Entrevista com Eduardo Escorel

Foi seu primeiro filme? Você tinha
dezenove anos, não é?
Primeiro filme de ficção que
eu trabalhava, sim. Eu tinha feito já umas coisinhas pequenas,
tinha feito um curso de cinema por seis meses, dado por um cineasta sueco
que veio ao Brasil, o Arne Sucksdorff, um documentarista, isso no final
de 62, segundo semestre de 62. E tinha trabalhado um pouquinho com Joaquim
no Garrincha, fiz umas gravações de som pra ele,
de som ambiente. Depois comecei a trabalhar um pouco com montagem, fazendo
um trabalho de sincronização, de assistência. Mas
o primeiro filme de ficção que eu trabalhei foi O Padre
e a Moça, em que eu fiz assistência de direção
do Joaquim.
E como vocês se conheceram?
Eu conheci ele nessa época desse curso
dado pelo Sucksdorff, exatamente assim como que eu conheci, eu não
sei se vou lembrar bem... Mas foi nesse momento, em que eu estava fazendo
esse curso e as pessoas que faziam cinema de alguma maneira se conheciam
e ... O dia, o momento que conheci, eu não vou me lembrar. Mas
basicamente deve ter sido no Bar da Líder, que era o bar que a
gente freqüentava, e que toda tarde todo mundo ia pra lá,
e provavelmente eu conheci Joaquim no bar da Líder nesse período
do curso. E depois eu comecei a ficar mais próximo dele nesse trabalho,
que foi um trabalho mínimo, assim, de gravação de
ruídos ambientes para o Garrincha, porque eu tinha aprendido
a mexer nesse curso com o Nagra, que era um dos primeiros Nagras que chegou
ao Brasil, e tal, e no curso tinha equipamento. No curso, tinha vindo
equipamento, uma Arriflex, uma mesa de montagem Steenbeck e o Nagra...
Eu aprendi, não a fazer som, mas a ligar o gravador, e já
virei técnico de som por causa disso. E fui lá para o Maracanã
fazer, na final do Campeonato Carioca de 62, fazer umas gravações
de ruído ambiente. E depois fiz, durante alguns dias com ele, ele
já estava com o filme mais ou menos pronto, montado. Mas ele não
tinha tido nenhum recurso de som direto, apesar de teoricamente ser um
filme documentário na linha do cinema verdade, mas não tinha
equipamento no Brasil na época pra fazer um documentário
com entrevistas, essas coisas. As únicas entrevistas que tem no
filme são feitas em estúdio, com equipamento pesado, as
filmagens de maneira geral não tinham som. Então quando
ele acabou de montar o filme não tinha som ambiente, foi tudo editado,
gravado depois e editado na montagem, não por mim, acho que pelo
próprio Nello Melli, que montou o filme.
Seu interesse era montagem?
Olha, não tinha nessa época
nenhum interesse específico pela montagem, eu tinha a vaga intenção
de dirigir, mas eu fui fazendo o que aparecia, o que era possível
fazer... Depois desse momento eu parei durante um ano, porque eu ainda
estava no colégio, e nesse ano de ‘63 eu fui morar em São
Paulo, e fui estudar para fazer o vestibular, eu ia fazer vestibular para
engenharia, depois desisti, resolvi fazer arquitetura, depois fiquei assim
sem saber, resolvi fazer física, já sob a influência
do Joaquim e do Mário, que era arquiteto, o Joaquim era físico,
aí desisti de São Paulo, vim para o Rio e fiz o vestibular
para física e arquitetura. No fim de 63, início de 64. Aí
passei nos dois, tranquei arquitetura e comecei a cursar física.
Mas foi um ano meio difícil, era ‘64, teve o golpe, as faculdades
demoraram muito a começar, e eu fui me envolvendo cada vez mais
com o cinema, a física eu comecei a cursar, mas depois de uma semana
sumi e nunca mais apareci, a arquitetura eu deixei trancada e está
trancada até hoje... Só depois, uns quatro anos depois,
fui fazer sociologia na PUC – eu já trabalhava em cinema, já
estava até casado. Depois desse momento o Joaquim estava, se não
me engano no início de 64, já estava com a intenção
de fazer o Padre e a Moça. O filme foi filmado no início
de 65 e ficou pronto no fim de 65, talvez tenha sido lançado no
início de 66, não sei. Mas a filmagem foi no início
de 65.
Você acompanhou o processo de roteiro
dele?
Não, o roteiro eu não acompanhei
muito. Eu fui um dia à casa dele com o David Neves, a famosa casa,
ainda antes da obra do terceiro e quarto andar, era casa só de
dois andares, e o Joaquim estava falando em fazer o Padre e a Moça,
e dessa conversa, meio loucamente, ele me perguntou se eu não gostaria
de fazer a assistência de direção do filme. Eu fiquei
assim, digamos... mas demorou um tempo para esse filme sair. Mas eu fiquei
no ano de 64 todo um pouco com essa intenção, essa perspectiva
de fazer a assistência de direção do Padre e a
Moça e depois fiz também a montagem do filme.
Mas você viajou com ele, ficou os
quatro meses?
Fiquei.
A Helena Ignez contou que a filmagem foi
bem conturbada.
Olha, foi difícil, em primeiro lugar
porque a gente estava numa cidade que não tinha nem luz nem água,
então você ficar, não sei se foram quatro meses, entre
três e quatro meses... Se não me engano foi em fevereiro,
me lembro que durante o Carnaval a gente estava filmando. Então
foi fevereiro, março, abril, não sei se chegou a... E em
São Gonçalo na época não tinha luz elétrica,
não tinha água, era uma equipe pequena, acho que eram onze
pessoas, era uma equipe bastante pequena, todo mundo fazia várias
funções. Eu além da assistência também
fazia um som guia, o Prates além de estagiário fazia a continuidade,
quando ele não estava eu fazia a continuidade, o Mário era
fotógrafo e cenógrafo, o Fernando era assistente de câmera
e fotógrafo de cena, todo mundo fazia várias coisas. E eu
acho que o fato de ficar numa cidade pequena, um grupo pequeno de pessoas,
talvez o fato de só ter uma mulher...
A Helena fala de outra, a Rosa.
É, tinha a Rosa Sandrini, era uma
senhora de idade, não que não fosse uma mulher, mas já
era uma senhora de idade... então aqueles jovens todos ali em volta
da Helena, durante quatro meses, sem luz e sem água, aos poucos
aquilo ali foi pesando.
Muitas confusões?
Algumas, algumas (ri)... era tudo
um pouco precário, um pouco difícil, então...era
todo mundo muito moço, também, todo mundo com pouca experiência.
Eu acho que eu era o mais jovem, tinha dezenove anos. Tinha os estagiários,
mas os próprios estagiários mineiros, o Prates, o Veloso
e o Flávio Werneck, acho que eram mais velhos que eu, são
todos um pouco mais velhos do que eu.
O Joaquim e o Mário Carneiro já
tinham quase trinta.
Olha, eu não sei ao certo a idade
do Joaquim em 65, mas era todo mundo muito moço... e com pouca
experiência, tem um pouco disso também, quer dizer, era o
primeiro filme de ficção do Joaquim, eles também
não tinham muita experiência. Essa coisa de você ir
para um lugar, ficar com uma equipe exige uma disciplina interna que ninguém
tinha muito, entendeu? Então as coisas se confundiam, se misturavam
muito, então isso ajudou a gerar problemas, brigas, confusões...
Vocês procuraram essas locações?
Como foi?
O Joaquim fez um viagem prévia, na
qual eu não fui, seguindo umas indicações que o doutor
Rodrigo deu a ele... Acho que fez essa viagem com Sarah, eles tinham um
fusquinha branco, durante anos... E ele fez uma viagem de carro, voltou
com umas fotos, com uma indicação dessa cidade, com a idéia
de fazer nessa cidade, que é uma cidade que fica entre Diamantina
e o Serro. Fica mais ou menos numa estrada ruim, já era ruim, continua
ruim, eu voltei lá uma vez só, em 87, e continua ruim a
estrada... A gente ia pra lá nuns jipões da polícia
militar que a gente tinha, era uma coisa assim de uma hora e meia, mas
estradinha de terra, assim, bem difícil...
E lá, a relação de
vocês com a população local...?
Foi tranqüila até o último
dia. Durante a preparação e as filmagens era tranqüila,
tinha algumas senhoras locais e pessoas que faziam uma espécie
de figuração, inclusive.
As bruxas ...
É, as feiticeiras, as bruxas... e
lá na região tem muito bócio, uma doença que
dá no pescoço. Até aparece um pouco no filme não
sei se dá pra ver muito. Tinha muitas senhoras assim, com pescoço
inchado... Umas figuras muito estranhas...
Como se pega essa doença?
E uma doença que tem muito no Brasil,
bócio. Eu acho que é uma coisa que se transmite...
Não é falta de iodo?
Talvez, talvez, eu não sei como é
que é... É uma coisa que é muito feia realmente.
A pessoa fica com o pescoço inchado assim.
É difícil não notar...
Mas eram um pouco bruxas, sim.
Vocês saíram com o filme
planejado?
Não, teve uma fase razoavelmente longa,
pelo que eu me lembro, de preparação e de planejamento aqui
no Rio, tinha o escritório de produção na Rua México,
ali que a gente trabalhava... Mas teve muita coisa, até a própria
decisão de fazer o filme com o Paulo José, que só
foi decidida em Diamantina. Nós ficamos em Diamantina um período,
alguns dias, antes de começar a filmagem, e o Luiz Jasmin ,que
ia fazer o papel, adoeceu com hepatite lá em Diamantina. E ficou
aquela crise, a filmagem ia começar dois dias depois. E naquele
tempo, acho que é difícil até de vocês imaginarem,
Diamantina era longe, até hoje é longe, mas as comunicações
eram difíceis. Você telefonar de Diamantina para o Rio era
difícil, não era como é hoje, entendeu?... Então
ficamos lá com aquele problema, era o papel principal do filme
e a gente não tinha ator pra fazer o papel. E eu tinha feito uma
viagem com o Joaquim durante a preparação para São
Paulo, foi quando ele chamou o Fauzi para fazer o filme. Nós fomos
a São Paulo ver umas peças pra ver atores e tal, fomos ver
a famosa encenações dos "Pequenos Burgueses"
no Teatro Oficina, dirigido pelo Zé Celso, que tinha estreado,
eu tinha visto com o Raul Cortez fazendo o papel. Quando o Raul saiu,
entrou o Fauzi para fazer o papel que o Raul fez inicialmente. E o Raul
estava excepcional, era maravilhoso o trabalho dele, e o Fauzi também
estava ótimo, era uma encenação fantástica,
realmente. E o Joaquim convidou o Fauzi. Nessa viagem nós conhecemos
o Paulo José. Nós fomos ao teatro de Arena e depois da peça,
eu não me lembro que peça nos vimos, mas tinha uma bar em
frente, sempre os bares..., em frente ao Teatro de Arena, que o pessoal
ia, e tal... E nessa noite, nós conhecemos o Paulo José,
falamos uma duas palavras com ele. E quando, talvez um mês ou dois
depois, naquela crise do ator, o Joaquim lembrou: "tinha um ator
que nós conhecemos, assim, uma noite em São Paulo""
. "Ah, lembro, quem era...?", "Ah, o Paulo!".
E aí começaram os telefonemas malucos pra achar, pra identificar
quem era a pessoa. Um tal de Paulo José, não sei o quê...
E o Paulo chegou depois, de ônibus, não sei se dois ou três
dias depois, sem ter lido o roteiro, sem saber o que era, e tal...
Apostando no escuro no projeto...
Totalmente... A equipe foi inclusive pra
São Gonçalo, eu fiquei sozinho em Diamantina esperando o
ônibus chegar pra receber o Paulo. Aí o Paulo chegou e tinha
o problema da batina, porque a batina tinha sido feita para o Luiz Jasmin,
que é maior, e tal... Então tinha que reformar a batina.
E já foi um trauma para o Paulo aquela história de chegar
e a roupa de outro ator ter que ser adaptada para ele... o fato dele ser
um substituto de última hora ficou mais marcado ainda. Aí
nós fizemos lá, fomos num alfaiate local para reformar a
batina e partimos para São Gonçalo para começar as
filmagens. E ele, que tinha pouca experiência como ator, ele tinha
mais uma formação de cenógrafo de teatro, tinha feito
pouquíssima coisa como ator e nunca tinha feito cinema, entrou
logo para fazer aquele papel. Então era tudo um pouco assim, todos
nós... o Mário Lago, em suma, era um senhor já com
experiência, o Fauzi tinha mais experiência de teatro, a Helena
tinha feito vários filmes... Mas, dos outros, quem tinha mais experiência
ali era o Mário, na equipe técnica, o Fernando Duarte já
tinha feito algumas coisas, mas os outros tinham pouca experiência.
Vocês ficaram os quatro meses lá?
Ou ficaram indo e voltando?
Não, nós ficamos lá,
íamos de vez em quando a Diamantina, fomos no carnaval, por exemplo,
nos dias de folga... alguns dias nós acampamos para filmar, porque
eram umas locações no meio das montanhas, que não
dava para chegar muito cedo para filmar, então nós dormimos
numas barracas durante umas duas ou três noites, acho... Depois
teve uma parte, no final, a parte da gruta, que foi feita na Gruta de
Maquiné, que é longe de São Gonçalo, então
nós viemos de lá, ficamos em Cordisburgo, dormimos talvez
umas duas ou três noites também, para fazer a parte da gruta,
que foi no final das filmagens. Mas basicamente nós ficamos em
São Gonçalo, a gente ia no dia de folga para Diamantina,
acho que íamos uma vez por semana, fora idas eventuais, por problemas
de produção. Porque era uma questão, uma questão
difícil, que era que, ao mesmo tempo que O Padre e a Moça,
estavam fazendo o Matraga, o A Hora e a Vez de Augusto Matraga,
do Roberto Santos, e os dois filmes estavam sendo produzidos pelo Luiz
Carlos Barreto, e tinha certas coisas que eram comuns às duas produções,
que eram divididas ee que ficavam em Diamantina. Eles também filmaram
ali no entorno de Diamantina, ao mesmo tempo. Então, para carregar
as baterias da câmera, a bateria tinha que ir a Diamantina todo
dia para carregar e voltar. E as duas produções tinham que
mandar suas baterias para lá, porque tinha só um carregador
para os dois filmes. Então, todo dia então saía um
carro e dava aquela volta para levar a bateria, carregava ela de noite...
Porque não tinha luz elétrica em São Gonçalo,
não tinha como carregar lá mesmo. Mas era tudo assim, tão
poucos recursos... porque você imagina, dois carregadores de bateria
você imagina que talvez pudesse ter, não é? Mas não
tinha, só tinha um.
E o processo de filmagem, foi complicado?
Foi, foi trabalhoso. Foi trabalhoso por vários
motivos, desde problema técnicos, quer dizer, vários dias
de filmagem tiveram que ser refeitos por causa de uma lente que estava
com defeito e não se sabia, e demorava muito para ver o copião,
porque o negativo, para vir para Rio, revelar e voltar, demorava dez dias,
quinze dias. Então, quando finalmente nós vimos o primeiro
copião já haviam se passado quase duas semanas, aí
descobriu-se que uma lente estava com defeito e não dava foco.
Então nós perdemos, assim, grande parte dessas duas semanas,
teve tudo que ser refeito... E o Joaquim tinha um temperamento muito obsessivo,
muito detalhista... depois acho que ele mudou bastante. Mas nesse tempo
tinha uma preocupação formal muito grande... tudo isso,
quer dizer, o deslocamento era difícil...
Ele, no geral, ficou satisfeito com o
resultado?
Isso é difícil te responder,
viu... Acho que foi um processo meio sofrido para ele, tenho impressão,
inclusive pela reação ao filme, a recepção
ao filme também... E acho que por muito tempo ele meio que rejeitou
o filme, acho que ele se reconciliou com o filme muito anos depois, ele
passou muito tempo sem ver o filme, até que houve uma retrospectiva,
acho que em Roterdam, aí ele viu depois de muitos anos, e ele meio
que se reconciliou. Eu também passei muitos anos sem ver o filme,
acho que passei uns quinze ou vinte anos sem ver, e fui ver uma vez na
Cinemateca do MAM.
Mário Carneiro nos contou bastante
dos problemas que teve com Joaquim Pedro durante as filmagens.
É... eles tiveram muitos problemas,
Mário e Joaquim, durante a feitura do filme, dificuldades de todo
tipo, desde problemas mais pessoais de relacionamento até problemas
de trabalho mesmo, e tal, e o Joaquim ficou com uma certa... Acho que
eram coisas que vinham da relação deles, de antes do filme,
que vinham acumuladas e meio que explodiram ali. Tanto que o Mário
não trabalhou nunca mais com ele, né?
O Joaquim produziu o filme do Mário
(Gordos e Magros), não é?
É. E aí houve novos problemas,
né?...Mas nunca mais chamou o Mário para fotografar. Mas
acho que ele mesmo reconheceu, depois... Acho que ele tinha uma certa
impaciência com um certo tempo que levava para iluminar, para preparar,
acho que Joaquim tinha uma certa dificuldade com algumas limitações
que uma luz mais recortada criava... Mas acho que ele depois reconheceu
que o resultado do filme era bom, e que o Mário, com os recursos
que tinha, era muito pouca luz, não sei se ele teria muita opção,
em termos de técnica, para iluminar... É muito difícil
você relembrar essas coisas, e é difícil falar pelos
outros, também, não é uma coisa fácil.
Mas se comentou muito disso, desses conflitos
estéticos?
Sim, sempre se falou muito disso. Mas eu
me lembro bem de ter conversado com ele, quando eu revi o filme, muito
antes dele rever o filme, de comentar minha impressão tendo revisto
o filme tanto tempo depois, e me lembro bem dele comentando a reação
dele depois de ter revisto o filme, tendo gostado do filme e do trabalho
do Mário.
E qual foi a sua reação,
quando reviu?
Eu tive uma boa surpresa também, porque
eu acho que o filme tem uma certa dimensão trágica, de tragédia
grega mesmo, que na época eu não sentia muito. Na época
o que ficou mais, quando o filme ficou pronto, com a reação
das pessoas e tal, foi uma reação um pouco negativa pelo
fato do filme talvez ter um ritmo um pouco lento, isso pesou muito contra
o filme. E, revendo o filme depois, eu não senti isso tanto. E
essa dimensão meio trágica eu acho que tem uma certa grandeza
no filme, visto depois e mais friamente, que me impressionou quando eu
revi.
Muito se falou do filme não ser
explicitamente revolucionário, político...
Isso, para mim, eu não sei se me...
Muita gente reagiu mal ao filme por conta disso, o pessoal mais militante,
politizado, que tinha sido ligado à UNE, ao CPC, essa linha do
cinema novo que vinha daí, com a questão do golpe, isso
politizou mais ainda as coisas, num período que já era de
grande participação, um certo tipo de atuação
e militância, e com o golpe estas questões ficaram mais presentes
e mais urgentes. Então havia uma demanda por parte da esquerda,
digamos assim, por filmes que respondessem ao golpe militar mais explicitamente.
E os filmes começaram a aparecer, com exceção do
Desafio, do Paulo César, que foi concebido e imaginado depois
do golpe, e depois, a partir de Terra em Transe, onde já
havia uma repercussão do golpe, esses filmes, Augusto Matraga,
O Padre e a Moça, Menino de Engenho, A Grande Cidade,
eram filmes imaginados antes do golpe. E é um problema que o cinema
brasileiro tem até hoje, quer dizer, o tempo que leva para fazer
um filme, quando o filme realmente aparece o mundo já mudou, e
às vezes o filme é visto num contexto e numa circunstância
muito diferentes daqueles em que ele foi imaginado, e isso causa certos...E
esse grupo de filmes sofreu, acho, muito por causa disso, porque aí
foi uma coisa muito marcante, uma ruptura que marcou muito a vida das
pessoas.
Mas, apesar de todo o trabalho de roteiro
e com atores aqui no Rio, o filme foi rodado relativamente rápido,
não?
Mais ou menos. Eu acho que o Joaquim já
pensava no filme desde que ele acabou o Garrincha. Acho que desde
’62, ’63, quando o Garrincha ficou pronto, ele já pensou
em um novo filme e já pensava no Padre e a Moça,
então, se você puser aí, são dois, três
anos...
O Jabor escreveu uma crônica da
sessão de estréia do "Deus e o Diabo...", contando
que todos saíram dali abalados, o Joaquim Pedro teria ido mexer
no roteiro do "Padre e a Moça", o Ruy Guerra na montagem
do "Fuzis"...
O Deus e o Diabo, sem dúvida,
abalou todo mundo, muito... Mas teve a vantagem, num certo sentido, de
ficar pronto e de ter sido visto imediatamente antes do golpe, no ano
anterior. Então ele foi feito e visto num contexto mais ou menos
harmonioso, digamos assim. Esses filmes que foram imaginados antes e vistos
depois, esses eu acho que sofreram muito com isso. Nós até,
quer dizer, quem via e para nós também, que estávamos
envolvidos com a feitura do filme.
Eu estava pensando agora no "Dia
da Caça", que demorou oito anos...
É, hoje talvez isso tenha chegado
a um certo exagero... tem o Chatô, o Villa-Lobos,
em que eu trabalhei... mas nessa época, bem, O Padre e a Moça
levou três anos, sei lá, pra ser feito assim. É muito
tempo, e é muito tempo com essa ruptura no meio, entendeu? Porque
o golpe realmente foi como se mudasse a vida das pessoas, mudou tudo,
a perspectiva de vida das pessoas, o que você achava que tinha sentido
deixou de ter, o que você imaginava que sua vida seria deixou de
ser... Foi como se virasse tudo pelo avesso.
Já contaram pra gente alguns casos
sinistros, como o da filmagem do fogo no final...
É... Contado depois é até
engraçado... Teve muito coisa sim, essas histórias são
um pouco o testemunho de como nós éramos meio despreparados,
no fundo, porque ali várias pessoas podiam ter morrido, foi no
limite da tragédia realmente. A situação foi a seguinte:
como lá não tinha gruta, e a gruta ia ser filmada em Maquiné,
nós tínhamos que fazer a cena final do filme, o Joaquim
queria filmar de um ponto de vista do interior da gruta, em que se visse
a população da cidade e o fogo que a população
pôs pra matar o padre e a moça. Então, ele imaginou
falsear isso lá em São Gonçalo, tinha uma encosta
meio pedregosa, então ele imaginou colocar a câmera dentro,
tinha uma profundidade, talvez de um metro, cabia a câmera apertadinha
ali e mais duas pessoas. Então ele imaginou colocar, você
tinha um recorte, assim, de pedra, como se fosse a boca da gruta, você
via o fogo, a fumaça, as beatas e algumas daquelas pessoas que
perseguiram o padre e a moça. E nós começamos a preparar
aquilo, quer dizer, precariamente, para fazer aquele fogo naquela encosta.
Tinha uma ajuda, como sempre, tinha a ajuda das pessoas locais, tinha
um senhor, começamos a espalhar madeira, folhagens na encosta,
e o Fernando Duarte e o Joaquim entraram nesse buraco, para poder ver
o plano lá de dentro... Só que era uma coisa, assim, não
tinha saída, né?... E eu fiquei do lado de cá, do
lado direito com esse senhor aí, que tinha meio que comandado essa
operação de preparar o fogo, numa pedrinha de onde não
tinha como sair, não tinha saída pra nenhum lado. Tinha
um buraco aqui, e o caminho era do outro lado. E aí "vamos,
vamos filmar e tal...", puseram fogo na encosta. Só que
foi mal calculado, naturalmente, e começou a queimar, a queimar
e subir fumaça, subir fumaça... E eles começaram,
não só a sufocar dentro do buraco, como a pegar fogo! E
aí começaram a gritar, eu me lembro especialmente do Fernando
gritando, e eles começaram a ficar desesperados lá dentro,
eles iam morrer sufocados. Não tinha saída lá dentro.
Eles estavam assim, encostados, e aquela fumaça e aquele fogo vindo
pro lado deles... E aí esse senhor que estava ao meu lado, quando
a coisa começou a ficar desesperadora, ele pegou umas pedras e
começou a jogar elas em cima daquele material que a gente tinha
preparado para pôr fogo. E aquilo começou a rolar pela ribanceira
abaixo, e com isso diminuiu um pouco a fumaça e eles conseguiram
sair de dentro do buraco, o Fernando com a camisa dele toda queimada,
a camisa pegou fogo, literalmente, a camisa cheia de buracos... E foi
isso, foi por pouco, foi por muito pouco.
Na época, o que você achava
do filme? Gostou?
Olha, quando a gente trabalha tanto tempo
num filme a gente se envolve de uma maneira que... eu achava, enquanto
eu estava fazendo, achava que era a melhor coisa do mundo, com certeza...
Acho que tinha, na época, até pela minha própria
experiência, muito menos senso crítico do que o Joaquim,
quer dizer, eu montei o filme junto com ele, era o primeiro filme que
eu montava, que eu trabalhava como montador. Mas eu não tinha assim
um senso crítico muito desenvolvido, quem tinha era o Joaquim.
A montagem foi logo depois das filmagens?
Foi... era uma coisa um pouco demorada, porque
éramos só nós dois trabalhando...
Na moviola do Luiz Carlos Barreto?
Não, não era a dele não,
era essa mesma mesa de montagem que veio para o tal curso que eu falei,
que tinha sido depois doada e era meio gerenciada pelo patrimônio,
o doutor Rodrigo é que era responsável por ela, em última
instância... Ela estava instalada numa casa em Santa Teresa, nós
trabalhávamos lá, uma casa que hoje é até
uma espécie de museu, como o Instituto Benjamin Constant, foi reformada,
restaurada e tal, mas na época era uma casa do Patrimônio,
que estava um pouco abandonada, assim, e... O Joaquim tinha uma maneira
de trabalhar, isso ele sempre teve, e varia muito de diretor para diretor,
mas o Joaquim filmava muito em função de como aquilo ia
ser montado, quer dizer, ele decupava, planejava a decupagem, em função
da maneira como ia ser montado. Então, no caso do Padre e a
Moça, a montagem, não era tanto uma questão da
estruturação interna de cada sequência, era mais uma
questão, os problemas e as dificuldades da montagem eram mais ligados
à narrativa, à estrutura narrativa do filme.
Mudou muito, em comparação
ao roteiro original?
Algumas coisa foram eliminadas, algumas coisas
grandes foram eliminadas, algumas sequências muito trabalhosas,
muito difíceis de fazer, por exemplo, quando eles voltam para a
cidade, o padre e a moça voltam, tinha uma longa sequência,
se chamava a sequência da mula-sem-cabeça, em que ele entrava
na cidade, via uma mula-sem-cabeça e começava a perseguir
pela cidade a mula-sem-cabeça até chegar na igreja, numa
cena em que ele está deitado no altar, tinha, assim, uns dez minutos
de filme entre eles chegarem até aí, e hoje eu acho que
corta, corta direto.
Mas como fizeram a mula-sem-cabeça?
Bem, tinha uma mula, mas com cabeça,
mas que para ele funcionava como uma mula-sem-cabeça, por causa
da lenda das mulheres de padre, e então ele via uma mula e começava
a perseguir essa mula. E isso foi naturalmente complicadíssimo
para filmar, o Paulo José se atracava com a mula, foi derrubado,
acho até que ele perdeu um dente nessa história, levou um
coice da mula. E essas coisas na montagem foram simplesmente eliminadas,
tinha coisas, aquelas cenas do garimpo, se não me engano, eram
maiores, e muita coisa do Fauzi Arap também, o filme foi muito
diminuído na montagem, muita coisa foi...
Como foi sua relação com
Joaquim na montagem?
Eu me entendia bastante bem com Joaquim.
Na época, eu estava aprendendo, literalmente, ele é que
sabia mais do que eu, então, na verdade, eu é que estava
ali trabalhando junto com ele. Ao longo do tempo e dos anos a minha relação
com o trabalho e com as pessoas certamente se modificou, né?
Ele estava presente em todos os momentos
da montagem?
Estava... mesmo se não estava presente,
quer dizer, essa coisa da montagem, o fato do diretor estar ou não
presente não significa necessariamente que ele não esteja
participando, não esteja assumindo, digamos assim, a responsabilidade
por aquilo que está sendo feito. O diretor não precisa estar
sentado ali, vendo cada corte sendo feito e coisa e tal. Eu até,
pessoalmente, hoje em dia, acho até que não deve estar,
mas há diretores que são mais obsessivos e paranóicos
e inseguros, e etcétera etcétera, e possessivos, acham que
um fotograma vai fazer diferença no filme deles e na vida deles...
Eu não acho que a relação do diretor com a montagem
deva ser essa, e nem acho muito produtivo nem saudável para o diretor
ficar acompanhando as etapas, as minúcias da montagem... que naquele
tempo eram muito maiores que hoje, hoje isso mudou. Como você faz
isso no computador, a montagem ficou muito menos artesanal do que era
naquele tempo. Naquele tempo tinha um lado artesanal, trabalho manual,
físico, de corte e costura, muito pesado mesmo. Não tinha
muito sentido para o diretor ficar vendo aquilo e acompanhando tudo...
Mas, nesse caso, como eu não tinha experiência nenhum e ele
era o diretor do filme, essencialmente o Joaquim estava lá o tempo
todo.
A montagem de certa forma estava antenada
com a época, fugindo um pouco da narrativa clássica, apesar
do filme ser muito clássico.
Provavelmente por, eu não tenho uma
lembrança perfeita do filme, agora já fazem de novo muitos
anos que eu não vejo, mas provavelmente, eu acho que o desejo do
Joaquim era de fazer uma narrativa mais clássica, digamos, para
usar a palavra que você usou. E essa coisa mais sincopada ou descontínua,
acho que em geral é resultado de coisas que não foram bem
resolvidas ou no roteiro ou na montagem, e que na montagem se eliminou
porque não estava bom ou pra tentar dar um ritmo maior ao filme...
Acho que são mais resultado disso. E eu acho que na época
ele ainda estava mais voltado, por um lado, para um tipo de narrativa
mais clássica e depois ainda talvez não dominando tanto,
como ele veio a dominar nos Inconfidentes, um estilo já
um pouco diferente, de planos mais longos, em que a encenação
mesmo criava uma situação diferente.
E quais foram os outros filmes que você
fez com Joaquim Pedro?
Eu fiz, depois do Padre e a Moça,
eu fiz depois o Macunaíma, o Guerra Conjugal... fiz
o Vereda Tropical... e acho que só.
Você não trabalhou no "Homem
do Pau Brasil"?.
Não. Eu parei de trabalhar, por muito
tempo, como montador, depois que eu passei a dirigir mais filmes de ficção,
foi em ‘75. Eu passei muito tempo sem trabalhar como montador, um pouco
porque eu estava fazendo outras coisas, um pouco porque, eu tendo passado
a dirigir, eu acho que as pessoas ficavam um pouco, assim, meio sem saber
se eu poderia fazer ou não...
E com relação à música
do filme? O Carlos Lyra nos contou que o Tom Jobim chegou a ser convidado
antes dele para escrever os temas...
Olha, eu não lembro especificamente
do Tom ter feito nada, nem ter visto o filme... O Joaquim pode talvez...
Eu me lembro que o Joaquim pensou em muita gente, me lembro de ouvir falar
em vários nomes, num primeiro momento falou-se de Cláudio
Santoro, de compositores mais eruditos, e tal... Mas, que eu me lembre,
se ele propôs, ou o Tom não pode ou não quis, não
sei, mas eu não me lembro, por exemplo, do Tom ter visto o filme,
não me lembro disso. Eu me lembro de quando ele resolveu, chamou
o Carlinhos, o Carlinhos foi lá ver o filme, depois acho que o
próprio Carlinhos sugeriu que o Guerra-Peixe fizesse os arranjos...
depois, não sei se o Carlinhos comentou, mas quando a música
foi gravada o Joaquim estava preso, então ele não pôde
acompanhar a gravação da música, porque coincidiu
com o da prisão, e a gravação foi feita sem ele.
O que o Carlos Lyra contou foi que o Jobim
teria aceito, mas depois teria desistido por conta de possíveis
problemas com a ditadura, pela origem dos envolvidos, sua proximidade
com o CPC. Enfim, que, pensando em sua própria carreira internacional,
o Tom preferiu não participar, e só aí que o Joaquim
o teria chamado.
Olha, eu não tenho nenhuma lembrança
disso. O que teria o CPC?
A história que o Lyra nos contou
foi que o Tom teria dito para o Joaquim que tinha medo da paranóia
dos americanos, de que eles lhe criassem problemas para entrar no país
deles...
Olha, eu nunca ouvi falar nisso. Enquanto
o filme estava sendo feito, eu acho estranho, porque enquanto o filme
estava sendo feito não havia nenhuma razão para alguém...
O filme nenhum vínculo com o CPC, nem o Joaquim tinha ligação
com o CPC, que aliás nem existia mais nessa época. Nem havia
qualquer razão para suspeitar que o filme tivesse qualquer tipo
de implicação política, como de fato não veio
a ter. E o Joaquim sempre foi amicíssimo do Tom, a vida inteira.
Eu não me lembro, agora, eu não posso dizer nem que sim
nem que não, mas absolutamente não me lembro disso, e me
parece muita estranha essa história, não me lembro não...
agora, o Carlinhos talvez tenha mais condição do que eu
de falar disso, mas eu não me lembro, absolutamente.
E as demais pessoas da equipe, você
voltou a trabalhar com elas?
Bem, eu sempre fui muito amigo, muito ligado
ao Joaquim, não é? O Carlos Alberto Prates, também
sempre fui ligado a ele. Mas nunca mais trabalhei com... acho que nunca
mais montei nenhum filme fotografado pelo Mário, nem trabalhei
com ele quando dirigi, nem com Fernando Duarte... e as outras pessoas,
também não...
Barreto?
Barreto sim, trabalhei várias vezes.
O Barreto inclusive produziu o Lição de amor, que
foi o primeiro filme que eu dirigi, fiz com ele antes um filme sobre Pelé...
O "Sonho sem fim", do seu irmão?
Não, Sonho sem fim não,
esse fomos nós mesmos que produzimos, junto com a Embrafilme, foi
pela produtora minha e do Lauro... Eu tenho umas fotos aqui do Padre
e a Moça, vocês querem ver?...
Só mais algumas coisas. E o clima
dos sets, entre atores, como foi, fluiu bem?
Variava muito, né?... Com o Paulo
foi muito bem, o Paulo foi excepcional, o Paulo José, não
só pela circunstância difícil para ele, era o primeiro
filme dele, e entrando no filme daquela maneira... mas eu acho que foi
uma salvação para o filme, acho que teria sido um desastre
se o Luiz Jasmin tivesse feito o papel. O Paulo foi uma casualidade que
salvou o filme... Já o Fauzi foi muito difícil, o Fauzi,
a relação dele com o Joaquim, a minha lembrança é
que foi muito difícil, o Fauzi tinha uma forma de atuar talvez
mais teatral e que acho que não funciona muito bem no cinema, o
estilo de interpretação que eu acho que não funcionou
muito bem no filme. Acho que tanto o Mário Lago, como a Helena
e o Paulo acertaram mais o tom, mais contido, mais...
Mas, ao mesmo tempo, o tom que ele encontra
tem muita relação com o personagem, como um elemento perturbador...
É, o personagem é um pouco
isso... Mas eles ensaiavam muito, também...
E você estava nos ensaios?
Não, eu estou falando de ensaios lá
mesmo, no set...
Porque ensaiaram meses aqui no Rio, não?
É, não sei se foram meses,
mas houve alguns ensaios na casa do Joaquim sim, até filmados,
lembro até que a gente filmou alguns. Teve alguns ensaios, mas
acho que não foram meses... Mas acho que não com o Fauzi.
A Helena ensaiou com o Luiz Jasmin, na casa do Joaquim, algumas vezes,
eu acho, alguns dias... não foi uma coisa, que eu lembre, tão
demorada não... E nas filmagens, antes de filmar, o Joaquim ensaiava
muito, especialmente com o Fauzi. Às vezes na véspera, ou
coisas assim, ficava horas ensaiando... E eu me lembro que chocava muito
a teatralidade da interpretação do Fauzi... Se você
diz que gostou, tanto melhor!... Porque visto hoje... Na época
chocava um pouco, talvez o Fauzi tivesse razão, talvez a gente
não estivesse vendo direito, mas era uma coisa que nos chocava
um pouco.
É que o Paulo José vai num
crescendo, sempre tentando ser muito contido, até o final, em que
ele vai explodir, e parece que o Fauzi é o cara que já explodiu,
que já pirou de amor pela moça...
Agora a gente queria falar um pouco da
sua fase como montador e depois como diretor...
Puxa vida, mas aí são horas
de conversa... mas vamos lá, vocês perguntam...
Depois do "Padre e a Moça"
você queria se especializar como montador ou queria dirigir logo?
Eu sempre tive como objetivo dirigir, depois
de trabalhar no Padre e a Moça eu fiz o primeiro filme que
eu dirigi, na verdade co-dirigi com o Julinho Bressane, um filme sobre
a Maria Bethânia, que foi feito em ’65 também, ou no início
de ’66 talvez, um documentário sobre a Maria Bethânia feito
em 16mm, a equipe era menor que a do Padre e a Moça, era
eu e o Julio, só, nós fazíamos tudo... Eu era câmera
e fotógrafo, ele fazia o som, só nós dois. Feito
em 16mm, preto e branco, depois foi ampliado. Aí, pouco a pouco,
fui trabalhando cada vez mais em montagem. E, digamos assim, de ’65 a
’75, embora eu tenha dirigido alguns curtas e documentários, eu
trabalhei basicamente como montador. Quer dizer, depois do Padre e
a Moça montei Terra em Transe, e aí montei muitos
filmes, teve um momento em que eu estava montando três longa-metragens
ao mesmo tempo, estava montando Macunaíma, Os Herdeiros
e O Dragão da Maldade..., teve um período em que
eu estava montando os três filmes ao mesmo tempo. E aí eu
fui fazendo alguns documentários, fiz um documentário para
a Tv Educativa sobre Santos Dumont, depois fiz um documentário
no Ceará sobre uma romaria em Juazeiro do Norte, fui fazendo algumas
coisas assim. E aí, em ’72, ’73, eu comecei a trabalhar no projeto
da adaptação de Mário de Andrade que veio a ser o
Lição de Amor, que eu fiz em ’75. Depois eu trabalhei
basicamente como diretor, nesse período entre ’75 e ’83, o último
filme de ficção que eu fiz foi O Cavalinho azul,
acho que em ’83, depois comecei a produzir também, produzi o Sonho
sem fim, produzi depois algumas coisas em parcerias da nossa produtora...
e em ’86 é que eu trabalhei na Embrafilme, trabalhei um ano na
Embrafilme, como diretor de operações, exatamente um ano,
de janeiro de ’86 a janeiro de ’87.
Era uma época de muita pressão
política? Porque era uma época em que a empresa dependia
do dinheiro do governo, não?
A Embrafilme eu acho que sempre sofreu pressão
de todos os lados, né? Por um lado tinha uma demanda muito grande,
muito maior do que ela podia atender, todo mundo queria fazer filme, todo
mundo se achava com os mesmos direitos de fazer filme, e o dinheiro que
a Embrafilme tinha não dava para fazer todos os filmes. Então,
isso criava uma tensão permanente. De certa maneira a Embrafilme
nessa época já estava um pouco em crise e em processo de
transformação, transformação essa que infelizmente
nunca chegou a acontecer inteiramente, o que aconteceu foi o fechamento
da Embrafilme, no início de ’90. Mas já vinha um processo,
quer dizer, a crise da Embrafilme, digamos, a insuficiência do modelo,
a necessidade de transformar aquele modelo era uma coisa que já
estava clara há muito tempo, já vinha desde ’83, ’84 sendo
trabalhada e pensada. Mas, resumidamente, as coisas que fiz foram essas,
depois desse período da Embrafilme não fiz filme de ficção,
vinha trabalhando mais em documentários, fiz uma série de
documentários que foram exibidos na televisão, ou na TV
Manchete ou na Cultura. Depois trabalhei um pouco na área de cinema
publicitário, e recentemente voltei a montar algumas coisas. No
ano passado eu montei um documentário em longa-metragem do Ricardo
Dias, chamado Fé, e montei o Villa-Lobos. A montagem
ficou uma coisa mais possível para mim, com a montagem digital,
voltou a ser uma coisa mais divertida para mim, eu me diverti muito nos
últimos dois anos...
Você opera o equipamento?
Muito precariamente, eu não opero
não, eu trabalho sempre com uma outra pessoa operando.
E durante a produção dos
seus filmes com a Embrafilme, como era a relação com o governo
e com a censura?
Quando eu comecei a me relacionar com a Embrafilme,
na época do Lição de Amor, que foi produzido
pelo Barreto com a Embrafilme, já tinha mudado um pouco, já
foi no governo Geisel, em que já começava a se desenhar
uma liberalização do regime, de alguma maneira. O período
mais complicado do regime militar, o período mais difícil,
foi entre ’68, o AI-5, e ’74, fim do governo Médici. Mas nesse
período a Embrafilme não estava... não me lembro
o ano de criação da Embrafilme, acho que foi ’69 ou ’70,
mas começou só como distribuidora. Mas ela não estava
produzindo tanto. Ela começou a atuar mais como produtora e financiadora
de filmes, através do adiantamento sobre a distribuição,
quando o Roberto Faria se transformou no diretor-geral da empresa, em
’74. E aí coincidiu com esse momento... Mas havia muita dificuldade,
havia problemas, tanto que, muito tempo depois, por exemplo, já
na gestão do Celso Amorim, ele teve que sair da Embrafilme por
uma questão ligada a problemas políticos, quer dizer, o
fato da Embrafilme ter participado do Pra Frente Brasil, do Roberto
Faria, que lidava com a questão da tortura, levou à saída
do Celso Amorim. Os militares, ainda no governo, não admitiam que
uma empresa de economia mista, mas que era essencialmente uma empresa
estatal, tivesse patrocinado, co-produzido... não sei se o acordo
especificamente era de co-produção ou de adiantamento, mas
não aceitavam que tivesse ajudado aquele filme.
Ainda sobre "O Padre e a Moça",
uma coisa que a gente tinha curiosidade é quanto ao orçamento,
quanto ao valor... imagino que não fosse muito, não é?
A dificuldade, Clara, é que, com essa
loucura brasileira da mudança das moedas, a gente perde completamente
a noção... mesmo em dólar, tantos anos depois, seria
preciso fazer uma correção do dólar... eu imagino
que... o Barreto talvez possa dizer, mas eu imagino que fosse alguma coisa,
assim, na época, talvez eu esteja errado, mas eu imagino que fosse
em torno de duzentos mil dólares, talvez um pouco mais...
E todo mundo sendo pago?
A gente não ganhava muito não,
mas era pago. Era pouquinho, mas era pago... Eu me lembro que, quando
eu montava o Terra em Transe, o que eu ganhava não dava...
o filme foi montado no centro da cidade, onde hoje é a Esdi, na
Rua Evaristo da Veiga, essa mesma moviola tinha sido depois levada para
uma daquelas casinhas da Esdi. E o que eu gastava em passagem de ônibus
e comida enquanto eu montava era mais do que eu ganhava, quer dizer, não
era muito que a gente ganhava...
Você morava onde?
Na Voluntários da Pátria, aqui
em Botafogo. Então a gente não ganhava muito, mas nessa
época, quer dizer, eu morava na casa dos meus pais, então
não era uma coisa profissionalizada totalmente, ainda. Para algumas
pessoas era, mas para outras menos.
Uma vez, numa palestra, um montador comentou
com a gente que o trabalho do montador era diferente dos outros no sentido
de que todas as outras funções procuram fazer o que o diretor
pede, enquanto o montador deve mostrar ao diretor o que é possível,
quer dizer, deve olhar com visão crítica aquilo em que o
outro esteve envolvido por anos. Eu queria saber sobre como foi seu relacionamento
com diretores, em geral.
É, isso... Não sei se eu entendo
ou concordo muito com o que essa pessoa disse. Quer dizer, o trabalho
de montar um filme é esse, mas não é só uma
questão de tirar o que não dá pé. Aquele material
ali, você vê qual é a melhor maneira de organizar aquilo,
de ordenar aquilo, de dar ritmo... e, em todo filme, é muito raro
o filme que não tenha muita coisa eliminada, sequências,
é muito raro um filme em que você não mude a ordem
de uma sequência, que foi escrita e filmada para estar numa ordem
e, quando você está montado, descobre que ficar melhor numa
outra ordem... Isso é comum, normal, é uma coisa usual.
Agora, é claro que existem variações, mesmo dentro
do trabalho do mesmo diretor. Quer dizer, em Os Inconfidentes,
eu me lembro bem, de todo o material filmado, só dois planos não
foram usados, entende?... E no Padre e a Moça muita coisa
não foi usada... No Macunaíma algumas sequências
foram eliminadas, agora... Isso também tem a ver com certas limitações,
deficiências e falta de experiência nossa, em termos de feitura
de roteiro, em termos de filmagem, e tudo isso se cristaliza no momento
da montagem, e nesse sentido você tem razão. Quer dizer,
o que acontece na montagem é que ficam muito aparentes os problemas.
Enquanto você está escrevendo, são letras no papel
e a imaginação preenche os buracos, quando você está
filmando o processo da filmagem é muito fragmentado, é fora
de ordem, é difícil ter uma visão do todo... Na hora
em que você vai montar tudo fica óbvio, quer dizer, como
devia ter sido feito, é até injusto... Os montadores normalmente
têm uma relação meio sádica com os diretores,
acham que o diretor é um idiota, um incompetente, por quê
que fez assim, e por quê não fez assado... Ora, é
muito fácil, você está ali numa salinha, na penumbra,
no ar-condicionado, ninguém está te chateando ali. Na hora
da filmagem é outra história, tem uma pressão ali
violenta, em geral tem mosquito, calor, mil coisas te perturbando a cabeça...
Então, essa relação sádica do montador com
o diretor em geral reflete a inexperiência do montador, que acha
que está numa posição onipotente, ali... Agora, ao
mesmo tempo, a montagem é o... Eu, de certa maneira, tive o privilégio
de começar, ter tentado aprender um pouco de cinema na montagem,
porque de fato você pode aprender muito, porque tudo fica muito
óbvio, quer dizer, como devia ter sido feito, por quê que
funciona e por que não funciona. Então você aprende
muito, entende?... Agora, essa questão varia muito. O Glauber,
independente das características de personalidade dele, ele era
uma pessoa extremamente aberta e extremamente corajosa na maneira de lidar
com o material que ele tinha filmado. O Glauber tinha uma característica
como diretor oposta à do Joaquim, o Glauber fazia um filme, ou
vários filmes, enquanto estava fazendo o roteiro, quando estava
filmando fazia em geral um filme diferente do roteiro e quando estava
montando fazia um filme diferente do que ele tinha filmado, quer dizer...
O que é mais comum é um processo de afunilar, você
imagina uma coisa e vai burilando, moldando, afunilando e chegando...
O Glauber não trabalhava assim, absolutamente. Ele reinventava
a cada etapa um novo filme. Em Terra em Transe, que foi o segundo
filme que eu montei, tudo era possível. O filme podia começar
por onde quisesse, podia acabar por onde quisesse, podia cortar de qualquer
coisa para qualquer coisa, tudo era permitido, possível, todas
as experiências eram válidas.
A idéia de um flash-back no momento
da morte não era sugerida no roteiro?
Vagamente. Tudo era vagamente. Se você
for ler o roteiro de Terra em Transe não vai reconhecer
o filme. Fora o fato de que tem vários roteiros e são completamente
diferentes uns dos outros. E muita coisa foi eliminada do Terra em
Transe e o Glauber não sofreu nada com isso. Tanta coisa foi
eliminada que agora foi criado o novo mito do Terra em Transe que
foi reencontrado, das latas, tem uma nova história rolando aí,
acharam o copião do Terra em Transe, então tem uma
história rolando...
Entrevista concedida a Clara Linhart, Camila
Maroja e Daniel Caetano
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