estavam presos uns homens de Capivari. Você chega pra conversar, eles não conversam, só conversam entre eles. E você não escuta, fala pra baixo. E eu era diretor, presidente do coletivo. Tinha que cuidar da redistribuição de comida que chega. Então vamos ver quem está precisando de quê, que cela precisava de quê... Eles estavam conversando, eu chegava na porta pra perguntar o que eles precisavam, eles calavam a boca. Só tinha um que falava comigo, que era sobrinho da diretora da Rádio Nacional, que me conhecia. Eu digo: "eu quero saber se você estão precisando de alguma coisa". Aí se reuniam, falavam baixinho...E lá era a mesma coisa, tudo caipira, menos o Borba Gato, quando estava de porre, sempre. Porque não são figurantes, são garimpeiros mesmo, da região. O Borba Gato tinha uma irmã em Diamantina, que ele não via há quinze anos. E ela sabia que ele estava lá, mas ele não gostava de ir conosco. Até que Joaquim Pedro disse: "Não você vai conosco porque tem a tua irmã lá". Ele era todo italiano, um dia mostrou um jornal de uma inauguração de um hotel em Gênova, e ele de maître do hotel : "Eu não fui sempre essa merda que sou hoje não. Olha aqui, na década de 20...". Umas coisas assim, incríveis, que de repente você encontra... Descobri depois que um dos garimpeiros, um crioulão, era marido da mulher do Borba. Esse episódio na cadeia foi quando? Em ‘64, foi na Ilha Grande e depois no Fernando Viana... Foram seis prisões ao longo da vida? Seis vezes. A primeira foi em ‘32. Ainda não era Estado Novo. Eu era da Juventude Comunista. Fui preso na porta da fábrica Maxwell... Na época da Intentona também? Na época da Intentona também. E estou aqui. Eles já foram... E a saudade da família? Aí é fogo. Eu tinha um filho que ia operar a garganta. O Raimundo, quando ia fazer compras em Diamantina, telefonava sempre lá pra casa, e o Luiz Carlos Barreto custando a pagar a patroa... O pessoal de cinema não gosta de pagar. Paga pouco e é duro. Eu filmei São Bernardo, e acabou o filme. "Cadê o cachê?". Uma vez eu peguei meus dois filhos, "Ah, não tem dinheiro...", o Mariozinho que é o mais novo: "Tem que te!". Ele joga jiu-jitsu, inclusive. "Vou dar um cheque...". Não. "Se você vai dar um cheque tem que ter dinheiro no banco, eu vou com você ao banco...". Foi como eu recebi! A Vanda Lacerda, que não tinha dois irmãos, não recebeu. O Arena morreu sem receber. Eu não. Nem o Valadão deixou de me pagar. Porque eu não deixo passar. Só tem um cara que não me pagou, o Reinaldo Loilo, uma peça que ele produziu e que eu trabalhei, ficou me devendo três dias... Porque é uma safadeza, você trabalha, pô! O Glauber Rocha: "Mário, você compreende, a causa...". "Mas se o filme ganhar, der lucro? você vai se lembrar da causa? Não, você vai embolsar o dinheiro". Então, pra eu trabalhar, eu tenho que ganhar. Porque quando um militante está bem alimentado ele trabalha melhor pela causa... Eu não faço mais cinema. Porque eu sou endocrinologicamente ansioso, é muito lento, não consigo mais fazer... Você prefere fazer TV? Não, porque cinema é complicado...
Você tem dado shows de música... Show? Eu faço meus showzinhos de vez em quando, saio mambembando por aí... Quando preciso de dinheiro: "vamos para uma excursãozinha...". Eu não gosto de trabalhar, eu sou preguiçoso, mais que o Caymmi. E o Caymmi é a preguiça, até na maneira de falar. Eu só não sou baiano. E sou ansioso... Olha, eu gosto de ficar assim, sem fazer nada... Porque trabalhar é muito chato, cá pra nós. Vocês não acham não? Eu ganho mesmo sem trabalhar na Globo. O pessoal que começou tem garantia no negócio... No ano passado eu fiz duas novelas, os elencos já estão todos fechados, então não tem.... E aí começa a dar uma angústia.. Porque, aos 88 anos, a família é capanga, se eu disser, "eu vou dar uma saída". "Onde é que você vai? Não está gravando novela?". Mas eu estou bem. Outro dia eu fui ao Rival, ver um show, depois fui comer no Istambul, vim pra casa às duas da manhã... Porque eu fui boêmio, não durmo antes de uma da manhã. Freqüentou a Lapa até quando? Durante três anos, mais ou menos. A partir dos dezesseis anos? Não, dezesseis eu só conheci... Depois, lá pela década de ’40, é que eu mergulhei fundo, três anos de freqüentador da Lapa. O passo já ia sozinho, Café Nice, depois que o Nice fechava ia pros cabarés da Lapa. Fui amigo de tudo que era vagabundo, era tudo amigo meu. Os sambistas, feito Geraldo Pereira, Wilson Batista? Às vezes, mas eles não era do cabaré que eu freqüentava. Tinham três cabarés, o Royal Pigalle, um outro que eu não me lembro o nome e o Novo México, perto dos Arcos. Era um lugar violento? Não, era um outro tipo de vida... A única coisa violenta que eu vi foram duas: a prisão do Madame Satã, que não era fácil pra prender.. Nunca foi preso por menos de seis guardas, jogava muito com a perna, né?... E a briga dele com Geraldo Pereira. O Madame Satã era uma moça e o Geraldo Pereira também era uma moça, quando não estava de porre. Quando estava de porre, ele saía procurando briga. E lá na Lapa ele cismou com o Madame Satã, cismou... ficava dizendo "Você é viado!...", "Tá bem, seu Geraldo...". Até que o Geraldo disse: "Vou lhe dar uma porrada...". Aí ele disse: "ah, não vai não...". E o Madame Satã só dava rabo de arraia na barriga do Geraldo, que tinha um câncer no intestino.. Estourou o cano. Porque quando ele foi dar uma porrada: "Ah, não vai não, seu Geraldo...". O Madame Satã era difícil de pegar, chinelinho de salto alto, tamanquinho todo florido e tal... Você presenciou essa briga? Presenciei, as duas, foram as únicas coisa realmente violentas que eu vi ali. E as drogas ali eram só bebida? Olha, havia na época um viciado que era célebre, o Caçoada... Viciado em cocaína? Viciado em cocaína. Mas todo mundo sabia, todo mundo falava, não havia esse negócio de hoje. Havia também uns cantores que cheiravam cocaína... Houve uma época em que cocaína vendia na farmácia, velho... A Merck era a grande marca, a melhor cocaína era da Merck... Tem a história, dos anos cinqüenta, de um cantor que ia pra Lapa pra comprar maconha, e lá ele ficou amigo do Geraldo Pereira, do Janet de Almeida e do Wilson Batista... Wilson, grande figura. O Germano Augusto dizia que o Wilson era a alma do cão... Ele ia na Lapa todo assim.. Aquele sujeito que você não consegue ver o olho dele direito. Você não entendia bem o que ele dizia direito e nem via o olho dele. Agora, grande compositor, né? Era muito amigo meu. O Ataulfo ia à Lapa também? Não. Tomava alguma coisa no Café Nice, depois ia embora... o Ataulfo sempre foi um cavalheiro. Eu não, tinha alma de vagabundo. Já estava no Café Nice, eu vou pra Lapa, pô!.... No Pedro II, no 4º ano, eu fui reprovado. Conhecia a grande palavra, a gazeta... Tinha uns bordeizinhos na Rua da Lapa, eu matava as aulas do Pedro II ali... E conciliava a atividade artística, a noite boêmia e a vida política do Partido? Eu nunca abri mão da minha vida de boêmio. Eu cumpria minha tarefa, e depois goodbye boy. Eu ia pro cabaré e não queria nem ouvir falar em reunião, Nem em coisa nenhuma. E seus companheiros não te acompanhavam? Não. Cumpri minha tarefa. Meu negócio era cumprir a tarefa, passava a noite, se fosse preciso. Agora, acabou?, vou pegar meu cabarézinho... E fui boêmio sem beber, boêmio de água mineral. Nunca tive disposição pra beber. Nos tínhamos um grupo no colégio, quando era adolescente, tínhamos um grupo, tomei quatro porres... e eu, quando bebia, tinha mania de brigar e era agarrado pela polícia e todos ele iam juntos. Na quarta vez eles disseram : "você está proibido de ir, você não sabe beber, está proibido de beber". E parei, até hoje não bebo... Seu negócio era a cantoria, o samba? Isso é outra coisa, rodinha de samba, fico a noite inteira... Mas não havia roda de samba na Lapa não. Era só paquera? Cabaré, cabaré. A gente se defendia... Eu era bonito, usava pince-nez, era o moço do pince-nez. Ator, músico, compositor conhecido... Não, era por beleza mesmo!... Eu usava pince-nez. Sempre muito bem vestido, filho único, tinha todas as regalias. Papai mandou buscar uma peça de linho, que era o melhor linho... Eu tinha quatro ternos de linho, sapato de duas cores, não era careca... Ou pelo menos dava pra disfarçar. Ia todo mundo de terno pra Lapa? Paletó e gravata. Com lenço no pescoço? Sem lenço. Era paletó e gravata. Era moda. Agora, eu não suporto gravata, não boto nem calça. Eu vou ao médico assim, de bermuda. Muito calor, pô!... Eu queria saber se você voltou a ver Joaquim... Na estréia dos Inconfidentes, e depois, nunca mais vi. Depois uma vez encontrei, se não me engano, o Mário Carneiro e perguntei: "como vai Pedro?" , ele disse: "está muito doente"... Eu não sei até hoje do que ele morreu. De câncer nos pulmões. Sabia que ele fumava pouco?... Mas esse negócio, eu ainda tou aí... Ih, eu já disse inconveniência aqui pra burro!... Mas esse negócio que você vê de repente, garoto de 14 anos que morre de infarto. Nunca chegou a fumar na vida... Eu fumei dos 12 aos 77. Cheguei a fumar três maços por dia, e parei. Vou fazer 12 anos agora. Parei. Não fiquei com vontade de fazer xixi na sepultura de mamãe, de bater com a cabeça na parede. Só parei. Tenho um enfisema, né?.. Se eu der uma corrida até lá, eu fico assim, sem fôlego. Mas também não faço sermão. Eu digo sempre que, se eu tiver uma doença e o médico disser que não tem volta, primeira coisa que eu vou fazer é voltar a fumar. Você não fuma, né? Eu fumo. Você repara uma coisa, a primeira tragada do dia é um troço fantástico... Um negócio assim que parece uma viagem. Já no segundo cigarro não vem. e o sujeito fica procurando outra vez aquela viagem, mas só no dia seguinte. É assim um negócio assim que fica parecendo uma viagem. Eu, quando fui operado, porque fui operado, eu tinha dilatação da aorta abdominal e quando estava de recuperação, o médico falou: "Seus pulmões são dois pedacinhos de carvão..." Eu já vinha segurando, já estava fumando cinco ou seis cigarros por dia, no máximo. Fiquei em casa, de recuperação, e parei. Mas aquela primeira tragada, dá um negocinho de dois segundos, mas é um negocinho especial. Só quem fuma é quem sabe disso. Minha filha está fumando muito. A Graça Maria tá fumando muito... De vez em quando eu estou sentado aqui e ela diz: "Papai, sai, que eu preciso fumar". Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano |
|