É
impossível discutir Tenebre sem entrar em detalhes sobre
a trama, então recomendo que os leitores que não viram
o filme e se incomodam em saber de antemão muito sobre o mesmo
que não sigam em frente.
Entre
os fãs de Dario Argento é notório que ele gosta
de interpretar as mãos dos serial killers nas cenas de
assassinato de seus filmes. Em vários deles, o cineasta se coloca
a problematizar a relação dele e de seus espectadores
com a violência e as expectativas do gênero. Tenebre
é o mais metalingüístico dos filmes de Argento e
aquele onde esta problematização ganha mais relevo.
Foi
o primeiro giallo que Argento fazia desde que Prelúdio
para Matar tinha revitalizado o gênero em 75. No meio tempo
ele havia feito dois filmes (Suspiria e A Mansão do
Inferno) que trabalhavam um horror sobrenatural. Este retorno às
origens parece ter seguido desta necessidade de colocar a si mesmo e
sua filmografia até ali em questão. O resultado é
um dos melhores e mais intrigantes filmes do diretor, talvez o que melhor
exprima a crença de Argento de que estilo e substância
andam juntos.
A
história diz respeito a Peter Neal (Anthony Franciosa), um famoso
escritor de livros policiais violentos, que viaja a Roma para divulgar
seu último "best seller" Tenebrae. Enquanto ele
ainda está em seu avião um psicopata inicia uma serie
de assassinatos aparentemente inspirados em seu último livro.
O detetive responsável pelo caso, Germani (Giuliano Gemma, o
único policial simpático dos filmes de Argento), pede
ajuda ao escritor que entre seus compromissos promocionais começa
a receber cartas e telefonemas do assassino.
Diferentemente
de outros filmes de Argento, em Tenebre Peter Neal nunca se torna
de fato o investigador, uma tarefa que fica a cargo do coadjuvante Germani.
Apesar de nitidamente afetado pelos crimes, o escritor tenta ficar à
margem dos acontecimentos, seguindo com a série de entrevistas
agendadas. Em Tenebre, ao contrário dos outros gialli,
o whodunit realmente é central nos interesses de Argento.
O espectador é convidado para tentar resolver o quebra-cabeça
apresentado em vez de apenas acompanhar o herói-investigador.
O
segundo dos assassinatos é um dos mais elaborados do cineasta
e o ponto onde o interesse do filme em implicar o espectador no que
narra começa a ficar mais claro. A seqüência inicia
com um longo travelling onde a câmera passeia pelo exterior
da casa de um casal de lésbicas (o uso da arquitetura em Tenebre
é dos mais bem sucedidos do cineasta). Ela sugere que se trata
de uma subjetiva provavelmente do assassino, mas ao mesmo tempo o movimento
é muito complicado para ter sido realizado por uma pessoa. Não
há duvidas de que após o travelling ocorrerá
mais um crime e tão logo o movimento termina, o assassino invade
a casa enquanto sua vítima está tirando uma blusa que
a torna incapaz até mesmo de ver seu algoz.
Se
o espectador tem sua parcela de culpa, Argento não deixa de se
inserir. Não à toa as duas figuras centrais de Tenebre
são Peter e sua secretária Anne (Daria Nicolodi). O escritor
acaba por abandonar sua posição de mero observador, desvenda
a identidade do assassino, o mata e assume o seu lugar para poder eliminar
a ex-noiva e seu amante. Peter retorna a sua posição de
autor e é ele quem de fato "escreve" os rumos que Tenebre
toma a partir de sua metade. O espectador e Germani ficam perdidos quando
o maior suspeito é morto. A trama de Tenebre é
das mais complicadas na obra de Argento em termos de construção:
se em seus outros gialli a identidade do assassino depende da
interpretação de uma imagem, aqui há uma série
de pequenas pistas que levam a Peter. Este não é o único
filme em que Argento busca uma aproximação entre ele e
seus assassinos, mas é aqui onde ele mais claramente assume sua
satisfação em encenar seus assassinatos (Tenebre
é um de seus filmes mais violentos e excessivos) ao mesmo tempo
em que problematiza esta satisfação.
Se
Peter é o autor que de fato veste as luvas pretas dos assassinos
dos gialli, sua eficiente secretária Anne permanece passiva
ao longo de todo o filme. Não fosse pela última cena,
o mais apressado poderia dizer que ela não tem importância
nenhuma. Anne realmente pouco ou nada faz até ali. Ela permanece
sempre em cena, fazendo um ou outro comentário, mas sem nunca
agir. Mesmo quando confrontada com um fato novo, ela pouco ou nada reage.
Na cena final, ela força uma porta fechada e quando consegue
abri-la derruba uma escultura pontiaguda que acidentalmente mata Peter.
Tenebre se encerra com uma Anne desesperada gritando. Sobe os
créditos ao som dos seus gritos. Ao espectador não há
uma cena tranqüilizadora pós-climax ou outro alívio
qualquer. O mais pessimista dos trabalhos de Argento, ao final de Tenebre
Anne de fato parece não ter lugar algum para ir; sendo seu
filme mais diretamente sobre cinema, talvez este final seja um comentário
acerca dos sentimentos do autor sobre os rumos que o cinema italiano
vinha tomando então.
Filipe
Furtado