Tenebræ, de Dario Argento

Tenebræ, Itália, 1982


Tenebræ, de Dario Argento

É impossível discutir Tenebre sem entrar em detalhes sobre a trama, então recomendo que os leitores que não viram o filme e se incomodam em saber de antemão muito sobre o mesmo que não sigam em frente.

Entre os fãs de Dario Argento é notório que ele gosta de interpretar as mãos dos serial killers nas cenas de assassinato de seus filmes. Em vários deles, o cineasta se coloca a problematizar a relação dele e de seus espectadores com a violência e as expectativas do gênero. Tenebre é o mais metalingüístico dos filmes de Argento e aquele onde esta problematização ganha mais relevo.

Foi o primeiro giallo que Argento fazia desde que Prelúdio para Matar tinha revitalizado o gênero em 75. No meio tempo ele havia feito dois filmes (Suspiria e A Mansão do Inferno) que trabalhavam um horror sobrenatural. Este retorno às origens parece ter seguido desta necessidade de colocar a si mesmo e sua filmografia até ali em questão. O resultado é um dos melhores e mais intrigantes filmes do diretor, talvez o que melhor exprima a crença de Argento de que estilo e substância andam juntos.

A história diz respeito a Peter Neal (Anthony Franciosa), um famoso escritor de livros policiais violentos, que viaja a Roma para divulgar seu último "best seller" Tenebrae. Enquanto ele ainda está em seu avião um psicopata inicia uma serie de assassinatos aparentemente inspirados em seu último livro. O detetive responsável pelo caso, Germani (Giuliano Gemma, o único policial simpático dos filmes de Argento), pede ajuda ao escritor que entre seus compromissos promocionais começa a receber cartas e telefonemas do assassino.

Diferentemente de outros filmes de Argento, em Tenebre Peter Neal nunca se torna de fato o investigador, uma tarefa que fica a cargo do coadjuvante Germani. Apesar de nitidamente afetado pelos crimes, o escritor tenta ficar à margem dos acontecimentos, seguindo com a série de entrevistas agendadas. Em Tenebre, ao contrário dos outros gialli, o whodunit realmente é central nos interesses de Argento. O espectador é convidado para tentar resolver o quebra-cabeça apresentado em vez de apenas acompanhar o herói-investigador.

O segundo dos assassinatos é um dos mais elaborados do cineasta e o ponto onde o interesse do filme em implicar o espectador no que narra começa a ficar mais claro. A seqüência inicia com um longo travelling onde a câmera passeia pelo exterior da casa de um casal de lésbicas (o uso da arquitetura em Tenebre é dos mais bem sucedidos do cineasta). Ela sugere que se trata de uma subjetiva provavelmente do assassino, mas ao mesmo tempo o movimento é muito complicado para ter sido realizado por uma pessoa. Não há duvidas de que após o travelling ocorrerá mais um crime e tão logo o movimento termina, o assassino invade a casa enquanto sua vítima está tirando uma blusa que a torna incapaz até mesmo de ver seu algoz.

Se o espectador tem sua parcela de culpa, Argento não deixa de se inserir. Não à toa as duas figuras centrais de Tenebre são Peter e sua secretária Anne (Daria Nicolodi). O escritor acaba por abandonar sua posição de mero observador, desvenda a identidade do assassino, o mata e assume o seu lugar para poder eliminar a ex-noiva e seu amante. Peter retorna a sua posição de autor e é ele quem de fato "escreve" os rumos que Tenebre toma a partir de sua metade. O espectador e Germani ficam perdidos quando o maior suspeito é morto. A trama de Tenebre é das mais complicadas na obra de Argento em termos de construção: se em seus outros gialli a identidade do assassino depende da interpretação de uma imagem, aqui há uma série de pequenas pistas que levam a Peter. Este não é o único filme em que Argento busca uma aproximação entre ele e seus assassinos, mas é aqui onde ele mais claramente assume sua satisfação em encenar seus assassinatos (Tenebre é um de seus filmes mais violentos e excessivos) ao mesmo tempo em que problematiza esta satisfação.

Se Peter é o autor que de fato veste as luvas pretas dos assassinos dos gialli, sua eficiente secretária Anne permanece passiva ao longo de todo o filme. Não fosse pela última cena, o mais apressado poderia dizer que ela não tem importância nenhuma. Anne realmente pouco ou nada faz até ali. Ela permanece sempre em cena, fazendo um ou outro comentário, mas sem nunca agir. Mesmo quando confrontada com um fato novo, ela pouco ou nada reage. Na cena final, ela força uma porta fechada e quando consegue abri-la derruba uma escultura pontiaguda que acidentalmente mata Peter. Tenebre se encerra com uma Anne desesperada gritando. Sobe os créditos ao som dos seus gritos. Ao espectador não há uma cena tranqüilizadora pós-climax ou outro alívio qualquer. O mais pessimista dos trabalhos de Argento, ao final de Tenebre Anne de fato parece não ter lugar algum para ir; sendo seu filme mais diretamente sobre cinema, talvez este final seja um comentário acerca dos sentimentos do autor sobre os rumos que o cinema italiano vinha tomando então.

Filipe Furtado